Curtas

Instantâneos da fotografia contemporânea

Ensaios sobre as complexidades do fazer fotográfico em quase 200 anos de história

TEXTO Maria Chaves

03 de Novembro de 2021

O professor e fotógrafo José Afonso Jr. é autor do livro

O professor e fotógrafo José Afonso Jr. é autor do livro

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 251 | novembro de 2021]

Assine a Continente

José Afonso Jr. é daqueles profissionais que transitam de forma equilibrada pelas vias acadêmicas e no meio da produção fotográfica, com interesse, destreza e intensidade. Em paralelo à sua atuação como professor no Departamento de Comunicação da UFPE, onde leciona, orienta teses, desenvolve pesquisas e conduz seminários, é incessante em sua produção fotográfica e nas atividades de curadoria e de desenvolvimento crítico, a exemplo da curadoria do fotolivro Pernambuco correia virada (2014),  da realização do projeto de pesquisa em fotografia Suíte Master, Quarto de Empregada (2020/2021), e, mais recentemente, da publicação de Instantâneos da fotografia contemporânea (2021), pela editora Appris.

Com prefácio de Eduardo Queiroga (UFMG) e um conselho editorial composto por nomes nacionais de peso nos estudos fotográficos, como Maurício Lissovsky (UFRJ), Antônio Fatorelli (UFRJ), Nina Velasco (UFPE) e Ronaldo Entler (FAAP), o livro é um compilado de artigos e ensaios construídos ao longo do percurso do autor nos últimos 10 anos.

Demonstrando a consistência do seu repertório tanto conceitual quanto advindo do conhecimento do mercado, Afonso aborda as complexidades que envolvem o fazer fotográfico em quase 200 anos de existência da fotografia, iluminando suas diferentes materialidades e contínuas transições. É um passeio entre tempos e espaços: do retrato oitocentista, considerando as referências clássicas gregas e os usos em culturas distintas da nossa, como Índia e Japão, até se aprofundar na problematização contemporânea em um cenário de convergência cultural, como ele gosta de citar no livro. Tal passeio envereda em trilhas diversas, que, como num labirinto, podem ser escolhidas aleatoriamente. Os capítulos não obedecem a uma ordem específica, permitindo uma leitura fluida, ao gosto de quem lê.

“O agrupamento desses textos não foi por uma motivação de exaurir determinado tema. Buscamos escolher trabalhos produzidos na última década, que respondessem a tensões específicas, nas quais a fotografia se relaciona com o mundo tal qual uma interface”, explica Afonso, na introdução. Ante essa diversidade de veredas, destacam-se alguns temas, começando pelo fotojornalismo, campo em que atuou, durante muito tempo, no papel de pesquisador. Os quatro primeiros textos tratam das reconfigurações do mercado e do meio profissional do fotojornalismo frente às novas tecnologias, provocando uma reflexão sobre como o advento da inovação é acompanhado por inseguranças e contradições.

Nesse caso específico, a crise aparece dentro de outra bem maior, a do jornalismo tradicional, que, por sua vez, reage às novas práticas do mercado, adaptando-se, como muitas outras práticas culturais, à mudança nos hábitos de consumo e à inversão da lógica de oferta e demanda. Por um lado, o salto do analógico para o digital, o estabelecimento da comunicação em rede, a hibridização dos meios midiáticos, a horizontalidade nos processos de produção de informação e a descentralização na sua distribuição interferiram na relação da sociedade com a imprensa e, consequentemente, na relação da imprensa com a fotografia.



Por outro, enquanto a insegurança surge com as fake news e fake fotos, a contradição revela-se no fechamento de redações e de jornais e na dispensa maciça de repórteres fotográficos, cujas funções são entendidas agora como dispensáveis, uma vez que o imediatismo e a redução de custos não deixam espaço para a construção ou contemplação de uma narrativa ou um discurso por trás de uma imagem. Para exemplificar e contextualizar didaticamente os pontos acima, Afonso descreve uma cadeia de cenários e, bom mestre que é, ensina que o fotojornalismo não está em fase terminal, mas, sim, em mais um momento de reinvenção.

Instantâneos da fotografia contemporânea levanta ainda outro tema de maneira delicadamente crítica: as intencionalidades sociais da fotografia ao longo de sua história. A respeito disso, o fotógrafo compartilha sua análise sobre O retrato e o tempo: Coleção Francisco Rodrigues, livro editado pela Fundação Joaquim Nabuco e ganhador do Prêmio Abeu 2015, pelo projeto gráfico da Zoludesign.

Uma lupa sobre o conjunto de imagens de 1840 a 1920 de famílias nordestinas expressa uma cultura visual e os valores de uma época, mas também desnuda essas mesmas imagens com os fantasmas das relações sociais em um sistema ainda de escravidão, como a invisibilidade das pessoas negras ou a presença subserviente das amas de leite com seus patrões, as crianças brancas, nos retratos. Assim como essas amostras, todos os capítulos que orbitam este tema escancaram a correspondência direta entre exclusão social e visual e nos instigam a enxergar “as bordas” das imagens.

Por último, vale destacar as interessantes colocações sobre a fotografia vernacular, aquela caseira, da prática do dia a dia. Na visão do autor, essa prática foi injustamente subjugada e relegada a um lugar de banalidade na história da fotografia, hierarquicamente abaixo das fotos profissionais e de autor, mesmo tendo sido o que sustentou o mercado da fotografia comercial.

Afonso chama atenção para a riqueza estética, cultural e histórica dos álbuns de família e suas narrativas, que só vieram a ser valorizados em trabalhos de artistas contemporâneos – a exemplo de Rosângela Rennó, que baseou a criação das suas primeiras obras, no final da década de 1980, no anonimato das fotos familiares, e do coletivo Cia de Foto, com o fotolivro Caixa de sapato (2015), que reúne imagens produzidas nas cenas do cotidiano e das vidas íntimas dos seus integrantes.

No encalço dessa produção amadora, doméstica e espontânea, Afonso não deixa de fazer menção à Polaroid e ao Instagram. A primeira como pioneira na inovação da instantaneidade e o segundo como espelho de uma nova relação tempo x fotografia. Assim, ele mostra como se iniciou, há 70 anos, a aceleração da vivência do tempo que presenciamos hoje. Aliás, a relação das práticas visuais com o fenômeno do instante, representada pelo ato do clique, é a metáfora visual escolhida para costurar os textos: “O instantâneo fotográfico aciona uma ação pedagógica por meio da qual a sociedade pode ‘ver’ a vida e o mundo inserido na fragmentação do tempo”.

Quem diria que um dia o instante decisivo de Cartier Bresson perderia o sentido? Como a vida, a fotografia nada tem de estanque.

MARIA CHAVES é fotógrafa, produtora cultural e coordenadora do Pequeno Encontro da Fotografia. Atuou como repórter fotográfica no Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco.

veja também

Pernambuco Meu País inicia em Taquaritinga

Maracatu rural viaja a Portugal

Duda Rios: Um artista de multipotencialidades