“Criar uma ilha no sertão vai além da simples contraposição geográfica. Apesar de o título lembrar isolamento, buscamos aqui um movimento contrário. Mapas, territórios inventados, o meio ambiente e a necessidade de união e resistência em tempos tão difíceis”, explica Gilvan no material de divulgação enviado por Tácio Ferraz e Fred Goyanna, as mentes por trás da ideia de trazer fotos, vídeos, colagens e tecidos para a Casa Pedra Branca. Os idealizadores e organizadores da exposição não poderiam ser mais certeiros na síntese dividida com a imprensa: “Ao comentar as turbulências sociais, políticas e ambientais que estamos vivenciando, o artista explora ideias sobre isolamento e necessidade de sociabilização, sobretudo em um período pandêmico”.
Duas obras da série de esboços de bandeiras de territórios inventados. Imagens: Gilvan Barreto/Divulgação
“Floresta é muito peculiar, pois temos muitos artistas, mas nem sempre aparece a chance de ver seus trabalhos. Temos essa preocupação de trazer arte contemporânea para cá, de fazer a ponte com gente de fora. Desde 2017, buscamos fazer essa aproximação e já trouxemos exposições de artistas como Marcelo Silveira e Carlos Mélo. Com as obras de Gilvan, questionamos a ideia de isolamento e lançamos o contraponto que é apresentar a exposição numa galeria em uma cidade do sertão, onde muitas vezes nos sentimos isolados. E também destacamos a importância da arte em instigar outras leituras do mundo e formar novos olhares”, pontua o designer Tácio Ferraz, responsável pela identidade visual e pela expografia de Ilha, produzida com recursos da Lei Aldir Blanc de Pernambuco.
Um dos trabalhos cruciais a refletir e rebater a noção de insularidade, e certamente essencial para escancarar janelas de diálogo com o Brasil em que estamos vivendo, são as Cartas náuticas. Em conversa por telefone com a Continente, quando estava em Floresta para a abertura da exposição, Gilvan Barreto assim delineava o processo criativo por trás daquelas imagens digitais impressas em papel carta: “No meio da pandemia, sem trabalho, isolado, uma das coisas que eu mais gostava de fazer era nadar na Praia Vermelha. Era uma das poucas coisas que podia fazer também. A Praia Vermelha é o bairro mais militarizado do Rio de Janeiro. Em uma semana do ano passado, quando saiu a notícia de que os militares haviam ganhado o direito de celebrar o golpe de 1964, fiquei pensando: como é que falo sobre isso? E se eu escrever em vez de apenas nadar? Comecei a marcar os trajetos na natação, como se faz correndo, com um GPS preso ao meu corpo e, em vez de nadar aleatoriamente, pensar os trajetos para formar letras e frases… E assim comecei a escrever as maiores cartas que imaginei na vida, numa tentativa de curar as dores, matar as dores do mundo, enquanto se celebravam as injustiças e as torturas”.
Da série Cartas náuticas. Imagens: Gilvan Barreto/Divulgação
Mata dores e Nada de novo são duas das cartas cuja caligrafia é o percurso que Gilvan fez no mar entre os morros do Pão de Açúcar e da Babilônia, transposta do aplicativo de esportes que registrou seu treino no celular para uma imagem lapidada pelo artista. “As cartas estão ligadas a processos violentos de formação do nosso país. São lágrimas, na verdade”, resume. Mas, se tudo é sal, somos capazes de sentir o gosto do nosso pranto quando choramos no mar? Sim. Nossas dores, embora muito nossas, são também coletivas nesse país que elege quem admira torturador e festeja repressão policial. E a obra desse pernambucano de Jaboatão dos Guararapes, há muito radicado em solo fluminense, tem incidido cada vez mais sobre as violências que nos constituem – vide o documentário Prelúdio da fúria (2017), em que radiografa sons e imagens de intolerância no Brasil, e a web série e o curta-metragem Novo mundo (2020), em que rastreia os vínculos entre suplícios chancelados pelo Estado e o racismo.
Para Ilha, Gilvan optou por levar outros trabalhos que aprofundam sua investigação nos elos entre arte e política. Em Soliticário, uma transmissão em tempo real nos apresenta imagens de um grupo de pinguins africanos (Spheniscus demersus), conhecidos como soliticários e confinados em Long Beach, na Califórnia, próximo ao muro que demarca a fronteira entre os Estados Unidos e o México. “Distâncias físicas e virtuais, barreiras geográficas, isolamentos e fluxos migratórios, tudo isso se tornou mais concreto na pandemia, mas, ao mesmo tempo, também já refletia práticas políticas que sempre existiram”, observa o artista.
Nesta bandeira, trechos do telegrama do jornalista Helio Fernandes, último preso político de Fernando de Noronha. Imagem: Gilvan Barreto/Divulgação
Outras obras que podem ser vistas na galeria Casa Pedra Branca são bandeiras que ele descreve como “trabalhos em processos, ideias abertas para 'conversar'” com as pessoas. “São esboços de bandeiras de territórios inventados, que estão inacabados, e achei simpático trazer isso para o público. Tem um esboço para Pepe Mujica, uma bandeira sobre a ditadura na Argentina e outras com referências ao tempo, visões sobre o Brasil e processos de reorganização nacional. Como uma bandeira que remete a Hélio Fernandes, último preso político de Fernando de Noronha. A frase 'Vivo em liberdade... cercado de solidão por todos os lados' é parte de um telegrama enviado por esse jornalista. Solidão, liberdade, ameaças...”, situa Gilvan.
Essas bandeiras estão na mesma sala de uma outra em tecido azul com a frase Saudade do Brasil. “Essa fez sucesso na internet. Parece que a saudade do nosso país bateu na veia”, diz o artista visual e fotógrafo, detentor de importantes premiações nacionais, como Prêmio Brasil de Fotografia (2014 e 2017), Prêmio Marc Ferrez Funarte (2014), Conrado Wessel de Arte (2013) e Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger (2017), e autor de livros como Sobremarinhos (independente, 2015) e O livro do sol (Tempo D’Imagem, 2013, este último com fotografias feitas em Floresta).
Uma das bandeiras expostas em Ilha. Foto: Gilvan Barreto/Divulgação
Ele vem preparando uma outra publicação para este primeiro semestre – Paraíso, compilação de obras realizadas ao longo dos últimos 25 anos. O título, idílico como Ilha, há de dar ainda mais vazão ao olhar agudo com que Gilvan Barreto mira o Brasil, esse paraíso tropical de bosques com mais vida onde foram enterrados os dissidentes do regime militar e onde seguimos precisando da arte para nos amparar numa travessia de resistência e esperança.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente.