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“A fotografia não pode estar presa ao dispositivo”

Pernambucano radicado no Rio, Gilvan Barreto comenta sobre a produção do ensaio 'O livro do Sol', da sua migração do fotojornalismo ao trabalho autoral e das desvantagens do mercado fotográfico

TEXTO Clarissa Macau

01 de Junho de 2014

Gilvan Barreto

Gilvan Barreto

Foto Gilvan Barreto

O fotógrafo Gilvan Barreto possui um arsenal de fotografias-palavras. “Antes de tudo, minha ligação é com a poesia e o cinema. Nunca me liguei ao equipamento da câmera. Minha questão é a imagem e construir histórias”, diz. Considerado um dos grandes fotógrafos da sua geração, o pernambucano nascido em Jaboatão dos Guararapes, radicado no Rio de Janeiro, distancia-se cada vez mais da fotografia clássica e do fotojornalismo.

Jornalista de formação, viu nessa função social a maneira de se aproximar do sonho de infância – frustrado, segundo ele, por causa de um país corrompido – de ser político. No caminho, afeiçoou-se mais à fotografia que ao texto. No Recife dos anos 1990, passou dois anos no Jornal do Commercio. Em 1999, mudou-se para São Paulo, contratado como editor de fotografia pela extinta revista de viagens Caminhos da Terra. Ao longo da carreira, prestou serviços a organizações não-governamentais, além de colaborar com a Folha de S.Paulo e El País. Sua relação com o jornalismo profissional esmaeceu. O contato se limita a leituras diárias de jornais.

Hoje, o trabalho de Gilvan amadurece artisticamente, e está em diálogo com o de fotoartistas, como o paulista Gui Mohallen (Welcome home, 2012) e o carioca Edu Monteiro (Saturno, 2013). O que caracteriza a produção deles é o fato de criarem cenas para contar histórias. Gilvan, no caso, monta narrativas fantásticas, inspiradas na relação do homem com seu entorno natural, político e social.

No elogiado Moscouzinho (2012), sua estreia no universo dos photo books, homenageia o pai, falecido em 2010, a cidade natal e relembra uma ditadura militar misturada aos tons encarnados do comunismo soviético. As imagens foram fabricadas com intervenções artísticas, colagens, fotomontagens. “São fotos que nascem da palavra, são fotografias, mas pensam que são filmes.” O livro deu origem à exposição Arqueologia de ficções, que roda o país desde o ano passado.

Em março deste ano, Gilvan Barreto foi vencedor da 12ª edição do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Arte, a maior premiação nacional de fotografia. Arrematou a competição com a série publicada n’O livro do sol. Imagens guiadas pela poesia de João Cabral de Melo Neto desbravam de forma subjetiva a realidade do sertão pernambucano, fugindo da busca pelo “instante decisivo” e explorando o sonho dos sertanejos pela água.

Ainda no final do ano, o fotógrafo pretende lançar o projeto Orquestra Pernambucana de Fotografia, em livro e DVD, no qual fotógrafos e músicos tornam imagem em música. Gilvan conversou com a Continente sobre a sua fixação pela desconstrução fotográfica, seu amadurecimento profissional, criticou a falta de liberdade no fotojornalismo e a atual situação do mercado fotográfico, um território bem demarcado, e desigual.

CONTINENTE Por que, na sua opinião, entre 305 concorrentes, O livro do Sol foi o vencedor do prêmio FCW de arte deste ano?
GILVAN BARRETO Apesar da inscrição dos candidatos sob pseudônimos e o júri, em teoria, desconhecer os autores, é difícil acreditar que não percebam características peculiares de cada autor. Quem julga conhece os trabalhos que estão no meio de arte. No ano passado, fui finalista no FCW com o ensaio do livro Moscouzinho, no qual juntei minhas referências de música, política, cinema, jornalismo e da experiência fotográfica. O prêmio vem para uma trajetória que mostra a construção de uma voz própria. Não acredito que a responsabilidade foi só, mas também, das 10 fotos que mandei d’O livro do sol, que reforçam o meu interesse na interação entre o homem e a natureza, junto ao lado sociopolítico. Entre os trabalhos enviados, havia mais de registro. Ganhar no contexto de que estão apoiando um trabalho de fórmula diferente, menos formal, foi muito bacana.


Foto: Gilvan Barreto/Divulgação

CONTINENTE Vemos na história, já no início do século 20, as vanguardas, o surrealismo e o construtivismo russo fazendo experimentos com a fotografia. O que você herda disso? Como começou a desbravar esse universo artístico?
GILVAN BARRETO Demorei a largar a fotografia clássica. De repente, olhei meu reportório, composto muito mais por poesia, palavra, cinema do que pela fotografia propriamente dita. Sinto a minha relação com a foto mais madura. Meu trabalho em jornalismo já era em cima de viagem, retrato, voltado à questão cultural e ambiental. O primeiro trabalho em que me deixei fotografar sem preocupação com a objetividade foi o das ocupações aqui no Rio, o ensaio Garagem (2009). Nele, a realidade das pessoas está em segundo plano. A prioridade foi estética, poética, mostrar a decoração, a arquitetura das casas. Perceber como as famílias ornamentavam suas moradias com objetos achados na rua. Tenho interesse grande pela “antifotografia”. Destruo uma fotografia para criar outra. Adapto coisas não fotográficas para extrair sentimento. Se essa fotografia já foi feita antes, ela é nova para mim, usando ferramentas velhas que estão ao meu alcance. Preciso fabricar imagens, ou incorporá-las ao discurso. Esse caminho se alinha com a ideia do cinema. Me pergunto quais imagens representarão certos roteiros que tenho na mente. Moscouzinho, por exemplo, foi construído a partir de um roteiro pré-organizado.

CONTINENTE O livro do sol e Moscouzinho têm forte carga surrealista.Você chegou a pensar em fazê-los como ensaios de registro documental em algum momento?
GILVAN BARRETO Já fui muito ao Sertão tirar foto para ONGs, jornais e revistas, focando construções de cisterna e pessoas enfrentando a seca. É útil, mas não é mais o que procuro. Sobre o Sertão, prefiro me perguntar: “Que lugar seco é esse cheio de pessoas com sombrinhas, que vivem pensando em água, falando em água e parecem estar à espera de um dilúvio?”. Há a leitura muito específica sobre o Sertão, com um roteiro que contraria o repertório que temos da seca. Foi uma aposta grande num ponto de vista artístico. Não mostro o que as pessoas já sabem, e nisso há um desconforto. Aí perguntam: “Peraí, nesse sertão não tem gente?”. Eu quero mostrar um sertão desértico. É O livro do sol, mas ele é preto. É seco, mas cheio de nuvem carregada. Tem muita provocação. Para um público, isso pode ser uma besteira sem sentido. Poesia não se explica, sente-se. Mas eu não fiz para agradar ninguém. Estou doido para fazer uns lançamentos pelo interior e ver o que acham. Ouvi alguns sertanejos que viram o resultado e se identificaram. Já Moscouzinho foi uma necessidade de externar um sofrimento, a saudade do meu pai e de nossa história numa ficção. Cheguei a reproduzir sonhos em imagem.

CONTINENTE A fotografia parece ter encontrado lugar no mundo da arte. Mas há quem critique a relação “excessiva” da fotografia com o conceito artístico. No final do ano passado, o fotógrafo André Vieira disse, em entrevista ao blog do Olhavê: “A fotografia que fazemos hoje está mais preocupada em dialogar com a história da arte do que com a história da fotografia, sobretudo documental. Temos excelentes fotodocumentaristas, mas (...) as revistas daqui há muito não apoiam esse tipo de fotografia e o mundo institucional parece estar deslumbrado com as feiras de arte”. Num momento em que a atenção está voltada a projetos conceituais, o que a foto conceitual oferece para quem a vê?
GILVAN BARRETO André é um documentarista de trabalho diferenciado. Seus trabalhos possuem reflexão. Não existem veículos que deem liberdade e espaço aos documentaristas. Concordo. Mas são caminhos de fotografia distintos, um não deve predominar sobre o outro. Aquela escola bressoniana, de fotografar as ruas, as sombras, está ameaçada pela violência. E, hoje, há um movimento maior de reflexão sobre o cotidiano de uma maneira mais ensaística, poética. Pautando isso pelo desejo de consumo, parece-me também que o mercado, os colecionadores estão exigindo uma intervenção maior nessas imagens. Acredito que as obras relevantes desse movimento virarão um documento da nossa época. Isolar a foto de arte no mundo da fotografia é limitar. Ao pegar um exemplo fora da fotografia, vemos o artista Jonathas (de Andrade) criando ficção, a invasão dos carroceiros de cavalos no Recife (onde é proibida a circulação de carroceiros na zona urbana) através de uma corrida. Ele faz parte de um grupo de artistas, o que inclui fotógrafos, que pensa em tom fantástico e traz um retrato do nosso tempo.


Foto: Gilvan Barreto/Divulgação

CONTINENTE Sua matriz é o fotojornalismo. Como você vê a fotografia feita hoje nos jornais?
GILVAN BARRETO Nesse tipo de foto, prefiro a clareza do posicionamento de quem vê. Fingir um distanciamento, uma imparcialidade é muito fácil de resolver tecnicamente. As coberturas de guerra não são mais como no tempo de Robert Capa. Hoje, para se ter uma ideia, ao cobrir qualquer guerra, você será guiado por um dos lados envolvidos, e esse lado logicamente vai te mostrar o que deseja. Não há mais liberdade. Lembro que, há um tempo, um fotógrafo português estava aqui no Rio de Janeiro para fazer umas fotos na favela da Rocinha. Ele realmente entrou nuns lugares e situações que não são fáceis de achar. Todos ovacionaram. Mas, olhando para as fotos, você vê claramente que ele foi dirigido pelos traficantes. Os traficantes aparecem fazendo pose, de rosto coberto, como heróis. Eu pergunto: você não quer ser guiado pelo veículo em que você trabalha, nem pela polícia, mas quer ser guiado pelo traficante?!

CONTINENTE Em 2009, o jornalista Alexandre Belém perguntou ao curador Eder Chiodetto qual a opinião dele sobre a crítica fotográfica feita no Brasil. Ele não se delongou na resposta: “Ela existe?”. Onde está a crítica da fotografia? E qual seria sua necessidade?
GILVAN BARRETO A crítica realmente está capenga. Acho que pessoas como Diógenes Moura e Rosely Nakagawa deveriam escrever mais. Georgia Quintas deveria ser mais ouvida. Ela não tem espaço para escrever, escreve no blog dela (o Olhavê). O Chiodetto, não sei se ele sustenta a mesma opinião, mas ele é tão presente em tantas produções, como é que poderia ter essa função de criticar, não é verdade? A gente vê também a Simoneta (Persichetti) num espaço (do jornal Estado de S.Paulo). Mas realmente são poucos. Acho que por conta dessa falta de profissionais no mercado criam-se lacunas em que, de repente, um oportunista cresce e vira estrela do dia para noite. Eu mesmo já vi alguns textos sobre trabalhos meus, e a pessoa não entendeu absolutamente nada. A crítica guiaria sobre o que está acontecendo, ajudaria a explicar os novos movimentos, apoiaria o próprio mercado e mostraria o porquê de certo autor estar vendendo bem ou sendo bem-recebido.

CONTINENTE Quando um olhar mercadológico fere a intenção de uma fotografia?
GILVAN BARRETO Vemos agora, com essa falta de espaço de críticos, a implantação de uma cadeia empresarial. São modelos muito convenientes e de capitalismo selvagem tentando abocanhar todas as etapas de produção e divulgação. Imagine o conflito: eu tenho uma escola de fotografia, sou jurado em vários prêmios e curador. Então, é bem provável que eu vá elogiar um cara que é meu aluno, ou edita um livro comigo. O mercado é tão carente, que, intencionalmente ou não, essa assessoria, esse elogio é confundido com crítica. Há uma indústria da fotografia. Aprendemos a vender antes de entender. Enquanto a produção teórica está escondida nas faculdades ou em blogs, os fotógrafos estão sendo agenciados como jogadores de futebol. É negócio. Estão se espelhando em políticos. Há conchavos de todos os lados. E os que não estão com essa bola toda, planejam modelo parecido para conseguir crescer. É o retrato de um mercado ainda inconsistente, cheio de falhas. Só os “maiores” são favorecidos.

CONTINENTE Os iphones estão cotados como as novas câmeras fotográficas profissionais. Como você vê isso?
GILVAN BARRETO A gente tem de fotografar com o que tem à mão. A fotografia não é mais um mistério técnico. Se estiver com um celular, uma maquininha automática, vá fazer. O que me preocupa é a linguagem com a qual as pessoas fazem a fotografia. A técnica é muito bonita, mas não concordo que isso seja uma barreira. No Moscouzinho, eu cheguei a usar câmeras digitais semiprofissionais, outras de alta resolução, pinhole, analógicas. Eu uso muitas máquinas amadoras. A fotografia não pode estar presa somente ao dispositivo. 

CLARISSA MACAU, jornalista.

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