Crianças brincando na aldeia Demini. FOTO: Marcelo Lacerda/Divulgação
Agora que sabemos de onde vem esse documentário, podemos apontar seus caminhos. Uma versão especial foi apresentada no início do ano, na Cartier Fondation, em Paris, como parte da exposição Claudia Andujar – La lutte yanomami. “Era uma montagem bem reduzida, um extrato de Gyuri. Depois da França, essa exposição foi para Milão. Antes disso, em 2019, fomos ao México e lá Peter e eu mostramos o filme para o Exército Zapatista de Libertação Nacional”, recorda a diretora. Ainda no final de 2018, um projeção na Galeria Vermelho, em São Paulo, reuniu Mariana e os que com ela singraram os "mares verdes" da região amazônica – Claudia, Carlo, Davi e Peter. “Foi muito bonita, pois mostramos para a comunidade yanomami que estava por lá, para o pessoal do ISA. Além de Davi, tinha um outro xamã chamado Levi e tinha Bruce Albert. Foi um momento bem comovente”, lembra. ISA é o Instituto Socioambiental, ONG que existe desde 1994 com o propósito de defender os povos indígenas do Brasil, e Bruce Albert é o etnólogo francês com quem Davi Kopenawa escreveu A queda do céu (Companhia das Letras, 2015).
Para embarcar nessa travessia do primeiro longa-metragem - sua filmografia é composta pelos curtas Menino-Aranha (2008), A vida secreta das igrejas de Olinda (2012), Pausas silenciosas (2013) e Baleia Magic Park (2015), Mariana Lacerda se cercou de pessoas com quem, tal qual Claudia e Gyuri, mantém vínculos afetivos. Os dois diretores de fotografia são Pio Figueiroa, seu amigo de longa data, e Marcelo Lacerda, seu irmão. A Bebinho Salgado 45, produtora que divide com Marcelo e Flávia, sua outra irmã, encabeça os créditos ao lado da Jaraguá Produções, de Carol Ferreira e Luiz Barbosa, com quem a cineasta já havia trabalhado na série televisiva Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças. Com a amiga Paula Mercedes, que assina a montagem do documentário, ela divide o roteiro, e é de uma outra amiga, Joana Amador, o design de lettering e peças gráficas.
É bom sublinhar sua escolha pelo afeto, e sua compreensão e postulação de que isso é política, porque Gyuri se filia à pesquisa que Mariana empreende em seus projetos fílmicos, nos quais sobressaem a memória e o caminho empreendido para preservá-la. E, em um país inábil para lidar com memória e/ou preservação, o documentário termina por se fabular como um valioso registro, tanto porque evoca as origens de Claudia Andujar, suas raízes na Europa antes de chegar ao Brasil e se tornar fotógrafa renomada e crucial peça na defesa dos yanomamis, como porque mostra como a sensação de pertencimento se fortalece a partir de quaisquer elos afetivos que mantemos com nossas essências – a língua húngara de Claudia e Peter, a amizade e admiração que enfeixam ela a Davi e aos yanomamis, o amor e cuidado entre Claudia e Carlo.
Mariana, Peter, Claudia, Davi e os yanomami. FOTO: Marcelo Lacerda/Divulgação
“Os yanomamis usam a mesma palavra, napë, para se referir a homem branco e inimigo. Isso já quer dizer muito, não é? No passado, aldeias inteiras foram dizimadas e muitos povos indígenas foram devastados por causa do sarampo. Agora, esse tempo volta com uma outra doença de branco. O primeiro indígena que morreu de covid-19 no Brasil foi um yanomami”, pontua Mariana. Em Gyuri, ela oferece uma outra mirada, um caminho possível para uma relação de respeito entre os povos originários da floresta e todos que cruzam seus rastros. Estar no É Tudo Verdade em um momento em que Pantanal e Amazônia ardem em chamas, o ministro do Meio Ambiente revoga uma lei que protegia restingas e manguezais da especulação imobiliária e vinte mil garimpeiros rondam a terra yanomami é a prova de que o cinema é político e política.
“Na terra indígena yanomami existem 26 mil indígenas e essa mesma terra está sendo invadida por 20 mil garimpeiros. Para além de todas as tragédias ambientais, esses garimpeiros estão passando covid-19 para os indígenas. Enquanto isso, os xamãs estão rezando para que a pandemia não avance. Eles nos protegem e nós devolvemos o quê? Invasão de garimpeiros e esses incêndios. Por isso, é muito importante que as pessoas conheçam e assinem a petição Fora Garimpo, fora covid”, alerta Mariana Lacerda, aludindo à iniciativa de entidades como o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana e da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME) e Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), entre outras.
Gyuri fica “em cartaz” na plataforma do É Tudo Verdade por mais alguns dias. Rodado com recursos do Rumos Itaú Cultural, do Funcultura pernambucano e do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, o documentário terá que deslindar, para além do festival, seu novo percurso nesses tempos pandêmicos. “Estamos muito felizes com a exibição no É Tudo Verdade e nossa ideia é fazer Gyuri circular cada vez mais. O plano de lançamento prevê sessões em cidades com alta concentração de população indígena, mas tudo isso ainda está em suspenso por causa da pandemia. De qualquer forma, é nosso interesse que o filme chegue a mais e mais pessoas e vamos pensar com carinho em como tornar isso possível”, comenta a produtora executiva Carol Ferreira.
E se Mariana Lacerda resgata a tristeza inicial pela impossibilidade de lançar Gyuri com um manifesto pela floresta naquela sessão que não houve em março, ela mesma reconhece que o sentimento mudou. Seis meses depois, transformou-se em alegria pelo que já recebeu de retorno em poucos dias de exibição. “Muitas mensagens bonitas de gente que se viu tocada pelo filme, algumas escolas querendo exibi-lo... Isso já vale demais”, descerra a cineasta.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.