CONTINENTE Como encontrar o silêncio em meio ao turbilhão, à revoada de pessoas a falar o tempo inteiro – nas suas ligações, nas mensagens ou nos posts nas redes sociais?
PETER PÁL PELBART Por meio de dispositivos diferentes, que vão sendo inventados. Dou o meu exemplo. Não tenho celular, nunca tive, teria horror a ter. E me enerva muito perceber as situações em que o celular fatura o espaço ou interfere na minha vida. Também não tenho nada contra o celular; trabalho muito tempo em casa, mas sei que quem sai de manhã e só volta à noite precisa tê-lo, precisa dessa conexão. Não faço uma condenação da tecnologia em si, mas do lugar que foi tomando essa interconectividade non stop e invasiva. Mas não tenho fórmula nenhuma de como fazer. O que vejo é que se atingiu um limiar do intolerável em relação a isso tudo. Suspeito que há uma virada em pessoas que vão abandonando coisas que até ontem pareciam absolutamente imprescindíveis. De repente, largam o carro, até ontem fundamental, e passam a andar de bicicleta ou a pé. Essa rejeição maciça da tecnologia, de algum modo, é uma espécie de situação pouco apocalíptica; tudo parece descartável, tudo pode ser ressignificado. Hoje em dia, num certo sentido, é preciso produzir silêncio, criar esses silêncios que não estão dados. Uma vez, comprei um aparelho que fazia silêncio, um dispositivo que também fazia seu ruído. Não consegui o grau de autismo e de surdez que queria. Não é assim, pois, nessa concretude. É outra coisa. Mas, com essas deserções ativas, há um êxodo, provável, de certos hábitos que se tornaram quase uma natureza e talvez aí se criem outras coisas.
CONTINENTE “O problema não é que nos deixam sós, é que não nos deixam suficientemente sós.” Essa é uma frase de Deleuze que você resgata em um texto. Ante esse ruído generalizado, perdemos a capacidade de ouvirmos a nós próprios na solitude, de abrir espaço para a reclusão?
PETER PÁL PELBART Não necessariamente o silêncio é para ouvir a si mesmo. É uma condição para ouvir os outros, as outras vozes da História, as várias tribos que nos rodeiam. Creio que hoje há excesso de gregarismo. A vontade de estar junto o tempo todo, com todo mundo, não dá condição nenhuma de ouvir coisa alguma. A solidão não é essa solidão romântica, para se ouvir uma voz interna; é mais da ordem de uma solidão povoada. A solidão pode ser atravessada por várias vozes. Para mim, o ensinamento de Nietzsche com respeito ao gregarismo é totalmente válido. Ele diz que o espírito de rebanho é sempre da ordem da homogeneidade, de um consenso, de uma servidão. Portanto, um certo despregar desse gregarismo é uma condição para outra coisa, para certa singularidade, um dissenso, uma diferença. Não se trata do elogio da solidão enquanto tal, como o aspecto da insularidade, não é isso. É justamente o contrário: é preciso uma solidão para se atingir outras conexões que o próprio gregarismo impede.
CONTINENTE Esse comportamento de rebanho, de manada, é evidenciado nas conexões robustecidas pelo capitalismo, como você já colocou em um texto: “Esse capitalismo produz toneladas de uma nova e outra solidão e uma nova angústia – a angústia do desligamento; o capitalismo contemporâneo produz não só esta nova angústia de ser desconectado da rede digital, mas também a angústia de ser desconectado das redes de vida cujo acesso é mediado crescentemente por pedágios comerciais impagáveis para uma grande maioria”. Não seria essa a grande impossibilidade do silêncio?
PETER PÁL PELBART Esse é um campo de enfrentamento. Peguemos um autor como Franco Berardi, o Bifo, um filósofo e autonomista italiano que, nas décadas de 1960 e 1970, escrevia muito sobre uma noção de “neuromagma”. Ele defende que as pessoas já não discutem, argumentam e decidem, e, sim, são invadidas por ondas que ele chama de “neuromagma” – correntes psicoquímicas de medo, de pânico, de entusiasmo disso ou daquilo. Em um passado já muito remoto, era o sujeito racional que individualmente decidia sobre o que fazer. Hoje, esse mesmo sujeito está submetido a essas ondas, que exigem outra atitude. A ideia não é retornar saudosamente àquele indivíduo autônomo que foi, sei lá por quanto tempo, nosso ideal humanista, mas assumir algo desse caos contemporâneo e nele fazer algo, como produzir desvios. Uma coisa seria se relacionar com o presente de maneira entrincheirada: “Tudo é horroroso, vou aqui me encapsular numa resistência completamente radical e ficar à margem”. Essa seria uma maneira antiga de pensar a própria resistência. É possível produzir outras redes no meio desses influxos todos, produzir outros movimentos, individuais e coletivos. Apesar de gostar muito da imagem da solidão povoada, não necessariamente devemos tomar como literal. É possível estar em grupos, em coletivos, onde se inventem outros modos de “espaço-tempo”, outros ritmos e outras maneiras, inclusive, de poder efetuar trocas sem que alguém fale ou precise responder imediatamente.
CONTINENTE É essa produção de desvios como forma de resistência que de alguma forma orienta sua experiência com os membros da Cia Teatral Ueinzz?
PETER PÁL PELBART O povo que frequenta a Ueinzz já tem isso quase incorporado. Eles não precisam falar e ouvir o tempo todo. Não precisam trocar. Cada um está no seu planeta – se preciso, vai até Vênus, volta no meio e está tudo certo. Não precisa estar todo mundo atento igualmente, não existe esse tipo de grupalismo. Buscamos o contrário – a heterogeneidade na arte de acompanhar. Agora, mesmo numa atividade lírica como o teatro ou numa aula, é possível sustentar hiatos e perceber como essas interrupções podem ter efeito perturbador, no sentido mais interessante das palavras. As coisas podem estar soltas também, sem que isso represente uma catástrofe.
CONTINENTE Uma última pergunta: diante de tudo que discutimos, qual seria o maior desafio – individual e coletivo?
PETER PÁL PELBART Inventar dispositivos de interrupção. Surge-me a imagem de freios de emergência de trem. Acontece que, com essa freagem brusca, às vezes podem acontecer descarrilamentos. Que, muitas vezes, são e serão necessários.
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