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Silêncio: uma utopia cada vez mais improvável

Noções de quietude e de voluntária ação de calar, abster-se, podem transtornar uma sociedade que deliberadamente escolheu a algaravia e o ruído como estados de ser e comportar-se.

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2016

Foto Divulgação

Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos (…)Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em frente ao nada ou ao absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma alma fútil. Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio.
(Miguel Sousa Tavares, No teu deserto)

Na novela No teu deserto, escrita pelo português Miguel Sousa Tavares, um fotógrafo rememora, duas décadas depois, uma viagem ao Saara, empreendida na companhia de uma mulher 15 anos mais jovem. Ao longo da narrativa, o deserto e o silêncio alternam-se como condutores, fios com os quais é tecida uma história que confronta ação e memória, passado e presente. A onipresença do “nada”, símbolo da imensa, despovoada, vazia e arenosa região do norte da África, contrapõe-se ao excesso dos tempos atuais. Em 2009, ano de publicação do livro, Sousa Tavares contribuía, pois, para uma revisão possível do conjunto de aspectos que Sigmund Freud (1856-1939) descrevera como “o mal-estar na civilização” em 1930. Há pouco silêncio na existência contemporânea, observam o personagem principal e o próprio escritor. Há pouco nada no maremoto de ruído, na avalanche de barulho e no tufão da hiperconectividade.

“As coisas mudaram muito, Cláudia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contatos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo”, diagnostica o protagonista sem nome de No teu deserto. O mundo atual é do estrondo; da explosão traduzida nas pequenas bombas e outros ícones emoji que todos usam em seus smartphones ou tablets; e da logorreia generalizada na Torre de Babel em que se converteu o planeta Terra – menos pela existência de centenas de idiomas, e, sim, porque todos falam e ninguém escuta.

O silêncio surge quase como uma utopia que não se resume, contudo, à completa ausência de som ou a um estado de mudez ou apatia. Perceba-se o exemplo de The Silent University, a Universidade do Silêncio, criada em 2012 como uma plataforma autônoma de troca de conhecimentos por refugiados, migrantes e pessoas em busca de asilo. Com o intuito de promover rupturas nos métodos coloniais de ensino e aprendizagem, e propiciar um espaço para que acadêmicos possam permanecer na ativa quando apartados da sua pátria, já se espalhou pela Inglaterra, Alemanha, Suécia e Jordânia. Sua missão, como atesta um parágrafo em thesilentuniversity.org: “O propósito da Universidade do Silêncio é desafiar a ideia do silêncio como um estado passivo e explorar seu potencial poderoso através da performance, da escrita e das reflexões grupais”.


Foto: Divulgação

Silenciar é preciso, tanto para que mens sana in corpore sano, ditado em latim que determina uma mente sã em um corpo são, como para que a vida em coletividade tenha uma viabilidade concreta e não apenas aparente. “Acredito que estamos deixando de ouvir nós mesmos, em primeiro lugar, e, por consequência, deixando de ouvir os outros. Penso no silêncio como contraponto do barulho e acho que muito dos meus trabalhos tentam dizer sobre a necessidade de se prestar atenção naquilo que nos passa desapercebido, nas coisas que estão à margem, no insignificante”, pondera a artista visual Rivane Neuenschwander, uma mineira que percorreu o mundo com obras que evidenciam, em diferentes suportes, desdobramentos e impasses da linguagem e do agora, que há pouco voltou ao Brasil após uma temporada na Inglaterra.

[…]
Rivane é uma artista da contemporaneidade, na acepção burilada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben em O que é o contemporâneo? E outros ensaios, lançado no Brasil pela Argos, em 2009. Segundo Agamben, “o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo” – tempo este que carrega em si uma inevitabilidade, com seu dorso “fraturado”, no qual “nós nos mantemos exatamente no ponto de fratura”. Há trabalhos dela nos acervos do Guggenheim Museum e do MoMA, em Nova York; na Tate Modern, em Londres; na Fundación Arco, em Madri; e em Inhotim e nos museus MAM/SP, MAM/RJ e Mamam/Recife.

Muitos deles agudizam a sensação de fratura. Na instalação […], de 2004, máquinas de escrever com teclados sem letras eram colocadas para que com elas se pudesse interagir. Na série Zé Carioca (2003-2005), trechos de histórias em quadrinhos protagonizadas pelo malandro criado por Walt Disney (1901-1966) apresentavam balões sem texto algum. “A ideia era subverter a linguagem, tirando letras e deixando apenas sinais de pontuação ou espaços em branco, para que o visitante pudesse escrever algo que lhe fosse compreensível, mas não legível para o outro, ou para que pudesse projetar sua ‘fala’, no caso dos balões em branco. O que se passou em […] é que os visitantes começaram a usar os pontos a fim de escrever palavras ou frases, ou seja, insistiram na comunicação, subvertendo a minha pequena subversão. A ideia de pausa, suspensão e tempo estão, sim, presentes nessas obras, porém mais evidente no caso de Um dia como outro qualquer, onde os números nos relógios de flipar foram substituídos por zeros”, explica a artista visual.

Um dia como outro qualquer, mostrada com seus 28 relógios na 28ª Bienal de São Paulo, em 2008, reitera a noção de que é preciso uma pausa e exige mais daquele que o observa, talvez a cumplicidade nessa constatação de que se deve zerar o tempo para tudo alcançar um sentido maior. Aproxima-se, assim, da temporalidade dilatada de A terra e a sombra, longa-metragem do cineasta colombiano César Augusto Acevedo. Exibido em Cannes em maio de 2015, de lá saiu com o prêmio Camera d’Or, concedido ao melhor filme em todas as mostras do festival. Ao conversar com a Continente, quando veio ao Brasil para acompanhar as exibições na 39ª Mostra de Cinema de São Paulo, Acevedo indicou: “Quis falar da cultura do meu país com temas universais como a família, o valor da terra e a culpa do progresso que arrasa tudo por onde passa. Na Colômbia, estamos acostumados com um tempo no cinema que é violento e rápido, como na maioria das produções americanas. Meu filme tem poucos diálogos”.

No enredo, um patriarca retorna à casa onde morou com a família para rever a esposa que abandonara e o filho, agora já pai e às portas da morte depois de anos lidando com a colheita da cana. A ação transcorre em longos planos-sequências e com escassas falas, aludindo a obras de cineastas que Acevedo admira, como o russo Andrei Tarkvoski (1932-1986), o francês Robert Bresson (1901-1999) e o tailandês Apichatpong Weerasethakul. Os personagens foram vividos por atores não profissionais – o principal deles, José Felipe Cardenáz, foi descoberto ao servir café no set. A preponderância do silêncio, conforme o diretor, foi uma opção para validar os “personagens que não podiam expressar os sentimentos mais profundos através da palavra”. “Faz sentido para mim um cinema que aponta mais ao sentimento e às catarses. Interesso-me pela construção poética, pelo tema do tempo e por tudo que tenha um sentido mais profundo do que algo simplesmente jogado na tela. Já existe muito imediatismo no mundo”, expôs César Augusto Acevedo.

OPOSTO DA PACIÊNCIA
O imediatismo é motor do tumulto cotidiano e oposto da paciência, característica essencial para que se atinja qualquer resultado. Será que ainda existe alguém com a tenacidade de Ahab, o monolítico protagonista de Moby Dick, clássico literário escrito pelo norte-americano Herman Melville (1819-1891) em 1851? Durante anos, ele acalenta a vingança contra a baleia-branca que o decepou a perna. E, durante outro bom par de anos, comanda seus marujos na ânsia de concretizar tal revanche. No romance, o tempo, na terra ou em alto-mar, parece desacelerar.

Em 7 de março de 1876, o escocês Alexander Graham Bell (1847-1922) recebeu o número 174.465 no escritório de patentes dos Estados Unidos. Era o telefone, marco zero de sucessivas revoluções nos modos de comunicação entre as pessoas. Tornava-se mais fácil, então, dispender horas de conversas, sérias ou banais. Ainda assim, um século depois se podia exigir “uma pausa de mil compassos”, como canta Paulinho da Viola no samba Para ver as meninas, gravado em 1968. “Quem sabe de tudo não fale/quem não sabe nada se cale”, ele admoesta. Nos versos iniciais, o recado, por acaso dado no mesmo ano em que o país via o recrudescimento da ditadura militar com o Ato Institucional 5, era direto: “Silêncio, por favor”.

Hoje, “uma pausa de mil compassos” é raridade. Para obtê-la, que se cave uma conexão com si próprio ou que se opere em grupo para “produzir silêncio, criar esses silêncios que não estão dados”, como reflete o filósofo húngaro radicado no Brasil Peter Pál Pelbart, em entrevista à Continente (leia na página 46).

SOSSEGO
A meditação é uma via adotada por milhões. “Há muita competição na vida e é por isso que a meditação é tão importante hoje. Cinquenta anos atrás, nem era assim, porque a vida das pessoas não era tão corrida”, sustenta o Swami Atmanand, um dos líderes espirituais indianos da Arte de Viver, organização não governamental fundada em Bangalore, em 1981, por Sri Sri Ravi Shankar. Foi Shankar quem inventou a técnica de respiração chamada sudarshan kryia, ensinada através dos cursos que a entidade promove em mais de 152 países.

Atmanand – um swami é semelhante a um monge, no celibato e na abdicação da vida própria para se dedicar aos outros – é entusiasta do sossego. Em várias metrópoles do planeta, incluindo o Recife, já ministrou um curso chamado Arte do silêncio. A experiência consiste em passar quatro ou cinco dias de imersão completa – os participantes entregam seus telefones celulares, já desligados, no minuto em que chegam às instalações, normalmente um hotel ou condomínio em bairros ou municípios afastados dos grandes conglomerados urbanos (em Pernambuco, por exemplo, esse curso já aconteceu em Aldeia, município de Camaragibe, e em Gravatá, a 85 km do Recife). São jornadas diárias com exercícios de ioga, sessões de respiração e práticas meditativas avançadas. “Todo mundo devia fazer esse curso. Confiança e criatividade não nascem da sua perna ou do seu fígado, e, sim, da sua mente. Só podem nascer em uma mente sem estresse. Uma mente sem estresse precisa do silêncio”, ensina Swami Atmanand.


Foto: Divulgação

Ele prossegue: “Nesse ritmo rápido de vida, temos que aprender a acalmar a mente. Se ela estiver relaxada e em paz, você pode fazer qualquer coisa. O tempo inteiro as pessoas estão conectadas. Você sabia que, nos Estados Unidos, já inventaram os centros para viciados em internet? Sim, centros de desintoxicação. Para fazer algo para sua mente, silêncio, meditação e pranayama ajudam”. Pranayama é uma palavra em sânscrito derivada de prana, que significa fonte de energia vital. Quando o prana está baixo, é imperativo restaurá-lo. Indagado se exercícios físicos não seriam ferramenta poderosa para se conectar consigo próprio e reparar o prana, o Swami Atmanand responde: “Você corre e esvazia sua mente, mas se sente cansado ao final. É como ir para uma festa e voltar para casa exausto, com a energia sugada. Com a meditação, não. É relaxar durante a atividade, é silenciar e ficar parado no movimento, e sair com a cabeça vazia e o coração cheio de amor. É a combinação certa para ter um corpo sem estresse e uma sociedade sem violência”.

SONS AO REDOR
O ato de silenciar no movimento e relaxar na atividade é rotina para o cantor lírico Marcelo Ferreira. Atualmente radicado em São Paulo, o barítono recifense, formado em Música pela UFPE, com mestrado, doutorado e vários prêmios obtidos nos Estados Unidos, é capaz de se concentrar em meio ao caos. “As pessoas ficariam surpresas com o quão barulhenta é uma escola de música. O estereótipo de um músico é de uma pessoa em isolamento, passando horas com a partitura em total concentração. A verdade, principalmente enquanto estudante, é uma pessoa praticando piano numa sala, ouvindo o trombonista na sala ao lado, e uma soprano do outro lado. Acredito que por isso nos acostumamos com o barulho. Nossa vida é, por definição, barulhenta”, situa Ferreira, que, no palco, como Escamillo, em Carmem de Bizet, ou como Figaro, em La nozze de Figaro, é capaz de emitir sons de até 110 decibéis – “o correspondente ao nível de ruído de uma motosserra”, diz.

Ao cotejar “a vida feita de som e fúria”, no fraseado de William Shakespeare (1564-1616) em um dos trechos de Macbeth (1607), e uma existência de pausas silenciosas almejada por muitos, Marcelo Ferreira define a música à luz do equilíbrio: “Da mesma forma que não existe luz senão em contraste com a escuridão, a delícia das pausas só é possível devido à fúria do som. Mas a música clássica é marcada por fortes contrastes, então é necessário um certo nível de silêncio pouco encontrado hoje em dia para escutá-la, seja ao vivo ou por gravação”. Ele adverte, ainda, para o estrépito generalizado e irrefreável. “O ruído fora de controle atualmente é metafórico. É o ruído do multitasking, de mensagens chegando o tempo todo, da compulsão em se manter conectado. Esse ruído, sim, é extremamente prejudicial à concentração, fundamental para o trabalho do músico. Esse é um problema recorrente nos meus alunos mais jovens.”

O que diriam tais alunos se fossem convidados a assistir a uma reencenação de 4’33”, peça que o compositor e teórico musical norte-americano John Cage (1912-1992) concebeu em 1952? Executada por um pianista que se prepara, mas não chega a tocar no instrumento, leva o público a ouvir não uma sequência de notas, mas o seu próprio alarido. Para Cage, não existia o silêncio como uma unidade mítica e inquestionável, mas a oportunidade, ao silenciar, de receber e reagrupar mentalmente os sons ao redor. Partindo dessa concepção, pode-se inferir que, assim como a fruição do silêncio, a perseguição por essa calmaria, pelo “nada”, possui contornos distintos a quem se dispõe a atravessá-la.

COMO ÁRVORES
No momento atual da vida da arquiteta e terapeuta floral pernambucana Telma Buarque, há mais de três décadas trabalhando com consciência energética criativa, calar-se é uma opção contra reações extremadas. “O silêncio é uma força. Tem a energia do yin, mais feminina, de quietude, em oposição ao barulho, ao ruído e à estridência do yang. Como ficar na paz hoje, como ficar em silêncio? Atualmente, tento canalizar para ser menos reativa, por exemplo, ao dialogar com pessoas queridas sobre questões políticas e sociais do Brasil”, comenta Telma, uma das pioneiras na adoção dos florais em processos terapêuticos no Recife.

A terapeuta floral alude aos cinco elementos fundamentais – terra, água, fogo, ar e éter – e incentiva a comparação entre os seres humanos e as árvores. “Elas são a expressão do silêncio e da quietude. São fortes, produtivas e não reagem, simplesmente são. Existem árvores com três mil anos, como os grandes carvalhos. Fazem a travessia de cada fase de suas vidas buscando a plenitude: sabem que vão nascer, crescer, reproduzir e morrer.” Telma relata que alguns pacientes não conseguem aderir ao lúdico exercício de se imaginar como uma mangueira ou um baobá. “Alguns alegam que não possuem lembranças de árvore alguma. Então eu reflito: como posso responsabilizar somente a tecnologia e o mundo virtual por essa hiperconectividade, se as pessoas se distanciaram da natureza? Se sentem nojo de andar descalças, de pisar na areia da praia, de sentir o chão de terra?”, inquire.

Para atingir a estabilidade que o silêncio pode propiciar, aprofundar-se dentro de si é requisito crucial. “Mas as pessoas não querem ancorar ou mergulhar na sua subjetividade para entender a importância de escutar a si próprias e assim conseguir paz. O silêncio é uma abertura para reconhecer, também, as polaridades que trazemos dentro de nós – sem artificialismo e com discernimento para ser fiel ao que somos e ao que estamos vivendo. Com o fogo, podemos transformar o que é incômodo; com a água, ter fluidez para limpar os excessos; com o ar, obter a delicadeza que as flores têm para se abrir; e, com o éter, promover trocas e fortalecer a crença no projeto individual e nos ideais coletivos”, ilustra Telma Buarque.

O recolhimento e a introspecção são comportamentos antagônicos à exposição que se vê nos ruidosos círculos de convivência. Surgem, no entanto, como indispensáveis diante do colapso da Torre de Babel nossa de cada dia. Consentir o silêncio é, também, ofertar a chance de aperfeiçoar a compreensão do contemporâneo, no qual a intempestividade nos impele “a reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós”, nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben. E reconhecer, como diria o protagonista sem nome de No teu deserto, de Miguel Sousa Tavares, mais uma vez a mirar o deserto sob o véu das lembranças, que “a coisa mais difícil e mais bonita de partilhar entre duas pessoas é o silêncio”.

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