CONTINENTE A senhora realizaria reportagens importantes para a Realidade, como a dos jagunços, no Nordeste. Como foram esses trabalhos?
CLAUDIA ANDUJAR Para a Realidade, fiz trabalhos de 1966 a 1970. O com os jagunços foi uma sugestão deles. A proposta era entrevistar, ou melhor, conhecer fotograficamente esses jagunços. Contar suas histórias. Na revista, eu tinha a reputação de ser uma pessoa que ia aos lugares mais difíceis, às situações mais estranhas. O fato é que me dou bem em qualquer lugar. E não costumava viajar junto com o repórter. Geralmente, chegava depois de ele fazer as entrevistas. Eu preferia ir sozinha, sem alguém para me dizer: faz isso, faz aquilo. Enfim, sempre gostei de procurar os elementos importantes da reportagem, sozinha. Realizei um trabalho fotográfico com parteiras no Rio Grande do Sul. Essa reportagem ficou famosa. Fotografei o nascimento de uma criança. A Realidade colocou a foto da criança saindo da barriga na capa. A Igreja, e isso descobri depois, movimentou-se para retirar a revista de circulação. E conseguiu.
Foto: Claudia Andujar/Divulgação
CONTINENTE A senhora viajou aos Estados Unidos para cobrir os levantes dos movimentos de afirmação negra. Gostaria de falar um pouco sobre essa experiência?
CLAUDIA ANDUJAR Na época, estava casada com um norte-americano, fotógrafo, George Love. Ele era negro, da Carolina do Norte. Eu o conheci por ser fotógrafo e por ter publicado algumas reportagens, em especial uma sobre o Rio de Janeiro, que saiu pela revista Life. Procurava entrosar-me e acabei conhecendo o George. Em 1966, quando a Realidade começou a funcionar, trabalhamos os dois para a revista. Um editor quis fotografar a situação dos negros nos EUA. Pediram que o George fosse fazer e viajei com ele. Era a época dos levantes em Washington. George não se sentiu à vontade para fotografar e acabei indo no lugar dele. Foi complicado. Tentei entrar nos guetos, mas fui retirada de lá pela polícia negra. Pensaram que eu queria denunciar alguma coisa: registrar de maneira negativa o movimento deles. Tentei explicar que não, pois, trabalhando para a imprensa do Brasil, eu tinha todo interesse naquela mobilização, que aquilo também era algo importante para cá. Mas era realmente um momento muito complicado.
CONTINENTE A aproximação com o ser humano excluído sempre foi uma preocupação?
CLAUDIA ANDUJAR Meu interesse por fotografia sempre foi ligado a uma coisa interna, a uma razão minha, sem a finalidade de trabalhar para jornais ou revistas. Claro, no início era um meio totalmente novo. E procurei maneiras de me expressar que refletissem aquilo que sentia diante das coisas, das pessoas e das situações. Sempre tive essa disposição, esse desejo. Mas não possuía a técnica. O George Love era um fotógrafo formado nos EUA e tinha muito mais conhecimentos do que eu. Ele me abriu portas, nesse sentido. Portas para expressar melhor o que queria através de uma técnica mais avançada do que a que eu possuía. Ele era um fotógrafo excelente. Com ele aprendi sobre os filtros, sobre a revelação de filmes. Mas o fotógrafo que mais admirei nesse período de aprendizado foi o W. Eugene Smith. A fotografia dele, a sua maneira de se aproximar das pessoas estava mais perto daquilo que eu procurava. Com isso, não quero dizer que o George não me ajudou e, sim, que o nosso interesse, nosso approach era diferente. Eugene Smith tinha uma fotografia muito ligada ao humanismo, aquilo que sempre procurei. A última reportagem que fiz para a Realidade teve como tema a Amazônia. Foi a capa. Vários fotógrafos colaboraram, inclusive o George. Nós não trabalhávamos juntos, como eu já disse. Mas é interessante saber que, para esse número da revista, eu fotografei tudo do chão, enquanto o George fotografou tudo do ar, do avião. Sempre procurei o contato com as pessoas, ele, as paisagens.
CONTINENTE A partir daí, acontece sua aproximação definitiva com os índios? CLAUDIA ANDUJAR Em 1970, deixei a editora Abril e decidi dedicar-me a um trabalho exclusivamente meu, entre os índios ianomâmis, que conheci nessa última reportagem. O primeiro contato aconteceu numa localidade chamada Maturacá (AM). Encantei-me e procurei uma maneira de chegar a eles. Tive a sorte de conseguir duas bolsas, que ajudaram a me dedicar unicamente aos ianomâmis. Fiquei entre 1971 e 1977. No começo, eram idas e voltas, fiquei meses lá, depois voltei para São Paulo, para revelar os filmes, ver o que tinha produzido, como eu deveria continuar. Realizei muitas gravações. Queria entender quem eles são, qual a sua mitologia, todo o sobrenatural – o começo do mundo, o trabalho dos xamãs, tudo o que significavam seus ritos.
CONTINENTE Penso que a sua abordagem do xamanismo demonstra a complexidade do desafio que é se aproximar das representações do outro, com uma técnica e linguagem estrangeiras a elas, sem eclipsá-las.
CLAUDIA ANDUJAR Cada imagem tem uma história. O xamanismo foi algo que explorei muito, mas acabou sendo um trabalho não tão conhecido como os Marcados. Quando eles tomam alucinógenos, explicam que entram numa fase de sonho. Por isso que depois chamei essa parte do livro (A vulnerabilidade do ser) de Sonhos. Sonhos em que eles veem a ligação que o ser humano tem com a natureza.
CONTINENTE Seu trabalho com os ianomâmis é artístico e político. Gostaria de falar um pouco sobre a exposição Marcados, que veio ao Recife?
CLAUDIA ANDUJAR Marcados veio mais tarde. Durante a minha estada lá, foi construída a Rodovia Perimetral Norte. Foi uma invasão do território ianomâmi, com desmatamento e construção da estrada. Os índios sofreram muito. Entraram em contato com doenças desconhecidas. Aldeias inteiras sumiram. Fiquei muito tocada, tanto que, em 1977, quando fui expulsa da área pelo governo, fiquei desesperada. Juntei-me a uma organização em São Paulo, chamada Fundação Pró-Índio, formada por antropólogos, cientistas, índios e pessoas que lutavam por suas causas. Eles me perguntaram se eu concordava com a criação de uma ONG que pudesse lutar pela defesa da terra, da vida e da cultura dos ianomâmis. Dediquei-me a esse trabalho, que resultou no reconhecimento da terra indígena, em 1992. Eu ia menos às aldeias, mas utilizava o trabalho fotográfico para falar dos ianomâmis, para publicar quando foi possível e fazer uma campanha internacional. Nós nos voltamos para questões de saúde. Com dois médicos, começamos esse trabalho. Para fazê-lo, precisávamos conhecer os indivíduos. No começo, acompanhava os médicos e fotograva as pessoas que eram atendidas. As fotos foram utilizadas em fichas, elaboradas a partir de exame médico. Agora, a ideia de usar isso numa exposição aconteceu muito mais tarde, na 27ª Bienal.
CONTINENTE A senhora costuma dizer que não é nem jornalista nem antropóloga. O que deseja com a reivindicação do lugar de fotógrafa?
CLAUDIA ANDUJAR Sou uma pessoa que gosta de trabalhar sozinha. Sou autônoma em tudo que faço. Eu absorvi muito da cultura ianomâmi. A maneira de ver o mundo, as relações dos seres humanos, os mundos vegetal e animal, as constelações. Tenho uma admiração muito grande pela visão deles. Minha infância, na Hungria, o fato de toda a família do meu pai ter sido morta, todos eles terem sido marcados, tatuados com números. Sou, como posso dizer, uma pesquisadora da alma. Hoje, minha ligação com eles é afetiva. Onde posso, eu ajudo. Pretendo construir um banco de dados digitalizados, com todos os registros. Gostaria de deixar isso para eles.
PAULO CARVALHO, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE.