Parecia um Rothko legítimo, deslumbrante em suas formas e força. Dali em diante, a presença de Glafir Rosales na Knoedler se torna constante e ela continua trazendo grandes obras desse cliente misterioso. Na suas justificativas, nomes de pessoas reais dos círculos artísticos norte-americanos da primeira metade do século XX são citados e tudo parece bastante plausível. Isso, até um pigmento que nunca poderia ter sido usado por Pollock, devido ao seu ano de fabricação posterior à morte do artista ser notado durante um processo de autenticação, fato que desencadeia a descoberta do longínquo esquema.
Mais do que contar uma excêntrica história de fraude, Fake Art: uma história real nos instiga a pensar quais valores regem esse universo e seus porquês. Autenticidade é a palavra-chave que conecta todos eles. Walter Benjamin já havia se debruçado sobre a questão da originalidade de uma obra no clássico A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), indissociável do que ele denomina de hic et nunc, o “aqui e agora” da obra original.
Cerca de 45 anos depois, o sociólogo Howard Becker também vai procurar entender a importância da autenticidade na arte, ao estudar detalhadamente as relações sociais, a divisão do trabalho e as convenções que regem o universo artístico em seu livro Mundos da arte (1982). Suas análises oferecem chaves interpretativas muito interessantes para irmos além do recorte mostrado no documentário. Uma leitura sociológica do tema nos instiga a pensar também nas relações de poder que se estabelecem entre artistas, galeristas e compradores, que ultrapassam meros valores estéticos.
“Se a nossa opinião acerca do artista se baseia na sua obra, temos necessariamente de saber quem a realizou, e a obra merece, consequentemente, a avaliação que fazemos dela e de seu criador”, escreve Becker. É óbvio que, no caso de pinturas de grandes artistas como Rothko, Pollock e Motherwell, há também em jogo muito em dinheiro e toda uma cadeia de profissionais que dependem da veracidade da obra em questão para que as transações sejam realizadas. Em O espelho infiel: uma história da arte e do direito, livro lançado no final do ano passado pela Nova Fronteira, o advogado José Roberto de Castro Neves elenca alguns fatores que tornam uma obra de arte especial e refletem diretamente no seu valor: “de todos, sem sombra de dúvida, a autenticidade se revela como o mais relevante”, afirma.
Ann Freedman era a diretora da galeria na época dos acontecimentos. Foto: Divulgação
Essa hipervalorização do autêntico e da verdade por trás da autoria da obra nos leva a outro questionamento: qual o valor da pintura em si, uma vez descoberta a farsa? É possível continuar apreciando-a esteticamente ou ela perde qualquer aspecto de beleza, quando a verdade sobre sua procedência vem à tona? Ela “emociona pelo seu autor ou pelo que ela é?”, como indaga José Roberto. Aqui novamente podemos recorrer a Becker: “(...) a reputação de um artista é o resultado da soma das apreciações feita a toda sua produção. Cada obra atribuída de forma definitiva acrescenta ou subtrai algo ao total que nos permite medir a grandiosidade deste artista. É por isso que o plágio suscita reações tão violentas. Não se trata apenas de um bem que é roubado, mas também do fundamento de sua reputação”, pontua o sociólogo.
Em nos depararmos com casos como o da galeria Knoedler é quase impossível não pensar também na atuação do falsário que também é, afinal, um artista. Glafir Rosales agia com a ajuda de seu namorado, o espanhol José Carlos Bergantiños Díaz, encomendando quadros ao pintor Pei-Shen Qian, que se formou na China copiando grandes mestres, uma tradição secular de estudo do desenho e da pintura.
Preciso nos detalhes, Qian conseguiu enganar os maiores especialistas nos artistas que imitava e emocionar grandes apreciadores no mundo todo. Aos olhos dos que foram enganados, ele é um falsário criminoso, mas há quem possa considerá-lo um gênio. Uma contradição até cômica para esse mundo fechado e exclusivo da arte enquanto mercadoria de luxo. Ann Freedman conta, no início do filme, que certa vez alguém teria perguntado ao diretor do Metropolitan Museum of Art quantas obras falsificadas ele acha que poderiam estar no museu, ao que ele respondeu: “Eu não faço ideia”.
VALENTINE HEROLD, jornalista e mestre em Sociologia.