Curtas

Desengaiola

Quatro artistas se juntam no Rio de Janeiro para gerar um álbum audiovisual que abarca 18 faixas com “samba-poesia” e diversas referências brasileiras

TEXTO Michele Petry

30 de Março de 2023

Moyseis Marques, João Cavalcanti, Alfredo Del-Penho e Pedro Miranda

Moyseis Marques, João Cavalcanti, Alfredo Del-Penho e Pedro Miranda

Foto André Rola/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Um encontro de músicos num período de isolamento e suspensão da vida social levou à criação de um audiovisual com 18 canções acrescidas de imagens do local em que ficaram recolhidos para a gravação do projeto, Paty dos Alferes (RJ), além de imagens visuais e sonoras que o amplo universo das músicas permite percorrer. 

Obra de Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, Desengaiola reúne, de forma singular, os quatro artistas que atuam paralelamente em carreiras individuais. Alfredo atua com a Companhia Barca dos Corações Partidos; João fez o recente álbum Ivone Rara; Moyseis lançou o single Na matriz; Pedro Miranda realiza seu ensaio aberto Voz e violão no Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro.

Álbum indicado ao Grammy Latino 2022, Desengaiola foi gravado em outubro de 2020, em plena pandemia, tendo sido anunciado, inicialmente, com quatro faixas no EP Alagados (2021) e lançado em 2022. Desde então, os artistas levaram o show para seis estados do país, pretendendo continuar a divulgação e possivelmente o projeto: “Essa junção de nós quatro gera uma marca, uma realização que pode ser revisitada”, diz João Cavalcanti. 

O trabalho audiovisual traz registros dessa vivência que potencializam as canções. São cenas dos arredores e do interior da casa em que estiveram instalados que marcam a abertura ou a execução das faixas, revelando um movimento do exterior para o interior e do interior para o exterior, acompanhando a própria direção do repertório escolhido. O álbum inicia com Alameda Palmares e Luz do meu terreiro (de autoria dos quatro músicos), tematizando o processo de composição, o ato de cantar e a própria parceria, que vem desde antes da formação do coletivo Segunda Lapa. Encerra com Fuzuê, um convite para a celebração da vida. 

Desengaiola apresenta imagens que remetem ao “samba-poesia”, essa junção de melodia e letra capaz de sensibilizar pela dupla linguagem e amplificar o universo de referências. Na obra, encontramos imagens da música popular brasileira, do Brasil, do Nordeste e do Rio de Janeiro. Rosa canção, que tem como referência o espetáculo Rosa de ouro (1965), produzido por Hermínio Bello de Carvalho, é uma das músicas que remete a nomes do samba como Jair do Cavaquinho (1922-2006), Aracy Cortes (1904-1985), Paulinho da Viola, Clementina de Jesus (1902-1987), Elton Medeiros (1930-2019) e Anescarzinho do Salgueiro (1929-2000).

Boas intenções cita Noel Rosa (1910-1937) e Poeta é outro lance enaltece Chico Buarque, Paulo Pinheiro, Nei Lopes e Aldir Blanc (1946-2000). Os poetas Vinicius de Moraes (1913-1980) e Mário Quintana (1906-1994) são lembrados implicitamente pelos artistas em Diplomata e Desengaiola. A relação entre o samba e a poesia aparece como questão em Pra quem quiser escutar e Poeta é outro lance, e como menção nas já referidas Rosa canção e Luz do meu terreiro. As citações do álbum à história da música popular brasileira aparecem, por exemplo, pela incorporação dos seus gêneros (o forró, o frevo-canção, o baião, o coco, o pagode, o maracatu) em Diplomata, dos seus instrumentos (berimbau, xequerê, sanfona) em Encanto e dos lugares de encontro para o choro, o forró e o pagode no Rio de Janeiro, em Vontade de sair.

Essa diversidade musical, que marca o Brasil, o Nordeste, o Rio de Janeiro e a própria reunião de Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, se traduz na complexa construção das 18 composições do álbum, seja pelo uso de violão, violão de sete cordas, tamborim, flauta, tantan, ganzá, pandeiro, cavaquinho, zabumba, triângulo ou berimbau, seja pela experiência estética e cultural a que se entregaram os artistas. 

A partir dela, eles recuperam a tarefa da música (como em Diplomata e Encanto), a crítica social com a memória de um Rio de Janeiro cruel (que reside em Alagados, regravada d’Os Paralamas do Sucesso, de 1986), a reflexão existencialista sobre a contradição do ser humano nas suas diferentes possibilidades de se constituir (por meio das metáforas do balão, da embarcação e do vulcão em Nada não), ou mesmo daquilo que lhes é próprio (o riso, objeto de Meu pecado é sorrir, ou as paixões, de Pó Pará e Nem misturado, nem junto). 

As composições que integram o álbum são predominantemente do quarteto, que estende a parceria. Puro ouro, de Joyce Moreno; Gatilho, composição com Teresa Cristina; Fuzuê, com Chico César; e Vontade de sair, com Cristóvão Bastos. 

Trata-se de um álbum histórico, feito em sincronia com os eventos do tempo no qual foi produzido e divulgado, e que se apresenta como registro do samba brasileiro e da sua geração atual na tarefa de perceber e emprestar voz à realidade e aos sentimentos do mundo. 

MICHELE PETRY, historiadora com pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), na Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica. Integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).

Publicidade

veja também

A mágica de iludir e encantar

Gráfica Lenta no Vale do Catimbau

Adeus a Riva