Num paísmarcado pela miscigenação, e, consequentemente, por uma identidade cultural múltipla, o contraditório torna-se inerente ao debate sobre o fazer artístico. Isso porque, ao mesmo tempo em que há a demanda por uma linguagem local, que expresse essa identidade singular como forma de destacá-la perante a multiplicidade do próprio país, há uma imposição – interna e externa – por se encaixar num sistema global. Nesse contexto, o recém-lançado livro Contraditório: arte, globalização e pertencimento, do crítico de arte e curador Moacir dos Anjos, pretende mergulhar nessas questões que permeiam a produção contemporânea nas artes visuais.
Tendo como ponto de partida a existência de questionamentos que seguem relevantes para pensar o tempo e o lugar de pertencimento, sendo responsáveis por determinar o modo como as sociedades se reproduzem – perpetuando ou mudando as concepções –, a obra se debruça sobre os impactos da globalização nas formas de representação desse pertencimento simbólico aos “espaços vividos”. Trata-se da negociação constante, feita pelos artistas, entre a tradição estabelecida ao longo de décadas e a influência do repertório mundial.
Por meio de artigos publicados nos últimos anos e textos inéditos, Contraditório se divide em duas partes: cinco ensaios centrais dedicados a temáticas mais amplas, como noções de globalização e localidade, gambiarra e sotaque, além da defesa de uma arte e curadoria menores; e oito sucintas investigações acerca de trabalhos dos artistas Rivane Neuenschwander, Bouchra Khalili, Emmanuel Nassar, Eustáquio Neves, Christine Meisner, Regina Parra, Paulo Nazareth e Cildo Meireles.
No desenrolar da leitura, é possível perceber a existência de questões que percorrem quase todos os textos, numa espécie de “mote”. Segundo o autor, isso se dá pela tentativa de apreendê-los – mas nunca por inteiro – sob diversas perspectivas. Em contrapartida, há pontos levantados que são singulares de um dado contexto ou referentes à produção de um artista específico, mesmo que estejam ancorados ao tema geral da obra.
Já no primeiro ensaio, o autor destrincha a complexa relação da arte feita no Nordeste do país atrelada à ideia de tradição. Ele se propõe debater sobre a possibilidade da lógica de pertencimento – em outras palavras, das ligações que desenvolvemos no decorrer da vida com componentes de uma certa cultura, linguagem ou território – de ser passível de negociação com o universo artístico e a cultura pop, indo além das raízes. “O pertencimento se contrapõe à tradição”, afirma Moacir ao falar dos artistas que criam sob a ótica de que essa (a tradição) não é algo pré-definido, e, sim, que deve ser reconstruída a partir de um olhar ímpar.
Referindo-se à questão do sotaque, Contraditório destaca-o como mobilizador das especificidades dos locais, além de trazer a repetição do termo “gambiarra” como forma de ratificá-lo para além do potencial criativo na arte brasileira. Por fim, na defesa de uma arte menor, deparamo-nos com o fazer artístico a partir do olhar do subordinado, daquele que não possui controle total dos instrumentos, enquanto a curadoria menor configura-se como outra estratégia de resistência possível na globalização.
Num jogo de articulação das premissas geradas no âmbito das mudanças econômicas, tecnológicas e políticas, que remetem ao caráter contraditório de um espaço de coexistência entre homogeneização e diversidade, subordinação e resistência, e que interferem nas formas de pertencimento, a obra de Moacir dos Anjos, como o próprio autor define, é um ajuste de contas, ainda quando inconcluso. “É uma tentativa de alcançar um alvo que a todo instante muda de lugar, mas que nem por isso pode ser ignorado.”
SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.