Curtas

Coletivo Lugar Comum

Grupo de artes cênicas recifense completa uma década com foco na pesquisa em performance e dança

TEXTO Paula Mascarenhas

05 de Junho de 2019

O espetáculo 'Leve' se consolidou como o primeiro trabalho acessível de artes cênicas em Pernambuco

O espetáculo 'Leve' se consolidou como o primeiro trabalho acessível de artes cênicas em Pernambuco

Foto Breno César/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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"Os lugares-comuns não são ideias preconcebidas, mas, sim, literalmente, lugares onde um pensamento do mundo encontra outro pensamento do mundo." O conceito do escritor martinicano Édouard Glissant surpreende, ao ampliar positivamente o conceito de “lugar-comum” – ideias que expressam o senso comum, o trivial. Para o teórico, os lugares-comuns são necessários para que os novos pensamentos possam se difundir, provocar novas reflexões, relativizar antigas verdades. E essa ideia é a inspiração do coletivo recifense Lugar Comum, que, em mais de 10 anos de trajetória, busca ressignificar esses lugares habituais ocupados pelo corpo e pela dança e, sobretudo, pelo afeto.

Criado em 2007, o coletivo Lugar Comum surgiu a partir do desejo de artistas independentes do Recife em compartilhar processos artísticos, trocar ideias, experiências e criações em dança. Em 2011, o coletivo passou por mudanças importantes, como a ampliação da sua formação: desde então, o grupo é composto por 14 integrantes (entre eles, 12 mulheres) que atuam em diversas áreas além da dança, como música, moda, teatro, literatura e circo.

Essa diversificação de sujeitos e vozes não apenas possibilitou ao coletivo realizar um modo mais colaborativo e descentralizado de produzir, com um revezamento de funções e de formatos dos espetáculos, como também consolidou a base artística do grupo, que tem como cerne a performance e a improvisação do movimento, transformando as fronteiras entre as linguagens cênicas, com um hibridismo entre elas que mantém a dança como seu substrato.

A bailarina, pesquisadora e mestranda em Dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Liana Gesteira, faz parte do coletivo desde 2008 e conta à Continente que, embora o Lugar Comum seja um grupo tão diverso, todos tomam o corpo como o elemento substancial para a expressividade. “Todos temos interesse pelo movimento e pelas artes da presença, em que o corpo é o ponto de intersecção. Gostamos de experimentá-lo em suas infinitas possibilidades, seja criando uma performance em que passamos uma hora rindo, seja trazendo a vocalização como uma coreografia, seja pedindo colo para um espectador. Nosso interesse é criar frestas para que possamos olhar diferente a realidade ao nosso redor”, explica ela.

Assim, ao longo de uma década, o Lugar Comum se consolidou com uma intensa produção de espetáculos, solos de dança, performances, intervenções, aliados à realização de pesquisas prático-teóricas, oficinas, aulas de dança e residências artísticas – ações que concretizam não só esse aspecto interdisciplinar do grupo, mas principalmente a sua abertura às múltiplas experimentações entre o corpo, o som, o riso e os sentimentos.

Nesse sentido, a montagem A voz em movimento, que estreou em 2015 no Festival Palco Giratório, no Recife, incorpora a produção vocal como elemento essencial da dança, prática que resultou de uma pesquisa do coletivo sobre a integração entre o movimento do corpo e a voz. Da mesma forma, a intervenção urbana Motim percorreu as ruas de diversos bairros do Recife durante uma temporada de 12 espetáculos, levando uma performance de dança interativa para esses espaços, a fim de estabelecer uma relação de empatia com a população e valorizar o riso como elemento potencializador do corpo.

Motim, intervenção artística que busca ampliar a conexão entre a dança e os espaços públicos. Foto: Divulgação

Já em Leve, de 2009, bailarinas do coletivo conectam seus movimentos ao cenário, música, iluminação e figurino para expressar diversos sentimentos e refletir sobre a condição humana. Com apresentações também em países da América do Sul, a montagem foi o primeiro espetáculo de dança em Pernambuco apresentado com audiodescrição para pessoas cegas.

Em 2017, com a celebração dos 10 anos do coletivo, o grupo escreveu colaborativamente o projeto de pesquisa em dança, o Revisitando Lugares Comuns, que teve o incentivo do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). O projeto divide-se em três eixos e apresenta ações comemorativas que buscam refletir e rememorar a história do coletivo, permeada principalmente pelo afeto, sentimento que se estende aos antigos e atuais integrantes, aos seus parceiros e também ao público.

A psicóloga e pesquisadora de terapias corporais Vi Laraia, que é artista integrante do Lugar Comum desde 2012, explica, também em entrevista à Continente, como se estabeleceram essas atividades. “Além de sermos artistas que compõem o coletivo, somos amigos, companheiros e família, por isso decidimos celebrar esses 10 anos por essa afetividade, que é a nossa marca. Então pensamos em três movimentos: o primeiro foi ‘afeto de dentro para dentro’, em que nós revisitamos a nossa história e memória através de fotos, vídeos, cadernos de anotações e pesquisas; o segundo foi o ‘afeto de fora pra dentro’, para agradecer aos parceiros e aos colaboradores que participaram do grupo ao longo desses anos, celebrando com uma residência artística que aconteceu em maio deste ano; e o último eixo ‘o afeto de dentro para fora’, realizando através de oficinas para compartilhar com o público o que foi vivenciado nas nossas obras e nos espetáculos, focado também no afeto e na construção do corpo artístico”, afirma ela.

A culminância dessas ações do coletivo se estendem aos meses de junho e julho, com uma oficina sobre acessibilidade para pessoas com deficiência, com o evento Contato Coletivo (encontro de contato e improvisação) e com o lançamento do livro sobre os 10 anos do Lugar Comum, de modo a consolidar o afeto como princípio para experimentar a dança, com diz Liana Gesteira. “O que se fortaleceu nesse tempo juntos é a certeza de que assumir o afeto como premissa para viver, criar arte e se relacionar, como uma ética. Acho que por um tempo tivemos receio de assumir isso, como algo clichê. Mas hoje não nos importamos com clichês. Confiar no amor é uma ética”, ela conclui.

PAULA MASCARENHAS é graduada em Letras pela UFBA, estudante de Jornalismo da UFPE e Estagiária da Continente.

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