Em outubro de 1965, Fidel Castro lê aos participantes do encontro em que se fundou o Partido Comunista de Cuba uma carta deixada por Ernesto “Che” Guevara, seu companheiro de Sierra Maestra e de tudo que se deslindara a partir da dissolução da ditadura de Fulgencio Batista. “Sinto que cumpri com a parte do meu dever que me prendia à revolução cubana em seu território e me despeço de você, dos camaradas, do seu povo, que agora é meu”, havia escrito “el comandante heroico”, como era conhecido o então ministro da Indústria, e assim lia Fidel, “renuncio formalmente a meus cargos no Partido, a meu posto de ministro, à minha patente de comandante e à minha cidadania cubana”.
Seria a ausência de Che do comitê central do partido e daquela cerimônia que, de uma certa forma, autenticava a revolução de 1959 um alerta ou um augúrio? Àquele momento, quando o comandante se afastava do país bradando que “legalmente, nada me vincula a Cuba, só laços de outra ordem que não se podem quebrar com nomeações”, quem era capaz de vislumbrar que, dois anos depois, ele seria assassinado na selva boliviana. É justamente do que aconteceu nesse período entre a saída de Guevara da ilha e sua morte na Bolívia que se ocupa Che, memórias de um ano secreto (Brasil, 2018), documentário de Margarita Hernández exibido em abril na competição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários e, em agosto, em uma sessão hors concours no 28º Cine Ceará – Festival Iberoamericano de Cinema.
Cubana há muito radicada no Brasil, sem, contudo, perder o sotaque, Margarita Hernández mescla sagacidade e bom humor ao revelar à Continente que sua vontade era construir uma investigação não sobre Che, mas sobre Luis Carlos García Gutiérrez, o Fisín. “Ele era um dentista, ocupou cargos do alto escalão no governo de Cuba, foi coronel do Ministério do Interior, mas seu talento maior era como um ‘mascarador’, alguém capaz de disfarçar qualquer pessoa. Fisín era também um excelente forjador de documentos, inclusive se gabando de ser invicto: nunca um passaporte falso seu foi pego em qualquer aeroporto. Trouxemos Fisín ao Cine Ceará em 2011, quando ele já estava aposentado, e pudemos saber mais sobre suas histórias com Che, a quem ele ‘mascarou’ para sair da África e chegar na Tchecoslováquia”, conta a realizadora.
Ao aprofundar seu conhecimento das lembranças daquele oficial que transformou o argentino Ernesto Guevara no uruguaio Adolfo Mena, Margarita constatou que o filme não seria mais sobre “aquele personagem incrível que era o dentista”, mas sobre esse tempo obscuro na vida de um dos maiores ícones da história da América Latina. Che, memórias de um ano secreto é, portanto, uma meticulosa narrativa de investigação que, na forma, assume o saboroso tom de um filme de espionagem, como se estivéssemos a apreciar as misteriosas reviravoltas dos personagens concebidos por John Le Carré ou mesmo do mais famoso entre todos os fictícios agentes secretos, James Bond.
Che Guevara em disfarce
“Quis adotar uma linguagem para as pessoas não dormirem!”, brinca Margarita, ao aludir ao aspecto “aventureiro” que sobressai no seu documentário. Um dos momentos mais divertidos se dá, justamente, quando é revelado que, em 1965, Che não fazia ideia de quem era 007 ou do que cantavam e o que significavam os Beatles. “Imagina alguém que naquele ano nunca tinha ouvido um disco dos Beatles? Isso fala muito de quem ele era”, comenta a diretora.
No entanto, mesmo que os espectadores se dividam entre ardorosos defensores da Ursal – União das Repúblicas Socialistas da América Latina (proposta que veio à baila em recente debate presidencial no Brasil) e entre os que abominam todos os artífices da revolução cubana, o documentário transcende a polarização ideológica para compor o fascinante retrato de uma época. “O mundo vivia o auge da Guerra Fria. Che tinha saído de Cuba logo depois de proferir o discurso em Argel, em que foi radical ao questionar o papel da União Soviética de não apoiar outros movimentos revolucionários. Depois sumiu, ninguém sabia onde ele estava. Quando chegou no Congo, encontrou uma guerrilha que parecia fadada ao fracasso. Foi à Tanzânia e de lá precisava escapar, mas todo mundo queria saber onde ele estava: a CIA, a KGB, os próprios cubanos”, detalha Margarita.
Che, memórias de um ano secreto traz os depoimentos de Fisín e de outros dois ex-agentes secretos, Victor Dreke e Ulises Estrada, entremeados por imagens de arquivo (boa parte cedida pelo Instituto Cubano da Arte e Indústria Cinematográficos/Icaic e algumas restauradas pela própria produção) e por breves inserções ficcionais para dar conta do hiato em que Ernesto Che Guevara esteve em Praga e, depois, do tempo que voltou a Cuba antes de seguir para a Bolívia.
Com maestria, Margarita Hernández adota a liberdade para trabalhar a ausência. Como nem tudo é revelado nas falas e existem contradições nas versões, por exemplo, dos passatempos que o líder teria adotado na capital de então Tchecoslováquia, seu documentário abraça todos os ingredientes para jogar luz em um período pouco dissecado na trajetória de um homem que virou mito.
Ainda não há previsão de estreia comercial de Che, memórias de um ano secreto, com distribuição da Arthouse; deve chegar às salas apenas no primeiro semestre de 2019. Até dezembro, o filme irá para festivais em Havana e na República Tcheca, dois dos lugares onde Ernesto Guevara de la Serna permanece onipresente em camisas, ímãs de geladeira e cadernos de anotação, bem como em filmes, livros e teorias conspiratórias – um ícone ainda capaz, mais de 50 anos depois da sua morte, de convencer, seduzir e encantar.
LUCIANA VERAS é jornalista especializada em cinema e repórter especial da Continente. A repórter viajou a convite da organização do 28º Cine Ceará.