Curtas

Breu

Em novo livro, Fred Caju reúne poemas da dor

TEXTO Samanta Lira

05 de Junho de 2019

Fred Caju, poeta, editor, artesão do livro e livreiro nômade

Fred Caju, poeta, editor, artesão do livro e livreiro nômade

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]

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Não existe forma mais apropriada de começar este texto senão falando da superficialidade de percepção das coisas à nossa volta. Somos bombardeados o tempo todo pela rapidez dos acontecimentos, o que nos leva a olhar com pressa. Isso se traduz, principalmente, no tratamento que damos a temas que demandam nossa calma, para que possamos organizar as ideias e lidarmos da maneira mais apropriada possível. Trazendo para esse contexto a explanação da escritora Susan Sontag, em seu livro Diante da dor dos outros (2003), o vício do olhar pode transformar algo extraordinário numa espécie de lugar-comum. Ou seja, numa avaliação superficial, podemos julgar, por exemplo, que tratar das dores da existência na literatura é algo já desgastado. Mas, o recém-lançado Breu, de Fred Caju, poeta, editor, artesão do livro e livreiro nômade – como ele mesmo se define – está aí para provar que, sim, já falamos muito sobre isso, mas estamos errando na abordagem.

Breu surgiu de um conjunto de coisas renegadas, algo que tem a ver com uma antiga visão de Fred sobre a poesia. Uma visão mais pedagógica de sua função. “Os poemas de Breu foram tolhidos de outros livros meus, porque eu sempre os achava pesados demais para estarem ali. De uns tempos pra cá, eu comecei a mudar essa minha visão de poesia, de ‘estar no mundo’. Eu olhei de volta para aqueles poemas e percebi que tinha uma qualidade ali, dentro do que já tinha escrito, mas que eu já não me identificava tanto com a forma grafada deles”, conta o poeta em entrevista à Continente. Diante dessa percepção, houve uma reescrita desses poemas renegados, que vinham passando por esse processo desde 2015, subordinados à crença de que estariam em função de deixar o leitor pra baixo. “Só que, quando esses poemas entraram num conjunto, virou o contrário, porque falando do problema você assume propriedades curativas”, completa.

De fato, Breu é sobre identificação de um lado mais humano, sobre entender que o sofrimento faz parte. Fred Caju, que tinha uma visão heróica do seu papel enquanto poeta, percebeu que se prender nessa perspectiva de mundo machuca ainda mais as pessoas. É complicado falar de alegria numa sociedade que não é alegre, numa sociedade que nos empurra para baixo o tempo inteiro. “Quando eu fui juntando tudo isso, vi que o que eu estava temendo que o poema fizesse, ele fazia justamente o contrário. Na verdade, ele dizia: ‘Olha, eu sou fraco porque eu sou humano’. Então, o Breu vem disso, vem totalmente de mim, vem do que eu sou, do que eu escuto, do que eu vejo, do que eu falo e do que eu não pude falar. É disso tudo.”

       
Foto: Divulgação

Forma é conteúdo. Essa é uma filosofia que Fred Caju incorpora em tudo o que faz. Seus livros são construídos num viés criativo de pensar não só o que é dito, mas como é dito – visualmente falando –, além de articular a forma com que esse conteúdo será “embalado”, tentando absorver amplamente a essência do tema. Breu é uma palavra fortemente ligada ao nosso imaginário popular quando descrevemos uma situação de escuridão. O poeta antecipa: “O próprio conceito do livro traz pra essa escuridão, só que tem muito a ver também com a memória afetiva da minha infância. Eu ouvia: ‘Tá um breu danado por essas bandas aí’, não tive como escapar. O nome breu, inclusive, tem a voz da minha avó saindo dessa palavra”.

O projeto gráfico surgiu do estudo de escuridão, do jogo de cores e do manuseio de técnicas. Uma concepção estética que vem também da sua mudança de paradigma do que seria a poesia. “Será que a palavra acende ou apaga?” E a única resposta gráfica que Fred obteve para isso foi a alternância entre o claro e o escuro. Assim, não sabemos se a palavra está acendendo algo ou se está prenunciando a escuridão. A função é essa. Você começa numa página branca, vira, tem uma página preta, e esse caminho é percorrido até o final da leitura. A maneira de escrita é como quem fala, e a expectativa do autor é justamente que sempre o leiam como se fala também. Algo que toma forma na ausência de sinais de pontuação, construindo um texto corrido que faz amplo uso de palavras próprias da linguagem cotidiana.

Além disso, a resolução gráfica dessa alternância claro/escuro dá um efeito lateral de sombra. “Eu aprendi que o olho humano não atinge o escuro máximo, mesmo se fecharmos os olhos completamente. Se a gente estiver num ambiente de breu, não encontramos o preto absoluto, o que vemos é mais uma escala de um cinza muito escuro. Então o livro tinha que ser muito mais pro cinza. O preto é só um detalhe dele. Externamente e dentro, ele está numa função muita mais de penumbra”, explica. Sendo assim, baseado no nosso alcance de olho humano, Breu é uma forma de dizer também que nenhuma escuridão é total. O letterpress, no título da capa, está gravado num prata brilhante, que vai se apagar com o passar do tempo. E essa é mais uma forma do poeta de “brincar” com o tema da escuridão.

A obra é uma resposta à atmosfera de penumbra e desesperança que vem sendo construída para esmagar as pessoas. E as redes sociais, segundo Fred, são responsáveis por isso. “Vez outra, no meio da lama, você encontra uma coisa boa ali, e vai ficando. Mas o conjunto, o peso, não é de coisas boas. É um ambiente que vai adoecendo a gente. Então, qualquer coisa que se levante dentro dela, está dentro dela. Não tem como um poema dentro de uma rede social ajudar alguém. Não dá. A pessoa tem que sair dali”, sugere. Breu é uma tentativa de rasgão dessa realidade que nos engole. Através da experiência de escuta, Fred percebeu que o que está sendo tratado nesse livro são questões sociais.

Ao final da leitura, percebemos que é preciso olhar para a escuridão de frente. O livro não ganha. Mas, a cada confronto, ele aumenta a sua força. Também não é um livro que se lamenta. O caminho é ir em frente e falando. Não um grande discurso, é mais sobre a simplicidade do falar e ouvir. Mas Breu é pra quem? “É pra hoje. Breu é pra hoje. Eu não tenho dúvidas”, responde o poeta imerso num sorriso que sinaliza convicção.

SAMANTA LIRA é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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