As letras são dele e de Assis Lima e as músicas, cujos ritmos passeiam por todas as tradições pernambucanas (ciranda, coco, maracatu, caboclinho, frevo de bloco, marcha de pastoril), são de Zoca Madureira. O disco com as composições foi gravado em 1983 e, junto com ele, o espetáculo foi lançado e ficou em cartaz durante oito anos no Teatro Valdemar de Oliveira, ganhando uma outra montagem de sucesso com grupo Brasílica, do Balé Popular do Recife. Desde então, nesses 35 anos, os autores perderam as contas de quantas montagens o Baile já teve. Escolas, ONGs, grupos de teatros, comunidades indígenas, o auto de natal ganhou uma popularidade enorme. Isso talvez se explique, segundo Brito, pelo fato de o espetáculo ter humor, épica, lirismo, poesia e muita brincadeira.
Foto: Hans Von Manteuffel/Divulgação
Com essas características, o Baile também consegue dialogar com um público diverso, de gerações distintas (filhos, pais, avós…), de credos diferentes (católicos, evangélicos, ateus), que se dirigem anualmente ao Marco Zero para assisti-lo. “Durante os dias de apresentação, costumo circular pela praça. É incrível como as pessoas conhecem o texto de cor. Já aconteceu, durante um ensaio geral, de um dos atores ser corrigido por alguém que estava lá observando”, comenta o autor, que hoje assina a direção-geral da apresentação.
Essa nostalgia, essa sensação de pertencimento e de conhecimento sobre o Baile, que já é uma tradição na cidade, não exclui a possibilidade de surpresa. A produção mantém a dramaturgia original, mas sempre traz algo novo. De três em três anos, a direção de arte ganha uma nova referência. Em 2018, será o segundo ano em que a África é o ponto de partida. Em anos anteriores, o período bizantino, o barroco, o Leste Europeu já foram as bases para a direção de arte.
Além dessa mudança de maior porte, anualmente o espetáculo é repensado, são somadas novas músicas ou poemas, outros são suprimidos, situações são retrabalhadas para dialogar com questões contemporâneas. No original, o Baile do Menino Deus tinha 12 músicas, a montagem do Marco Zero deste ano tem 32. “No Baile, temos um José extremamente cuidadoso, atencioso, temos uma cena que Maria sai e deixa o menino com o pai. Já criamos uma cena em que o José troca as fraldas da criança. Numa sociedade machista e feminicida como a nossa, é importante mostrar um outro modelo de organização familiar”, destaca Brito.
Foto: Hans Von Manteuffel/Divulgação
A porta e sua abertura, base da sua dramaturgia, continuam mais atuais do que nunca. A porta fechada que se apresenta, por exemplo, no caminho dos migrantes, não deixa de ser a mesma porta fechada que se apresentava a José. “José Carpinteiro procura agasalho, as horas se passam, já cantou o galo. Ninguém abre a porta naquela cidade. José entristece, tão pobre e cansado”. Para reforçar essa perspectiva, os autores inseriram um poema ao espetáculo: “Ao nascer o menino lança um grito/ com a força de todo o seu pulmão. Estremece de medo o coração/ a procura da porta do infinito. Depois vê tudo falso e esquisito/ as portas se fechando de repente. O vinho se transforma em aguardente/ uma nuvem escurece o firmamento. E assim não me sai do pensamento/ tanta porta fechada à nossa frente”.
Esse enigma da porta é, para o diretor-geral, um dos motivos do encanto proporcionado pelo Baile, que hoje tem um público gigante: são 70 mil pessoas, na rua, em média, nos três dias de apresentação, e 400 mil através da transmissão por streaming via Facebook. “Achamos que é muito caro ao homem, abrir a porta da casa, porque a casa é o mundo, é o céu, o espaço sagrado, onde o divino do homem se revela, então talvez seja esse o grande mistério do Baile fazer tanto sucesso, agradar a tanta gente, é possibilitar essa revelação.”
MARIANA OLIVEIRA, jornalista, editora assistente da Continente.
Leia também a crônica Procura-se um personagem, escrita na coluna de Ronaldo Correia de Brito, a Entremez, na edição de dezembro de 2002 da revista.