Em agosto passado, Renê Freire lançou seu segundo álbum, Átrio. O primeiro foi Necroses (2020), que consiste de uma única faixa: um discurso musical contínuo de 30 minutos, no qual o pianista caruaruense já utilizava os mesmos procedimentos que parecem se consolidar como verdadeira linguagem no trabalho artístico mais recente.
Em meio a mudanças de estado interior, do reflexivo para o atormentado, perpassando momentos otimistas, lúdicos, vazios e áridos, as composições de Renê mantêm o lirismo durante a maior parte do tempo, exceto quando ele deliberadamente grita por meio do piano, em um ato enfático de expressão. Trata-se de música complexa, do ponto de vista psicológico, mas não de execução complicada.
Necroses surgiu de uma experiência desagradável, segundo o compositor: um incêndio no apartamento, que atingiu e danificou o instrumento de trabalho criativo. Danificou, porém não o inutilizou. Com as teclas e cordas que sobraram, e com o recurso a objetos (configurando o piano à Cage) e manipulações acusmáticas (que nunca são prolixas ou gratuitas em Renê), a extensa obra resultante narra todas as agruras emocionais já então vividas pelo compositor e exacerbadas pela tragédia doméstica.
Por terem sido escritas entre 2016 e 2021, as cinco faixas principais de Átrio brotam da mesma alma necessitada de acalento que concebeu Necroses; somadas, duram menos que esta, mesmo incluindo os três interlúdios gravados para completar o álbum. Ainda assim, os dois trabalhos constituem um nítido díptico, cuja segunda face começa com Myosotis.
Em português, chamamos esse gênero de flores de não-me-esqueças. A quem Renê estaria entregando uma myosotis, a quem ele estaria pedindo para não ser esquecido? Com uma simples entrevista junto ao autor, talvez tivéssemos uma resposta (ou a resposta). Contudo, a fim de evidenciar o álbum, optamos aqui pela resenha como gênero, e não vamos adentrar em leituras simbólicas para além da sensatez. Deixemos Renê presentear sua flor com sua flor.
Os acordes longos e resolutos no primeiro minuto de Myosotis antecedem uma seção mais apressada, interrompida por dois clusters secos e dramatizados pela intervenção eletroacústica. Essa seção é retomada e mais adiante interrompida por outras atmosferas, com retomadas trôpegas de se sobressair novamente, até recair numa nova parte – episódica, semiestática, divagatória – e, por fim, dar lugar à seção final, em estilo de brincadeira de roda infantil, a qual é finalmente estancada pela solidão que se apossa da persona do compositor.
As danças de roda caracterizam melhor Nastássia, faixa mais curta, de menos de 40 segundos, e Átrio; a primeira, em caráter vacilante; a segunda, de maneira perdida, como se as evocações de infância trouxessem consigo perturbações ainda não expulsas do eu. Ambas as desconstruções são ligadas pelo plácido (e desconexo) Interlúdio I, ilustrado timbristicamente por uma tranquilizante intervenção de chiados de vinil.
A explicação de Átrio é dada pelo próprio release do álbum. Trata-se de um vocábulo que define tanto a porta de entrada do coração, quanto a antessala de determinados edifícios públicos ou mansões – a qual pode possuir, nesta segunda acepção, outros nomes, tais quais: vestíbulo ou saguão de entrada. Convém acrescentar que, em instituições como tribunais de justiça e parlamentos, o átrio é chamado de sala dos passos perdidos.
Ouvindo-se a faixa-título, intuímos que os passos de Renê continuaram perdidos na tentativa de se adentrar o próprio coração, conforme reparamos nas células atonais disformes iniciais, que explodem em eventuais hesitações e retomam, com frustração, o intento de se constituir um padrão rítmico constante. Daí, o músico encara a Cruz que carrega – outra brincadeira de roda que não nos permite captar sua conformidade –, e sucumbe à Síndrome (do pânico), que encerra o álbum.
Átrio, Cruz e Síndrome são separadas pelo segundo e terceiro interlúdios. O Interlúdio II resgata os chiados de vinil do Interlúdio I e se caracteriza por sucessões de notas e acordes que se alternam por toda a tessitura do piano, como numa valsa não onírica, senão dopada, entorpecida, sem chegar a uma resolução. Já o Interlúdio III esboça improvisos tímidos, não jazzísticos, e abdica de vez em resolver algo, tanto musical quanto espiritualmente.
Por fim, mais do que nas demais peças, Síndrome funde piano in natura e sons acusmáticos: clusters supergraves e áridos adquirem densidade até serem interrompidos pelos sons das cordas arranhadas, num simulacro de um eu em decomposição psíquica, depois reconstituído amiúde, ensaiando um escape das trevas interiores, e novamente sujeito à opressão de seus fantasmas, representados por arranhados gritantes e que culminam nos secos staccati finais.
A estilística neorromântica predominante em Necroses e Átrio denota um Renê Freire que quer sentir os próprios ventrículos, que quer permanecer reflexivo, porém sem se afogar em tormentos, em busca de conservar a esperança de abraçar o etéreo ou o jubilante. Átrio certamente não é o álbum que você vá ouvir preso no trânsito ou em uma happy hour, mas se mostra rico em transmitir a personalidade do autor, vítima da fragmentação imposta por estes tempos não mais de pós-modernidade, e sim de pós-verdade.
CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista e biógrafo especializado em música erudita.