Curtas

Atiça (lado B)

Banda Eddie faz festa com o “que restou” dando continuidade ao disco cujo lado A foi lançado no início de 2020, antes da pandemia chegar ao Brasil

TEXTO Paula Passos

28 de Maio de 2021

A banda Eddie com o grupo Guerreiros do Passo no Recife, em 2020

A banda Eddie com o grupo Guerreiros do Passo no Recife, em 2020

Foto Clara Gouvêa/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

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O ano de 2020 começou bem para a banda Eddie e seus fãs. O lado A do disco Atiça foi lançado logo no primeiro dia daquele ano, avisando que o Carnaval estava próximo. Após os dias de folia, a pandemia invadiu nossas vidas. Apesar de tudo, a partir desta sexta (28), o lado B também passa a ficar disponível nas plataformas digitais, para continuar a festa... 

Atiça foi gravado no Fruta Pão Records, por Homero Basílio, e mixado por Tostoi, Leo D. e Buguinha Dub, responsável também pela masterização. As 11 músicas abordam temas diversos: questões sociais (Atiça, Amassando amassa, Apocalíptico), amor à família (Para os nossos filhos), isolamento social (Na copa dos edifícios), otimismo (Preciso levantar, Aurora dos novos tempos), além de trazer releituras (Rainha Matamba, Na veia, Canhão 75). 

O que costura e traz unidade ao disco é o que o cantor, compositor e produtor Fábio Trummer nomeia de “frevo contemporâneo”: “É um disco inspirado no Carnaval, que usa como liga o ritmo do frevo, mas não o acontecimento. Não fala diretamente do Carnaval, mas traz a atmosfera da dança, da liberdade, da anarquia. Nele, a gente usou tons menores e tenta se comunicar com pessoas mais novas. Para isso, usamos beats eletrônicos”, conta.

Os beats, aos quais Trummer se refere, mais evidentes nas músicas Preciso levantar e Para nossos filhos, foram criados em parceria com o coprodutor Homero Basílio e Alexandre Urêa, percussão e voz da banda. Basílio integra um grupo de desenvolvedores que procura alternativas para criar ferramentas de produção musical, com tecnologia de baixo custo, uma delas chamada de Xekerall. A turma, junta há um ano, é formada pelos músicos e artistas plásticos Paulo do Amparo, Guilherme Assis e o Coletivo 3D. O objetivo é desenvolver softwares e hardwares para produção musical. “A gente tinha necessidade de criar instrumentos eletrônicos customizados e também fugir da alta do dólar”, comenta o coprodutor, que também toca percussão no álbum. 

Atiça se adequa à lógica do streaming, que convoca artistas a trabalharem em um esquema mais fragmentado, a fim de que a recepção se torne mais lenta e capilarizada. No ano passado, a banda lançou cinco músicas; neste fevereiro sem Carnaval, o single Canhão 75, regravação do frevo do Clube Carnavalesco Misto Lenhadores; e, por fim, mais cinco faixas, uma delas releitura de Rainha Matamba, afoxé originalmente composto por Lepê Correia e Valdi Afonjah. 

A música abre o disco com uma espécie de oração, iniciada pela cantora Isaar, e depois ganha contornos da bossa punk. Com o lançamento do lado B, a ordem das músicas do álbum mudou para atender à demanda das plataformas de streaming, onde as primeiras músicas, segundo Trummer, tendem ser as mais ouvidas. Além disso, o vocalista tem uma relação afetiva com Rainha Matamba: “Ela tem uma letra fortíssima, bem-resolvida, uma harmonia incrível, que pensei que iria compor bem com o nosso trabalho, com os protestos que a Eddie faz nas suas músicas. Uma vez, eu tive uma conversa com Fabiano (Santos), do Afoxé Alafin Oyó, e a gente dizia que, para Olinda se tornar uma vitrine, nós deveríamos tocar as músicas dos outros. Foi a partir dessa provocação que eu peguei o violão e já fiz uma harmonia pra ela”.   

O disco segue com a faixa-título Atiça, escrita a partir do desenho de uma criança do Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em 2019, em que mostra tiros disparados por helicópteros durante os confrontos policiais na cidade.

Choveu bala ontem à tarde
Sangue e lápis e papel
No desenho infantil
A morte é ruim e cai do céu

A música contou com a participação do sanfoneiro André Julião, como mostrou a Continente Online no lançamento do lado do A do disco, no ano passado.

VIRADAS
A energia do álbum se torna amena e nos traz um pouquinho de esperança com Preciso levantar, pensada em 2019, quando Trummer ainda estava em São Paulo – onde morou por 15 anos – e ficava muito tempo em casa, por causa do filho Matias, com quase dois anos na época. 

Amassando amassa retoma o tom de crítica social com o frevo à la Eddie e nos convida a dançar, apesar do difícil contexto que nos envolve. Apocalíptico, também dançante, é reflexo de um tempo às avessas, onde os valores religiosos estão deturpados, e o fim parece próximo, quase uma espécie de antecipação do que estamos vivendo. 

Para nossos filhos, inicialmente, era pra ter sido um jingle governamental, mas se transformou numa homenagem lúdica aos filhos dos integrantes da banda Eddie. Na veia, em seguida, teve a participação da cantora Sofia Freire, que trouxe leveza aos versos já gravados pelo Cordel do Fogo Encantado, em O palhaço do circo sem futuro (2002). 

O frevo continua com Canhão 75 e desemboca na contemplativa Na copa dos edifícios, escrita no começo da pandemia, quando Fábio Trummer morava no 18º andar do Edf. Capibaribe, na Rua da Aurora, no Recife. “Essa é uma música que reflete a solidão do isolamento e também é aquela que tem uma energia de quando a gente passa o dia todo em Olinda, levou umas três horas pra chegar, bebeu, ficou no sol, não se hidratou direito, aí volta pra casa, dá um cansaço, um vazio”, rememora, em entrevista por videochamada à Continente.



Esse período sem o palco influenciou no modo de tocar do grupo. “Como a gente está junto há muito tempo, acaba se criando uma fórmula, que é fácil de repetir, mas que se torna entediante. Quando a gente traz outros músicos para gravar com a gente, é bom, porque precisamos aprender a tocar como eles, para depois reproduzir no palco”, detalha o processo. 

Para o Atiça, além da formação original, com Alexandre Urêa (voz e percussão), Andret Oliveira (trompete, teclado e samplers), Rob Meira (baixo) e Kiko Meira (bateria), participaram: Daniel Fino (baixo); Samuel Samuel Mota (teclados, banjos, samples de cordas); João do Cello (violoncelo); André Raggal (bateria); Vitor Trummer (flauta transversa); Olívio Júnior (sax alto); Lúcio Henrique (sax tenor); Adriano Pinto (trombone) e o Trio Tapajós (samples).

A derradeira Aurora dos novos tempos carrega esperança e tem a participação de Gangga Barreto no finalzinho da faixa.

FREVO FUTURISTA
O desejo de criar uma linguagem mais atual para o frevo reverberou na capa deste disco com um passista no espaço. O desenho era uma pintura que Trummer viu nos anos 1990, na parede do Clube Vassourinhas, em Olinda. 

“Catarina dee Jah fotografou essa arte, que eu acho demais. Comprei uma foto dela e carrego comigo até hoje”, conta. O cantor sugeriu a imagem a Solange Freire (que cuida das redes sociais da banda) e a Gerson Rodrigues (designer gráfico) e os três conceberam, em tons de azul e amarelo, a embalagem do Atiça.

Com mais de 30 anos de estrada, o oitavo disco da Banda Eddie toca frevo para um futuro que já é presente. O trabalho, porém, só será sentido melhor, quando for executado no palco, com a coreografia dos Guerreiros do Passo, um plano de Trummer. Enquanto isso não é possível, parafraseamos o escritor Francisco Mallmann e fazemos festa com o que restou. 



PAULA PASSOS, jornalista e mestranda em Comunicação pela UFPE.

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