Eis que aquela obreira dona de casa via essa vida vibrante e excitante passar na sua porta e pela vitrine de sua lavanderia, atravessando sua mente, suas ideias, seus anseios estéticos, sua visão artística. Ela ia regularmente ao salão de beleza e era cliente de um cabeleireiro gentil que, fora das dependências do salão, trocava as vestes laborais pelas de uma performática transformista, termo muito comum para a cultura drag da época. Madalena gostava de teatro e se tornou plateia regular na temporada do espetáculo do grupo Dzi Croquettes, que reunia um elenco masculino que encenava com maquiagem e figurino extravagantes, plumas, paetês, graça e muita pinta. Ficava na primeira fila e acabou conquistando o elenco com sua constância, sendo convidada a frequentar – e fotografar – os bastidores.
A mencionada curiosidade da história dessa mulher “de família” e “bem-comportada” se dá no cruzamento entre a vida ordinária e a extraordinária, entre os papéis que cumpriu rotineiramente durante anos e aquele que inventou para si; nos relacionamentos que construiu com existências que pareciam tão dessemelhantes à sua, pessoas enquanto personagens e signos sociais, que ela retratou, nesse gênero que consagra gente, gestos, situações e cenários significativos. Seus personagens e ela estão ali em metamorfoses, como indica o título deste ótimo livro. Sem alarde e de um outro lugar de fala – para usar uma expressão contemporânea –, Madalena se tornou parte da cultura trans do período a partir dos retratos, séries e ensaios que realizou tendo como protagonistas figuras notórias e nem tanto daquela cena artística e cultural, numa época em que as discussões sobre gênero eram muito desarticuladas no Brasil.
Contar essa história é uma das qualidades de As metamorfoses – Travestis e transformistas na São Paulo dos anos 70, que foi lançado no ano passado como um catálogo da mostra homônima e como marco dos 100 anos de nascimento da fotógrafa. Mas há outras qualidades a se destacar nessa publicação, organizada por Gonzalo Aguilar e Samuel Titan Jr., também curadores da mostra.
É formidável a percepção de relevância e contexto da obra de Madalena Schwartz a partir do recorte proposto, os retratos que fez de travestis e transformistas: “essa mulher, que chega tarde ao circuito artístico, capta com agudeza esse momento de emergência do trans como categoria de gênero e como vertente estética”, escrevem os curadores. “Ela o faz à sua própria maneira, com seus próprios meios, lançando mão de poderosa imaginação social – isto é, não como ato de militância e, sim, (…) na chave de um exercício livre da sensibilidade”, continuam.
Além da seleção de fotos feitas por Madalena, o livro traz também – nesse movimento de inseri-la num contexto histórico e artístico – o caderno Transversal hispano-americana, com acervos de fotógrafos e artistas que se dedicaram ao tema nos anos 1970 e 1980, na Argentina, em Cuba, no México, na Venezuela, em Porto Rico, no Chile, Peru e na Bolívia. Assim como os demais aspectos trazidos no livro, essa conexão latino-americana é comentada e analisada em textos.
Uma sacada muito boa da edição de As metamorfoses é o capítulo A São Paulo de Madalena Schwartz, em que os arquitetos Beatriz Matuck e Tiê Higashi reconstroem – por meio de um mapa do entorno do Edifício Copan, onde ela morava – a pulsação cultural e artística do centro da cidade, com seus espaços culturais, de encontro público e vida noturna. Esse capítulo também reúne uma saborosa memória gráfica de periódicos, panfletos, cartões de visita, anúncios relativos à cena gay, lésbica e trans paulistana daquela época.
Importantes também são as contribuições de colaboradores que escrevem sobre a pessoa e a obra de Madalena (além do texto curatorial), como Chico Felitti e Edgardo Cozarinsky; sobre a condição trans – Amara Moira, com o texto Como se forja uma mulher –; e um estudo feito por Elias Ferreira Veras sobre a cobertura ambígua (entre o fascínio e o preconceito) da cultura trans por parte da imprensa (Entre perucas e hormônios: a revista Manchete como palco heterotópico trans). Além do conteúdo textual, o livro é belo plasticamente, aproveitando com maestria os recursos no uso de papéis de gramaturas e cores variadas.
Madalena Schwartz com câmera Asahi Pentax, São Paulo, cerca de 1969. Foto: Acervo Pedro Luis Szigeti, Buenos Aires. Ao lado, capa do livro As metamorfoses, lançado no período da exposição homônima no IMS Paulista, em 2021. Imagem: Divulgação
Por esses atributos, a leitura deste livro é uma experiência enriquecedora, como certamente foi enriquecedora a metamorfose pela qual Madalena passou, desde que aquela câmera foi parar em suas mãos. Ficamos pensando naquelas tardes em que ela montava um estúdio doméstico em sua sala de visitas, colocando um lençol como fundo infinito e recebendo em casa, para ensaios de muita criatividade e intimidade, pessoas que poderiam ser facilmente ignoradas por ela. Uma frase dita por Danton, o cabeleireiro de madame que se tornou um de seus retratados, reproduzida no saboroso texto de Chico Felitti para o livro, diz muito daquelas tardes de sessão fotográfica com Madalena: “Foi a primeira vez que eu pude ser bicha numa casa de família”.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da Continente e professora de Jornalismo da Unicap.