Curtas

Aos teus olhos

Uma discussão sobre discórdias reais e virtuais

TEXTO Luciana Veras

10 de Abril de 2018

Daniel Oliveira interpreta o professor de natação Rubens

Daniel Oliveira interpreta o professor de natação Rubens

Foto Daniel Chiacos/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 208 | abril 2018]

Impossível ver Aos teus olhos
(Brasil, 2017), o mais recente filme da realizadora carioca Carolina Jabor, em cartaz a partir do dia 12 deste mês em cerca de 20 cidades, sem associá-lo à urdidura dos hediondos tempos atuais. Aliás, é bem provável que cada pessoa encontre, ao longo das 1h30 de filme, uma razão para relacioná-lo a algum episódio recente de sua vida. Posto que, no enredo, o que sobressai são a hiperconectividade e seus recorrentes julgamentos sumários de redes sociais.

Baseado na peça O princípio de Arquimedes, do dramaturgo catalão Josep Maria Miró, Aos teus olhos centra sua mira em Rubens, personagem defendido com assombro por Daniel de Oliveira. Professor de natação de crianças pequenas em um clube no Rio de Janeiro, ele é carismático, sabe lidar bem com a gurizada e entra no jogo de sedução com as adolescentes que encontra nos corredores e com quem posta fotos no seu perfil no Facebook. Tem uma namorada de 18 anos (Luisa Arraes), uma boa relação com a diretora do clube (Malu Galli) e, por ser adorado pelos alunos, desperta ciúme no colega professor (Gustavo Falcão). Tudo implode ao longo de 24h, quando ele é acusado pelos pais (Marco Rica e Stella Rabello) de um dos seus alunos de usar “carinhos excessivos” e beijar o menino na boca.

“O que me motivou a adaptar a peça foi a inquietude com o julgamento sem prova das redes sociais que propagam essa questão de injustiça e de condenação sumária. Na justiça, toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, mas hoje isso não existe: quando você viraliza uma acusação, que pode ser falsa ou verdadeira, a vida daquela pessoa acabou”, observa Carolina Jabor à Continente. “Tanto no livro como na peça, a trama era a mesma: alguém era julgado e havia uma condenação sem prova. Quando decidi trazer para o cinema, realmente a questão das redes sociais ganhou mais força, pois o linchamento virtual está cada vez mais forte e muitas vidas são perdidas por falsas acusações”, emenda a diretora, que, neste seu segundo longa (o primeiro é Boa sorte, de 2014), assume também a função de produtora.

Traços de sua postura como realizadora já evidentes em Boa sorte ganham mais força e relevo em Aos teus olhos: não há maniqueísmo na construção dos personagens, tampouco há opções fáceis para apresentá-los ao público, e a composição imagética é sóbria, sem estridência mesmo na hora de apresentar o azul das piscinas. “Há uma ligação visual com meu primeiro filme, sim, e essa era uma história muito crua de contar, então, não podia ter muito charme. Acredito cada vez mais em um cinema que se aproxime da realidade. Ao mesmo tempo, o fotógrafo Azul Serra trabalhou com muito rigor aquela imagem para tentar ser o mais realista possível”, comenta Carolina – em Boa sorte, sua fotógrafa havia sido a uruguaia Barbara Alvarez.

Em relação ao trabalho com o elenco, a cineasta conta que, ante o pouco tempo para filmar (três semanas), decidiu “escolher atores preparados dramaturgicamente e experientes”. “Precisava ter ao meu lado pessoas que entendessem a construção profunda daquelas personagens. Esse era o ponto de partida. Marco Rica e Malu Galli são atores-diretores, com competência grande. A ideia era que a gente conseguisse composições não tão óbvias – um pai que não fosse truculento, mas humano, e Rubens que não fosse um homem mau, e, sim, alguém muito carismático. Ficamos 15 dias apenas no trabalho de mesa, lendo e conversando sobre os personagens, decidindo que caminho tomar para não cair nos clichês. São personagens não muito óbvios e cada um tem uma moral sobre um assunto que pode ou não ter acontecido”, condensa.

O que leva à chave central de Aos teus olhos é a ambiguidade. “Tudo acontece muito rápido, Rubens não consegue se defender. Eu, realmente, não queria falar de um cara pedófilo, com intenção de abusar, mas tudo pode ter acontecido meio sem querer, de uma forma estranha”, reconhece a diretora. O filme mergulha na área cinza entre o que pode ou não ter acontecido e a catástrofe possível quando alguém dispara uma mensagem em um grupo de WhatsApp sem ter a concretude da prova para atacar a reputação alheia. Existe algo mais atual no Brasil do que isso? “Quando mostrei o filme em outubro, as pessoas saíam do cinema e vinham me perguntar – ‘você filmou isso na semana passada?’ Calhou de ser numa hora atual e é preciso manter essa atualidade, porque esse assunto tem que ser muito discutido. É perigoso”, comenta Carolina.

Um outro aspecto do nosso cotidiano caótico e sem fronteira entre público e privado é a obsessão com a sexualidade alheia. Na narrativa, tanto o personagem do pai como a diretora e o delegado que interroga Rubens indagam, com semblante quase medieval: “Você é homossexual?” Aos teus olhos responde da melhor forma: O que isso tem a ver? “Levei o filme para o Festival de Guadalajara e, lá, fiquei surpresa porque selecionaram para a mostra gay. Fui conversar com eles e me disseram que o filme discute o preconceito. O pai fica obcecado em saber se o professor é gay porque, na verdade, se fosse uma mulher, não teria história. Gostei desse argumento”, revela a diretora.

Ela se despede da conversa com a Continente ratificando a sua “maior vontade” e decerto um dos maiores trunfos do seu longa: “A vontade de deixar a reflexão para o público”. “É por isso que o título é esse – Aos teus olhos. Cada um julga como quiser, quase como se nem precisasse existir a justiça”, alinhava Carolina Jabor. Numa terra sem lei como está o Brasil, em que juízes saem sem justificativa no meio do julgamento de um habeas corpus que pode impactar uma eleição presidencial e linchamentos são postados no YouTube para gozo generalizado, é imperativo refletir sobre o quão fatal isso pode ser.

 

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