Vendo o documentário e acompanhando aquele mergulho observacional nas relações humanas enfeixadas naquele espaço (“esse é o outro eixo do filme: mostrar o que aconteceu dentro da estrutura de poder que é o Palácio da Alvorada, com seu pé-direito alto, com suas curvas, com sua grande arquitetura e seus milhares de funcionários que sempre vão atender o mandatário do país”, sublinha Anna) e na rotina de uma mulher à espera (do tempo, de alguma resolução), percebemos a dignidade, a inteireza e a complexidade de alguém que sempre foi retratada de maneira agressiva e derrisória pela mídia, bem como nos altos círculos da nossa sociedade machista e misógina. E, ao cotejar o que aprendemos com o acesso que Alvorada nos dá a essa figura única em nossa História, e ao seu modo de ser, estar e resistir, com o que se deslinda em O processo (2018), de Maria Augusta Ramos, e em Democracia em vertigem (2019), de Petra Costa, entendemos, também, o escopo do golpe imposto não apenas a ela, mas, sim, à nação.
Dilma Rousseff não se via como personagem e afirmou que não permitiria tudo, mas nunca censurou o trabalho da equipe de Alvorada. Tanto por compreender e respeitar, como poucas, e sendo ela mesma uma sobrevivente da violência com que o Estado brasileiro reprimiu os movimentos contra a ditadura militar que nos governou entre 1964 e 1985, a importância dos rituais democráticos – como lembra Anna, “nos impressionava muito o fato de ela não tomar tudo aquilo como pessoal, por mais que parecesse, pois os ataques eram muitos, inclusive ao corpo dela, mas ela sempre interpretou como parte do processo político”; como porque ela, sábia e presciente, até, reconhecia o quão crucial é registrar “a nossa versão”. “Disputamos toda hora.”
Com distribuição da Vitrine Filmes, Alvorada entra em cartaz ainda neste maio, ampliando justamente as possibilidades interpretativas para os eventos que, de 2016, parecem ainda reger os rumos do país. Na mesma semana em que as diretoras apresentaram o filme pela primeira vez, o pleno do Supremo Tribunal Federal ratificou a decisão que viabiliza uma provável candidatura de Lula em 2022. E, ante a elegibilidade de Lula, será que um dia chegará a vez de reabilitarmos Dilma? “Com ele voltando à cena política, acho que olhar para a Dilma é propício e de fato o filme traz esse olhar importante para o momento, pois revisita aquele lugar”, comenta Lô Politi. “E podemos entendê-la sob uma perspectiva mais ampla. Não podemos esquecer, nunca, que ali havia um ódio coletivo, meio louco, meio acéfalo, e que o homem que homenageou o torturador dela acabou virando presidente da República dois anos depois”, completa Anna Muylaert.
Em um aspecto ambas as realizadoras concordam e Alvorada nos leva a refletir: o Brasil não estava preparado para ter uma mulher na presidência, muito menos uma Dilma Rousseff. Constituída por uma fibra rara e de extrema resiliência, ela era farol quando o país, ao escolher as trevas, precisou apagá-la para que imperasse a escuridão.
LUCIANA VERAS, jornalista, crítica de cinema e repórter especial da Continente.