Curtas

Alvorada

Documentário de Lô Politi e Anna Muylaert retrata os dias de espera de Dilma Rousseff

TEXTO Luciana Veras

03 de Maio de 2021

Dilma Roussef não censurou o trabalho da equipe de do filme

Dilma Roussef não censurou o trabalho da equipe de do filme

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 245 | setembro de 2020]

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Os primeiros créditos de Alvorada (Brasil, 2021), documentário de Lô Politi e Anna Muylaert que teve sua estreia em abril, no festival É Tudo Verdade, sobem, tipografia branca sobre fundo preto, com um áudio específico ao fundo: é o voto de um então deputado federal na sessão transcorrida em 17 de abril de 2016, no Congresso Nacional, em Brasília, para avalizar o processo de impeachment contra a primeira mulher eleita, e reeleita, para a presidência de República Federativa do Brasil. Ouvimos, portanto, a voz daquele parlamentar carioca, que justifica seu “sim” em memória do torturador que ele denominou “o pavor” de Dilma Rousseff. Corta para a atualidade, e o outrora deputado ocupa hoje não apenas o cargo que ajudou a remover de Dilma, bem como os cômodos e os amplos espaços do palácio que dá nome a este filme.

Alvorada, pois, estrutura-se a partir de quando a presidenta é afastada de suas atividades, em maio de 2016, e recolhe-se à sua residência oficial. “Chegamos ao palácio em junho e ficamos até setembro. Foram dois meses e meio filmando todo dia", reconta Lô, que se viu impelida a registrar o controverso rito de impeachment que estava em curso. “Um pouco depois dessa sessão fatídica da Câmara, quando ela já estava afastada e o processo em andamento, eu estava muito agoniada, conversando com as pessoas à minha volta sobre o lado dela. Pois ninguém sabia o que estava acontecendo com aquela mulher, enquanto o Congresso e o Brasil inteiro queriam tirá-la e ela estava dentro de sua casa, que era o Alvorada. Falei com a Dilma e, para minha surpresa, ela topou na hora. Voltei para São Paulo, chamei a Anna e entramos na urgência para fazer imediatamente”, acrescenta a realizadora paulistana.

As duas cineastas já conheciam aquela que seria sua personagem principal. Em conversa com a Continente, ocorrida justamente no dia em que o documentário seria exibido no É Tudo Verdade virtual, Lô revela que havia dirigido a então candidata do PT à sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva durante a campanha de 2010, mesmo ano em que Anna participou de um jantar com Dilma. “Sempre me impressionei com a cultura dela, a inteligência, a curiosidade. Ela é uma pessoa muito viva e eu nunca vi essa representação na imprensa. Havia essas características não tão conhecidas, como a cultura e a visão política, então construímos o filme com dois eixos principais e um deles era ela como personagem”, pontua Anna.

Sob a perspectiva de enquadrar Dilma Rousseff como protagonista, logo no início de Alvorada, antes de 15’ da sua 1h20 de duração, há dois momentos que chamam a atenção. Em um deles, a presidenta entra em uma sala, suas costas seguidas pela câmera e a voz em off de Anna Muylaert indaga “e como é que você está sentindo a nossa câmera?” – em uma equipe enxuta, eram duas pessoas a operar o equipamento, o diretor de fotografia César Charlone e a própria Lô Politi. “Invasiva, e tem hora que excessiva”, ela responde. Na sequência seguinte, sentada num sofá, Dilma ressalva: “Eu não sou um personagem”. Entra a voz de Lô a rebatê-la: “Você é um personagem”. Ao que ela devolve em tréplica: “Não sou um personagem o tempo inteiro”, emendando, “Tem coisas que vocês não farão, eu não vou permitir”.


As diretoras Lô Politi, Anna Muylaert e equipe acompanharam Dilma Rousseff por dois meses no Palácio da Alvorada. Imagem: Reprodução

Vendo o documentário e acompanhando aquele mergulho observacional nas relações humanas enfeixadas naquele espaço (“esse é o outro eixo do filme: mostrar o que aconteceu dentro da estrutura de poder que é o Palácio da Alvorada, com seu pé-direito alto, com suas curvas, com sua grande arquitetura e seus milhares de funcionários que sempre vão atender o mandatário do país”, sublinha Anna) e na rotina de uma mulher à espera (do tempo, de alguma resolução), percebemos a dignidade, a inteireza e a complexidade de alguém que sempre foi retratada de maneira agressiva e derrisória pela mídia, bem como nos altos círculos da nossa sociedade machista e misógina. E, ao cotejar o que aprendemos com o acesso que Alvorada nos dá a essa figura única em nossa História, e ao seu modo de ser, estar e resistir, com o que se deslinda em O processo (2018), de Maria Augusta Ramos, e em Democracia em vertigem (2019), de Petra Costa, entendemos, também, o escopo do golpe imposto não apenas a ela, mas, sim, à nação.

Dilma Rousseff não se via como personagem e afirmou que não permitiria tudo, mas nunca censurou o trabalho da equipe de Alvorada. Tanto por compreender e respeitar, como poucas, e sendo ela mesma uma sobrevivente da violência com que o Estado brasileiro reprimiu os movimentos contra a ditadura militar que nos governou entre 1964 e 1985, a importância dos rituais democráticos – como lembra Anna, “nos impressionava muito o fato de ela não tomar tudo aquilo como pessoal, por mais que parecesse, pois os ataques eram muitos, inclusive ao corpo dela, mas ela sempre interpretou como parte do processo político”; como porque ela, sábia e presciente, até, reconhecia o quão crucial é registrar “a nossa versão”. “Disputamos toda hora.”

Com distribuição da Vitrine Filmes, Alvorada entra em cartaz ainda neste maio, ampliando justamente as possibilidades interpretativas para os eventos que, de 2016, parecem ainda reger os rumos do país. Na mesma semana em que as diretoras apresentaram o filme pela primeira vez, o pleno do Supremo Tribunal Federal ratificou a decisão que viabiliza uma provável candidatura de Lula em 2022. E, ante a elegibilidade de Lula, será que um dia chegará a vez de reabilitarmos Dilma? “Com ele voltando à cena política, acho que olhar para a Dilma é propício e de fato o filme traz esse olhar importante para o momento, pois revisita aquele lugar”, comenta Lô Politi. “E podemos entendê-la sob uma perspectiva mais ampla. Não podemos esquecer, nunca, que ali havia um ódio coletivo, meio louco, meio acéfalo, e que o homem que homenageou o torturador dela acabou virando presidente da República dois anos depois”, completa Anna Muylaert.

Em um aspecto ambas as realizadoras concordam e Alvorada nos leva a refletir: o Brasil não estava preparado para ter uma mulher na presidência, muito menos uma Dilma Rousseff. Constituída por uma fibra rara e de extrema resiliência, ela era farol quando o país, ao escolher as trevas, precisou apagá-la para que imperasse a escuridão.

LUCIANA VERAS, jornalista, crítica de cinema e repórter especial da Continente.

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