Curtas

Aeroporto Central

Com foco em dois imigrantes que fogem de guerras no Oriente Médio e buscam asilo na Alemanha, documentário do cineasta Karim Aïnouz estreia nas plataformas de 'streaming'

TEXTO Luciana Veras

07 de Maio de 2020

Área que recebeu refugiados entre 2015 e 2019 foi construída em 1923 e reformada por Hitler no III Reich

Área que recebeu refugiados entre 2015 e 2019 foi construída em 1923 e reformada por Hitler no III Reich

Foto Juan Sarmiento/Divulgação

Na primeira semana de abril, já na terceira de quarentena, recebo uma mensagem de Júlia Moura, da Primeiro Plano Comunicação, empresa responsável pelo lançamento de dezenas de filmes nacionais a cada ano. “Agora o filme do Karim que estreou em Berlim vai entrar direto em VOD. Lembro que você fez uma matéria bem legal na época, em 2018. Interessaria fazer algo agora?”, ela me pergunta via WhatsApp, essa ferramenta ubíqua que parece cada vez mais essencial, urgente e estressante em tempos de pandemia. Aliás, tudo em tempos de pandemia diverge do comum, portanto há de ser extraordinária também, na acepção literal da palavra, a tarefa de divulgar uma obra audiovisual no momento em que ninguém pode ir às salas, mas cresce estratosfericamente o consumo de conteúdo via plataformas de streaming, ou VOD, o video on demand.

É claro que respondo “sim” a Júlia, à chance de revisitar Aeroporto Central (Central Airport THF, Alemanha/Brasil/França, 2018) e, em especial, à oportunidade de mais uma vez conversar com o cineasta franco-argelino-cearense Karim Aïnouz. Isso se dá numa manhã de quarta de abril, já com um mês de isolamento social, por meio de uma ligação via, adivinhem, WhatsApp, em que Karim conversa com a Continente de Berlim, onde mora há anos. É um “press day virtual”, como define, com ironia, Júlia, pois na nossa vida pré-covid-19, o “press day” era um encontro presencial em que profissionais de vários estados passavam o dia se revezando para falar com determinado cineasta. A fim de promover Aeroporto Central, contudo, uma nova rotina se impõe: no dia em que entrevisto Karim, ele também falaria a outras duas dezenas de jornalistas, em ligação mediada pela assessoria e com cinco horas de fuso horário na frente.

Aeroporto Central, agora disponível em nichos como Now, Filme Filme, Looke e Vivo Play, entre outros, estava previsto para estrear em 26 de março, mais de dois anos após a sua exibição inaugural, na mostra Panorama da 68a edição da Berlinale. Foi lá na capital alemã que vi o documentário, na mesma cidade onde até hoje existe o Tempelhof Park, uma gigante área de lazer reconfigurada a partir do Aeroporto de Tempelhof, construído em 1923 e reformado por Adolf Hitler durante o III Reich, para servir de epicentro de ataques aéreos perpetrados pelas forças nazistas.


Tempelhof Park, uma gigante área de lazer reconfigurada a partir do Aeroporto de Tempelhof, servindo de abrigo a refigiados. Foto: Juan Sarmiento/Divulgação

“Você imagina o que é a loucura de ter um espaço daquele no meio de uma cidade como Berlim, erguido por Hitler para atender a objetivos militares, e décadas depois tudo aquilo, se transformar em abrigo para refugiados”, comenta Karim nesses dias de vida sob quarentena, transcorridos em seu apartamento em Neukölln, um bairro tradicionalmente repleto de imigrantes – "Estou confinado dentro de casa, todo mundo está, mas você já começa a perceber uma certa movimentação nas ruas", confessa. 

É a capacidade de reinvenção alemã. E de reinvenção o cineasta bem entende, pois seus filmes – de Madame Satã (2002) a A vida invisível (2019), passando por O céu de Suely (2006) – versam sobre personagens que buscam, sempre, frestas para se ressignificar, ainda que nem sempre consigam. Em Aeroporto Central, Karim documenta, ao longo de um ano, o cotidiano de dois homens – Ibrahim, um estudante sírio de 18 anos, e Qutaiba, um fisioterapeuta iraquiano – enquanto eles navegam nas ondas imigratórias para se estabelecer na Alemanha, tendo chegado ao país europeu na condição de refugiados a buscar asilo. O que lhes acontecerá? Por que observá-los durante 12 meses?

“Ia toda semana, conversava, observava… Esse ritual foi me permitindo identificar quem poderia ser personagem. Porque eu queria tentar entender um pouco essa espera, que não era só minha, de ter uma permissão para efetivamente filmar, mas a espera que eles estavam vivendo. Isso impregnou o filme de maneira positiva. E a minha espera era como um espelho da espera deles. O filme fala muito disso – desse processo de você esperar chegar uma carta para ter residência, por exemplo. E é como se eu estivesse fazendo a crônica de uma cidade. Queria que o filme tivesse a ver com a arquitetura e o modo como as estações, o tempo e o clima reverberam dentro do espaço”, me contou o diretor na entrevista que publicamos em setembro de 2018, na Continente #213, fruto da nossa conversa em Berlim, sete meses antes.


Em Aeroporto Central, Karim documenta, ao longo de um ano, o cotidiano de dois homens: Ibrahim e Qutaiba. Foto: Juan Sarmiento/Divulgação

Agora, quando o filme “estreia” longe das salas comerciais, ele fala do simbolismo que é lançar um documentário que radiografa vidas para além de fronteiras, quando estamos todos isolados e os países da Europa fecharam seus muros para impedir circulação de pessoas e da covid-19: “Íamos estrear o filme em março, estava tudo certo, mas aí veio a pandemia. O que fazer? Decidimos lançar para que o filme chegasse a um maior número de pessoas. Acho que esse tempo pode ser propício, e fértil, para pensar o que esse filme se propôs a retratar: a espera daquelas duas pessoas, daqueles dois homens, por algo, que é o acolhimento nesse país para onde se refugiaram”.

Muito mudou no mundo, tanto para Ibrahim e Qutaiba como para o próprio abrigo, que já não mais existe. “Eu sempre achei interessante demais essa perspectiva de que um lugar para receber refugiados, gente que fugia de outras guerras diversas, estava funcionando num aeroporto que Hitler reformou para os aviões militares. Agora aquela estrutura armada nos hangares foi desmontada, mas o Tempelhof Park está lá. Fechado em tempos de pandemia, claro, mas um parque no meio de Berlim”, observa Karim. Ele filmou entre 2015, ano em que os primeiros imigrantes começaram a chegar, e 2016, e o abrigo funcionou até 2019.

Seu olhar sensível para questões como identidade (quem aqueles homens haverão de ser em um novo país, cuja língua não dominam e onde nem todos os cidadãos os acolhem?), territorialidade (o que faz uma casa?), deslocamentos e, sim, esperança faz de Aeroporto Central uma obra atravessada por feixes do nosso tempo, mesmo que esse tempo, hoje, esteja em suspenso. “Estamos falando muito sobre a pandemia como um momento em que talvez não se devesse pensar muito, ou mesmo até lançar filmes, mas acho justamente o contrário. Vejo tudo isso como um instante propício para analisar o modo como vivemos, como estamos no mundo, o que andamos fazendo com a nossa vida e o nosso planeta”, pontua o cineasta.


Registro dos imigrantes no Tempelhof Park. Foto: Juan Sarmiento/Divulgação

Antes de Aeroporto Central abrir para a audiência brasileira, sob o selo da Mar Filmes e do Canal Brasil, o filme circulou por prestigiadas mostras do gênero, como CPH:DOX (Copenhague), Cinéma du Réel (Paris), Art of the Real (Nova York) e IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdam. Reconhecimento da crítica sempre é bom, claro, e mesmo na Berlinale o documentário já havia saído com o prêmio da Anistia Internacional, porém Karim Aïnouz sabe que nada supera o encontro – ainda que remoto, longe das salas – com o público.

E mesmo já tendo lançado dois filmes depois desse – A vida invisível e um outro documentário, Nardjes A., exibido na Panorama em fevereiro – e estando em fase de montagem de um outro projeto, sobre a guerra de independência da Argélia e as origens do seu pai, revela uma torcida para que passageiros desse Brasil em convulsão embarquem nessa jornada. “Acredito que esse é um tempo para falar de esperança, mesmo no Brasil, aliás, talvez principalmente no Brasil”, sentencia.

“Porque eu não quero falar do presidente da República, embora eu ache que ele tenha que ser interditado, aliás, é inacreditável que ele ainda não tenha sido interditado, e sim falar de mulheres como Ester Sabino e Jaqueline de Jesus, as pesquisadoras do Instituto de Medicina Tropical da USP”, sublinha o realizador, aludindo às cientistas que lideraram o projeto de sequenciamento do genoma do coronavírus. “Quero falar do Brasil que resiste, das pessoas que resistem, ainda mais durante a pandemia. Porque elas são o Brasil, não esse criminoso genocida”, alinhava Karim Aïnouz.

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Aeroporto Central
(Central Airport THF, Alemanha/Brasil/França,
2018). De Karim Aïnouz. Com voz em off de Ibrahim Al-Hussein. 97
minutos. Onde ver: Google+, Filme Filme, iTunes, Looke, Now,
Oi Play e Vivo Play.
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LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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