Para dar partida, eles burlam as regras de um aplicativo de corrida para pegar carona com Édouard (Édouard Sulpice), que esperava duas mulheres. Juntos, eles saem sem muitas motivações específicas, onde mais valem os pequenos encontros no caminho que o ponto de chegada.
A Félix está reservada a jornada melancólica, mas também de um autoaprendizado através dos percalços. Como era de se esperar, Alma não o está aguardando, e muito menos se surpreende positivamente com o seu gesto de amor. Está estabelecido um romance atabalhoado, de jogos de desejos e seduções, bem próximo às tramas dos clássicos de Éric Rohmer. Furioso, mas também ressentido, Félix dá o tom das situações cômicas, sempre sob o véu das desilusões de um jovem apaixonado.
Quem mede com leveza é Chérif, mais tranquilo e consciente das situações em que se coloca. Viajando na intenção de curtir as férias, ele se aproxima de uma jovem mãe e sua bebê. Um contato que transfigura o ritmo do filme à cadência natural de uma troca de afetos. Nesse meio, ainda contamos com a presença de Édouard, uma espécie de jovem pequeno-burguês que termina por aproveitar a viagem para cortar o cordão umbilical com sua mãe, após ser “obrigado” a ficar com os companheiros por causa de um problema no carro.
É neste núcleo pouco harmônico que Brac irá construir o seu filme de verão ou comédia de erros (no final, são mesmo coisas tão diferentes?). O cenário nasce do escape da metrópole Paris até um ambiente campestre – local perfeito para o fotógrafo Alan Guichaoua traduzir a aventura ensolarada em planos quentes e belos.
Nas palavras do próprio Brac: “Geográfica e socialmente, mas também mental e emocionalmente, as férias de verão viram o jogo, abalam hábitos e às vezes atrapalham o curso de uma vida. É essa experiência que Eric, Salif e Édouard viverão cada um à sua maneira. Três jovens que, por uma série de razões culturais, econômicas e familiares, não estão acostumados a se soltar de suas amarras, pegar a estrada e partir à aventura. Não é pra valer, claro, porque um dos encantos das férias é a emoção da aventura a um custo baixo. Mas é mais do que provável que esses poucos dias, por mais fúteis que possam parecer no papel, deixarão uma marca profunda nessas três vidas”.
Dessa pequena janela, onde o mínimo se torna o máximo, gestos e olhares sugerem amizades, tréguas, conflitos e sensações, mais do que os diálogos em si. Aliás, a trama também carrega tensões, seja nos jogos românticos, seja no tecido social que a contorna. Félix e Chérif são dois jovens negros, característica que, mesmo não se tornando tema central das suas narrativas, influencia sutilmente na construção das suas relações. Por exemplo, como é o contato conflituoso com Édouard, uma espécie de antagonismo de classe nutrido por ambos os lados. Se o desfecho positivo para esses impasses indica um otimismo universal, as desventuras de Félix também retratam as inseguranças amorosas nutridas por corpos negros. Tudo isso sem querer soar mais ou menos politicamente engajado.
“O jogo do desejo e da sedução provoca uma sucessão de pequenos dramas e mal-entendidos e, aqui e ali, a fenda, temporariamente preenchida, volta a abrir-se com toda a sua violência. O filme opta por tratar essa questão social e política com leviandade, porque estamos em uma comédia. Mas a comédia é às vezes tingida de amargura, da mesma forma que um céu de verão escurece quando uma tempestade passa ao longe”, sintetiza o diretor.
Com um elenco diverso, cujas próprias histórias contribuíram para o filme, À l’abordage discute a juventude, suas relações e conflitos, sob o sol de um belo dia de verão.
É importante ainda ressaltar que o longa-metragem surge do trabalho do cineasta com o Conservatório de Arte Dramática de Paris (CNSAD), renomada instituição do cinema na França. Boa parte dos seus filmes também se encontram no Mubi, A world without women (2011), Treasure island (2018) e July tales (2017), resultado de um workshop com alunos do conservatório. Uma boa oportunidade para se aventurar, sem muita pretensão, na filmografia de um dos cineastas franceses mais interessantes da atualidade.
JOÃO RÊGO, jornalista em formação pela Unicap e repórter estagiário da Continente.