Curtas

A estreia solo bem-humorada de Matheus Torreão

Primeiro disco do músico recifense traz um viés cômico para falar de temas sérios

TEXTO Camila Estephania

01 de Fevereiro de 2019

Foto GUILHERME GUEDES/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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No ano de 2014, o Recife estava um tédio para Matheus Torreão. Ou, pelo menos, assim parecia quando ele cantava Eu vou embora para o México, em busca de uma terra com mais oportunidades, na despedida como vocalista da extinta banda A Caravana do Delírio. Mas não foi preciso ir tão longe para movimentar a vida. Há quase cinco anos, o músico se mudou para o Rio de Janeiro com a prerrogativa de cursar um mestrado na Universidade Federal Fluminense, que fica em Niterói, e encontrou novo gás para seguir a jornada que resultou no Disco de estreia, lançado em novembro passado.

“Me formei em jornalismo e fiquei perdido. Já tinha conhecido muita gente boa no Rio de Janeiro, com quem eu tinha vontade de trabalhar e vi mais janelas abertas aqui do que no Recife”, explica ele, atualmente com 28 anos. A vida acadêmica conquistou Matheus, que chegou a iniciar o doutorado sobre Semiótica da Canção, mas a identidade artística falou mais alto quando saiu da universidade para integrar a equipe de roteiristas da série Mister Brau, da Rede Globo. Lá, o pernambucano exercitava o que mais gosta de fazer: compor canções e usar o humor.

Inspirada pelo arquétipo da saga do herói, a capa do primeiro álbum solo, desenhada por Celso Hartkopf, entrega o nome completo do trabalho: “Disco de estreia de um jovem recifense que venceu um reality show, mudou-se para a República Independente da Bossa Nova, fez um mestrado acadêmico decididamente irrelevante, teve seu instável talento para a comédia contratado pela indústria do sitcom e usou todo o dinheiro que ganhou até aqui para gravar nove canções”. O título traz consigo a proposta do álbum de reprisar e, ao mesmo tempo, recompor a odisseia particular de Matheus que, além de trazer novas canções, também resgata algumas composições antigas, reapresentadas em versões afinadas com seu novo universo sonoro.


Matheus Torreão apresenta Disco de estreia. Imagem: Divulgação.

Não é à toa que Eu vou embora para o México foi escolhida para abrir o disco e adiantar seu viés cômico para tratar de assuntos contemporâneos sérios, como o exílio explorado na faixa em questão, entre outros temas que atravessam a política, as questões afetivas e o comportamento social. “As músicas que foram escritas antes acabaram ganhando novas camadas diante desse novo cenário político. A forma como sempre tentei usar o humor é uma sublimação, um jeito de sofrer menos com esse mundo doido”, explica ele, que defende o Movimento Sem-Terra quando revisita o seu Baião do apocalipse, e fala de repressão no rock de Sistema nervoso.“Você insiste que o sistema é cruel e escraviza o nosso povo. Te cuida, meu filho, não deixe o sistema nervoso”, alertam os versos, também gravados primeiro com A Caravana do Delírio.

Em Meu caro amigo, o músico faz as pazes com a sua breve experiência gay e coloca o próprio machismo em xeque, quando se questiona “como pode haver sentido no segredo?”. “Foi uma música autobiográfica, porque eu tive vergonha e depois percebi que eu estava acima disso. Escrevi para fazer chacota com o medo de assumir e não com a experiência em si”, esclarece ele, que já havia gravado a canção em voz e violão no EP Compacto, de 2017, e agora a trouxe à tona novamente com roupagem mais encorpada, com órgão, clarinete, percussão, bateria, guitarra e baixo. A fartura instrumental permite que, em uma só faixa, o pernambucano vá do jazz ao groove pop.

Parte dessa diversidade sonora se deve à produção dos inventivos Guilherme Lirio e Pedro Dias Carneiro, o Vovô Bebê. A dupla arquitetou os arranjos do álbum e convidou um time formado por mais de 10 feras para executar o repertório versátil, que explora diversas nuances do Tropicalismo, destacando ritmos como o samba, o baião e o rock. Entre os músicos mais constantes, estão o baterista Marcelo Callado, da Banda Cê (famosa por tocar com Caetano Veloso), o violinista Felipe Pacheco, da banda Baleia, e a clarinetista Joana Queiroz, da Quartabê. A lista de instrumentos usados para dar vida a tantas texturas ainda passa por flauta, pífanos, sax, maracas, conga, wurlitzer, entre outros. Sem esquecer os luxuosos coros, com a participação de nomes como Mãeana, que endossa canções como Não cante perto de mim.

“Na Caravana, eu me apresentava como instrumentista e fazia arranjos também, mas com o tempo eu passei a me entender mais como cancionista. Por isso, eu quase fui um espectador desse disco. As músicas mais recentes, eu compus sem instrumento para não limitar as canções à minha capacidade como instrumentista e levei para o estúdio para ver a mágica acontecer”, comenta ele, cuja relação de confiança com Guilherme Lirio vem do reality show Geleia do Rock, transmitido pelo canal fechado Multishow, do qual os dois saíram vencedores em 2010 e permaneceram amigos desde então.

Faixas ao estilo musical da Broadway, como a divertida My roomate is away reforçam a ironia das composições de Matheus e são exemplos dessa nova safra de canções sem limites estéticos. “Sempre fui muito fã de musicais clássicos e sentia vontade de produzir coisas no estilo, até que fiz uma música na linha, pela primeira vez, para o Especial de ano todo com Clarice Falcão (Netflix) e gostei”, lembra ele, que planeja lançar um disco inteiro com essa proposta, futuramente.

O estilo também encontra espaço em Estrela pornô que, em tempos de nudes e sex tapes, lembra com nostalgia a magia das grandes produções eróticas. “A ideia era fazer uma ode às pessoas que prestam esse serviço de fazer um filme com uma história que mexe com você além do estímulo pornográfico. Por ser considerada culturalmente menor, a pornografia é o mais subutilizado dos gêneros audiovisuais, infelizmente”, observa ele, que cita o nome de vários atores e atrizes famosos do ramo nos versos.

Talvez a composição mais séria do álbum, A morte da amizade, fala das relações humanas através de metáforas botânicas e conta com rupturas e reviravoltas estéticas entre a introdução, o refrão e a conclusão, como acontece em várias outras faixas. Autor de todas as canções do Disco de estreia, Matheus só divide a composição de Muriçocrates, que lembra às criações de Tom Zé, em Estudando o samba, e foi escrita em parceria com os conterrâneos André e Bernardo Valença. Aliás, é sem qualquer resquício de tédio que o músico anseia voltar ao Recife para apresentar o show do álbum entre amigos e admiradores da terra natal.

CAMILA ESTEPHANIA, é natural de Serra Talhada e vive no Recife, onde escreve sobre música.

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