A Baleia
Compaixão, empatia, gordofobia e autodesprezo são alguns dos temas que perpassam o novo filme de Darren Aronofsky
TEXTO Laura Machado
23 de Fevereiro de 2023
Brendan Fraser faz o seu retorno triunfal à indústria do cinema como Charlie
Foto A24/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
“Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível” – Moby Dick
É sobre a obra da literatura clássica do escritor estadunidense Herman Melville, Moby Dick, a redação preferida do professor universitário Charlie. Com o tom pessoal das essays norte-americanas, o texto é quase uma resenha sobre o livro e defende, em tese ousada e pessoal, que os trechos tediosos da leitura de Moby Dick estão ali para ajudar o próprio narrador a esquecer si mesmo e sua realidade. A redação é extremamente importante para o protagonista do mais novo filme do diretor Darren Aronofsky, A baleia, que com estreia nesta quinta (23) nos cinemas brasileiros e conta com três indicações ao Oscar 2023.
Com sobrepeso e problemas de saúde, Charlie, interpretado no longa por Brendan Fraser, sofre com episódios de falta de oxigenação do coração e, em meio aos momentos nos quais acredita estar morrendo, passa a entonar a redação que já sabe decorada ou pedir que alguém a recite para si. As frases escritas anos antes e já marcadas em sua mente parecem levar uma tranquilidade distinta para seu coração. Estas frases anunciam a narrativa desde o primeiro momento do filme e correspondem a um prenúncio da história que o espectador está prestes a mergulhar.
Isso porque, assim como a redação querida pelo protagonista da trama, ele próprio parece viver como alguém que escolhe ignorar sua realidade. Depois da morte do parceiro, afastado da ex-esposa e da filha, Charlie evoca sua profissão como professor de inglês ao mais alto patamar de sua existência e, em meio às aulas online nas quais opta por permanecer com a câmera desligada, luta contra a tristeza e o desprezo por seu corpo.
Com roteiro baseado na peça de Samuel D. Hunter e adaptado pelo mesmo, A baleia se passa, em sua totalidade, na duração de uma semana e inteiramente dentro da casa do protagonista, onde Charlie sente sua vida esvaindo-se de si mesmo e espera pelo inevitável fim de sua vida. Ao lado de Fraser, a atriz Sadie Sink, conhecida por seu papel como Max em Stranger things, interpreta a filha adolescente, Ellie, que foi abandonada pelo pai anos antes. Hong Chau é a atriz que faz a enfermeira e amiga do protagonista e Ty Simpkins atua como Thomas, um garoto religioso que vai até a casa de Charlie para espalhar a palavra de sua igreja.
Sadie Sink como Ellie em A Baleia. Foto: Niko Tavernise/A24/Divulgação
Após papéis em filmes como George, o Rei da Floresta e A Múmia, Brendan Fraser faz seu retorno triunfal à indústria do cinema como Charlie. Atuando com grandes próteses e em um cenário limitado, ele é o responsável por criar um homem real, inseguro, conformado e, acima de tudo, esperançoso na bondade das pessoas. Sensível em todos os momentos, grande mérito que torna o filme uma obra singela sobre compaixão é a visível entrega do ator ao seu personagem. Não à toa, Fraser concorre ao Oscar de Melhor Ator este ano.
Apesar de o filme não ter sido indicado à principal categoria da premiação, A baleia não é indispensável apenas pelo ator principal. Desde as suas primeiras cenas, é minuciosa e detalhista a forma como a narrativa se desenvolve: contando sobre o presente ao mesmo tempo em que instiga o espectador a questionar o passado e o futuro, trazendo para perto cada um dos personagens que navegam ao redor do protagonista, criando um sentimento pessoal entre cada um deles. Todos os detalhes culminam em um longa-metragem primoroso, questionador da bondade e da natureza humana.
Fazendo uso de uma fotografia claustrofóbica e muito bem-utilizada, a prisão que o personagem sente também é sentida por quem assiste ao filme e a empatia é um dos mais fortes sentimentos evocados com o passar do tempo. Espectadores e personagens parecem caminhar em conjunto durante o filme e as emoções derramadas pelas cenas atravessam as telas de cinema.
Hong Chau está indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por seu papel como Liz. Foto: A24/Divulgação
Por vezes, as pessoas ao redor de Charlie o enxergam como um monstro (destaque para sua filha, Ellie, que tomada pela mágoa do pai ausente, é ríspida e fria com o homem); como um ser humano nojento e descartável. Essas nomeações partem de uma gordofobia presente na sociedade e em como corpos gordos são constantemente vistos como inferiores. Na obra, essa visão também é apresentada, inclusive com a internalização dos preconceitos pelo próprio protagonista. Depois da perda do marido, Charlie não se sente mais digno de nada, passa o filme em constantes pedidos de desculpas que não precisariam ser ditos e deseja, mais do que nunca, consertar a relação com a filha, não para que ela o perdoe, mas para que ele tenha a certeza de que ela será uma pessoa boa.
Tal qual a interpretação do autor da redação sobre Moby Dick que acalma Charlie, ele também parece se esconder atrás das redações que corrige e das aulas, e ainda que esteja passando por um problema sério de saúde, além da grave compulsão alimentar, baixa autoestima e em iminência de morte, ele insiste em se enxergar vazio, incapaz de ver a beleza que está em si, inerente a tudo, e utiliza de todos os artifícios para esquecer de si.
É uma ambiguidade melancólica a vivenciada por Charlie, incapaz de enxergar em si mesmo qualquer tipo de grandeza, ainda que veja em todos ao seu redor, uma generosidade espetacular. Assim, A baleia se constrói como um drama trágico e angustiante que destaca as dores de se perder de si mesmo e do ato de coragem que é possuir esperança no outro.
LAURA MACHADO é estudante de Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.