Comento com os dois diretores que, ao ver Inabitável em outubro de 2020, no Olhar de Cinema, conversei com André Santa Rosa, crítico do Diario de Pernambuco, e juntos concordamos que havíamos sentido uma atmosfera à Arquivo X - seriado criado por Chris Carter na década de 1990, com David Duchovny e Gillian Anderson como os agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully, a investigar casos em que abundavam o fantástico, o sobrenatural e o inexplicável. “Através de uma realidade concreta, que dá conta do estado do nosso país, construímos a narrativa no gênero fantástico. É como uma mensagem colocada numa garrafa, enviada para que o mundo consiga entender um pouco o que é viver no Brasil nesses tempos tão difíceis”, pontua Enock.
De Salvador, onde mora, Luciana Souza fala à Continente sobre os elementos que aproximam o curta das realidades locais e do resto do planeta. “Sabemos que essa realidade de violência, de medo, é algo que nos traz ao Recife e também aqui à Bahia. Como sociedade, fomos caminhando de forma abafar as diferenças, a diversidade, a própria nudez do ser humano e assim mascarando com outras fantasias, como se o mundo tivesse que ser assim - homem e mulher, pai e mãe. Isso gera uma desumanidade e conflitos e se mistura com as diferenças de classe e com a luta pela manutenção de privilégios. Acho que esse momento de pandemia vem acirrar tudo isso e mostrar que, cada vez mais, são questões e temas que estão entrelaçados. Inabitável vem do Recife, e tem a ver com Salvador, mas vai adentrando em problemas que estão no mundo. Essa luta nos Estados Unidos, onde a negritude toma um posicionamento e está se impondo, reverbera aqui também”, pondera a atriz.
Ela conta que já admirava o cinema produzido no Recife, em Pernambuco, e que a experiência com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sinalizou algo: “Me disse para entrar mais nesse lugar, para me relacionar mais com as pessoas aí. O processo de Inabitável foi muito bom, pois pude fazer uma imersão total, estar ali junto dos aderecistas, da maquinaria. Todo dado é importante para meu trabalho como atriz. Sou muito grata porque esse filme me deu uma imersão maior e agora tem tido uma repercussão enorme, a partir dessa temática gritante e necessária que o conduz”.
No final, quando Marilene, seu personagem, olha para o horizonte, em um plano que me remete a Contatos imediatos do terceiro grau (1982), de Steven Spielberg, Inabitável reforça a magia que o cinema há de sempre nos trazer. “Uma possiblidade de existir um lugar onde se possa viver sem essas limitações, sem medo, onde as diferenças possam se respeitadas, onde se possa ter uma vida digna de fato”, aponta Luciana Souza. “Onde Marielle Franco, Mateusa, Dandara, Beto, assassinado no Carreffour de Porto Alegre, não precisem morrer, onde a população negra não seja exterminada dentro de uma política de Estado”, corrobora Matheus Farias.
Em Sundance, nos festivais brasileiros e em todas as outras mostras em que for escalado, este filme nos lembrará, sempre, que “a verdade está lá fora”, como diziam Mulder e Scully em Arquivo X, e que a arte é sempre esperança.
LUCIANA VERAS é repórter especial da revista Continente e crítica de cinema.