Curtas

'Inabitável' em Sundance

Curta-metragem dos realizadores pernambucanos Enock Carvalho e Matheus Farias está na mostra competitiva do festival norte-americano, em exibição online até 3 de fevereiro

TEXTO LUCIANA VERAS

29 de Janeiro de 2021

"A verdade está lá fora", Marilene

FOTO Gustavo Pessoa/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

No dicionário Houaiss, a definição para o verbete “inabitável”, cuja primeira referência data de 1508, é simples: “não habitável; sem condições de habitabilidade”. No Brasil de 2020, inabitável pode ser o nosso país, a nossa cidade, a moradia precária em bairros periféricos, as ruas por onde circulamos com a infindável sensação de insegurança ou ainda o nosso corpo, principalmente se essa pele, a revestir a estrutura física de carne e osso, se desviar do que se considera a normatividade. E Inabitável é o título do curta-metragem dirigido pelos pernambucanos Enock Carvalho e Matheus Farias, único representante brasileiro na competição do Sundance Film Festival 2021.

Como todos os outros eventos cinematográficos desde abril de 2020, o festival está acontecendo na virtualidade até 3 de fevereiro. E sim, é possível ver não apenas Unlivable, como ficou a tradução para inglês, mas todos os outros filmes na seleção oficial do evento criado pelo ator e produtor Robert Redford. Na plataforma tickets.festival.sundance.org/, a um custo médio de US$ 25, tem-se acesso a uma robusta programação, que inclui também o longa-metragem brasileiro A nuvem rosa, escrito e dirigido por Iuli Gerbase.

“Nosso filme estará junto com outros 50 curtas, americanos e internacionais, e vamos participar remotamente dentro dessa loucura toda, até porque está bem difícil a entrada de estrangeiros em solo americano”, comenta Enock Carvalho. Ele e Matheus conversaram com a Continente ainda em dezembro, tão logo saiu a notícia da seleção. Era o último mês de 2020 e o desfecho de uma bela temporada, apesar da pandemia e suas vicissitudes, para o curta-metragem, o primeiro projeto da dupla depois de Caranguejo rei (2019): depois da estreia no 31º Festival de Curtas-metragens de São Paulo, a obra esteve em dezoito festivais, tendo sida premiada no 48º Festival de Cinema de Gramado e exibida, ainda, no 9º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba, no 30º Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema e no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Em Inabitável, Enock e Matheus prosseguem na exploração da sobreposição de camadas entre o que seria uma “vida real” e o sobrenatural, na acepção literal da palavra, aquilo que escapa e transcende a naturalidade. Marilene (Luciana Souza, de Bacurau) é uma mulher negra, moradora da periferia de uma metrópole (os créditos iniciais localizam o enredo no “Brasil de 2020, pouco antes da pandemia”, mas quem é do Recife (se) reconhece), que começa uma busca desenfreada pela filha Roberta (Eduarda Lemos), uma jovem trans que está desaparecida. Quando a narrativa começa, já estamos imersos nessa situação agônica, que instaura o medo como seu fio condutor.


Enock Carvalho e Matheus Farias. Foto: Gustavo Pessoa/Divulgação

O interessante é que esse medo, tão conhecido e reconhecido no Brasil, um dos países que mais matam transexuais e travestis no mundo, é na verdade um sentimento universal. “O mundo inteiro está com medo. E medo é universal. Essa questão transborda da população periférica, dos perigos aos quais estão submetidos os corpos da mãe negra, da moradora da periferia e da trans desaparecida, de usar esse medo específico que está na população negra e trans para outros medos, para o que temos vivido durante a pandemia, de não ter por perto as pessoas que amamos. O medo é universal e acho que isso tem chamado a atenção das outras pessoas”, observa Matheus.

Comento com os dois diretores que, ao ver Inabitável em outubro de 2020, no Olhar de Cinema, conversei com André Santa Rosa, crítico do Diario de Pernambuco, e juntos concordamos que havíamos sentido uma atmosfera à Arquivo X  - seriado criado por Chris Carter na década de 1990, com David Duchovny e Gillian Anderson como os agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully, a investigar casos em que abundavam o fantástico, o sobrenatural e o inexplicável. “Através de uma realidade concreta, que dá conta do estado do nosso país, construímos a narrativa no gênero fantástico. É como uma mensagem colocada numa garrafa, enviada para que o mundo consiga entender um pouco o que é viver no Brasil nesses tempos tão difíceis”, pontua Enock.

De Salvador, onde mora, Luciana Souza fala à Continente sobre os elementos que aproximam o curta das realidades locais e do resto do planeta. “Sabemos que essa realidade de violência, de medo, é algo que nos traz ao Recife e também aqui à Bahia. Como sociedade, fomos caminhando de forma abafar as diferenças, a diversidade, a própria nudez do ser humano e assim mascarando com outras fantasias, como se o mundo tivesse que ser assim - homem e mulher, pai e mãe. Isso gera uma desumanidade e conflitos e se mistura com as diferenças de classe e com a luta pela manutenção de privilégios. Acho que esse momento de pandemia vem acirrar tudo isso e mostrar que, cada vez mais, são questões e temas que estão entrelaçados. Inabitável vem do Recife, e tem a ver com Salvador, mas vai adentrando em problemas que estão no mundo. Essa luta nos Estados Unidos, onde a negritude toma um posicionamento e está se impondo, reverbera aqui também”, pondera a atriz.

Ela conta que já admirava o cinema produzido no Recife, em Pernambuco, e que a experiência com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sinalizou algo: “Me disse para entrar mais nesse lugar, para me relacionar mais com as pessoas aí. O processo de Inabitável foi muito bom, pois pude fazer uma imersão total, estar ali junto dos aderecistas, da maquinaria. Todo dado é importante para meu trabalho como atriz. Sou muito grata porque esse filme me deu uma imersão maior e agora tem tido uma repercussão enorme, a partir dessa temática gritante e necessária que o conduz”.

No final, quando Marilene, seu personagem, olha para o horizonte, em um plano que me remete a Contatos imediatos do terceiro grau (1982), de Steven Spielberg, Inabitável reforça a magia que o cinema há de sempre nos trazer. “Uma possiblidade de existir um lugar onde se possa viver sem essas limitações, sem medo, onde as diferenças possam se respeitadas, onde se possa ter uma vida digna de fato”, aponta Luciana Souza. “Onde Marielle Franco, Mateusa, Dandara, Beto, assassinado no Carreffour de Porto Alegre, não precisem morrer, onde a população negra não seja exterminada dentro de uma política de Estado”, corrobora Matheus Farias.

Em Sundance, nos festivais brasileiros e em todas as outras mostras em que for escalado, este filme nos lembrará, sempre, que “a verdade está lá fora”, como diziam Mulder e Scully em Arquivo X, e que a arte é sempre esperança.

LUCIANA VERAS é repórter especial da revista Continente e crítica de cinema.

Publicidade

veja também

Adeus a Riva

“Mulher, Corpo, Território: Julieta presente!”

Ô, ô, ô, Saudade do Recife e de Antônio Maria