'A natureza da mordida', de Carla Madeira
TEXTO Laura Machado
03 de Abril de 2023
Carla Madeira, autora de 'A natureza da mordida'
Foto MÁRCIA CHARNIZON/DIVULGAÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]
A dor que percorre o corpo segue pelas veias e se estabelece no coração, a dor do lado direito do peito que não sara, permanece. Ela costuma vir depois que o inteiro deixa de ter sua completude e acompanha a gente pela vida toda. Às vezes, aparece mais forte, sem razão ou gatilho, e não nos deixa dormir; outras vezes, sequer lembramos que ela segue ali, intacta e perene. É sobre essa dor que A natureza da mordida, livro da jornalista e escritora mineira, Carla Madeira, se debruça.
Biá é uma psicanalista aposentada e já idosa que sofre com o início da doença de Alzheimer, deseja ler a versão original do clássico de Victor Hugo, Les misérables, e gosta de sentar sempre na mesma mesa, na banca de revista do Rodolfo, que se torna quase um sebo improvisado nos dias de domingo. Olívia é uma jornalista jovem, amante das palavras, recém-apresentada àquela banca com livros raros e periódicos para degustação e que, por acidente, em uma tarde ociosa de domingo, senta-se para escrever justamente na mesa predileta de Biá. De início observando a jovem ruiva que está absorta no próprio mundo, ela depois se arrisca a sentar na frente dela e diz um “Oi”. A curta troca de saudações vira uma conversa, que se transforma em uma amizade benevolente e sincera, na qual as dores que machucam o coração são compartilhadas a partir de uma questão: “O que você não tem mais que te entristece tanto?”.
É logo no início da narrativa que Biá faz essa pergunta para Olívia, cuja resposta se desenvolve ao longo das 228 páginas do volume. Nela, Carla Madeira constrói as personagens com uma sensibilidade incomum – devoramos o livro com a intenção quase visceral de descobrir o encaixe final entre passado e presente.
A natureza da mordida foi publicado pela primeira vez em 2018, pela editora independente Quixote+Do, responsável também pela publicação de Tudo é rio, obra de estreia de Madeira, em 2014. Com o sucesso, seu primeiro livro ganhou uma reedição pela Record em 2021 – tornou-se o segundo livro de ficção mais vendido daquele ano, atrás apenas do premiado Torto arado, de Itamar Vieira Junior. Ainda no mesmo ano, Carla lançou Véspera, seu primeiro e mais recente trabalho pela Record. Em novembro de 2022, A natureza da mordida, antes esgotado, foi relançado com nova capa e pequenas alterações em seu corpo.
Depois do sucesso de Tudo é rio, Carla Madeira
relançou A natureza da mordida. Imagem: reprodução
O livro é dividido entre a narração de Olívia sobre os encontros frequentes que acontecem sempre na banca de revistas e as anotações de Biá sobre esses mesmos momentos. A escrita atinge seu ápice à medida que ambas vão confessando seus pensamentos íntimos, costurando os retalhos em uma grande colcha que expõe a razão de suas dores diárias.
Carla Madeira escreve como quem revela um segredo e isso torna a narrativa instigante, cria no leitor a sensação de estar diante do diário de suas personagens; porém, mais do que isso, evoca a empatia e a vontade de viver diante da iminência da perda. A natureza da mordida não é um livro exclusivamente sobre o luto, retrata o antes, o depois e mostra como é possível seguir vivendo com uma parte vazia.
Hipnotizante e o mais sentimentalista entre as três obras da escritora, o livro faz uma ode à ausência viva, é uma história que narra o depois do vazio, o tamanho imoral da dor daqueles que ficaram para trás, sem a concretude apaziguadora. “Somos felizes, Olívia, até o dia em que deixamos de ser. Aí notamos que a felicidade não é uma coisa abstrata, nem poética, nem complexa. Ela apenas está lá disponível e é sobretudo a ausência do irreversível”, diz Biá.
Em Tudo é rio, a escritora havia iniciado uma escalada próspera na sua abordagem crua — às vezes, até cruel — das relações dos protagonistas com os outros e consigo mesmo. Eles são essencialmente humanos, das piores e melhores formas possíveis, como caricaturas de pessoas que estão ao nosso redor. Já em Véspera, a tangibilidade dos destinos traçados é posta à prova com a ironia afiada da vida de uma família em ruínas e, mais uma vez, o ser humano em seu aspecto nu, ganha forma. Ainda que possuam propostas divergentes, as obras de Madeira se aproximam no ponto em que discutem o amor em suas variações, sendo que A natureza da mordida enlaça esse sentimento sem erros.
As dores infindas do luto, que machucam diariamente como uma ferida aberta, são retratadas na obra com um olhar emocionante e discutindo assuntos relativos ao trauma. A escrita de Carla instiga o leitor a não largar seu livro, a tragá-lo com deleite e aproveitar suas camadas. Ao chegarmos ao fim da leitura, a sensação é de desejar voltar ao começo, mergulhar outra vez nas histórias de Biá e Olívia. Também é comum a sensação de esperança que se esgueira pelas páginas. Ainda que o livro diga muito sobre o fim, o recomeço arde como uma fogueira rubra em suas passagens. “Sua história dói em mim, Olívia, a minha doerá em você, e enquanto isso acontecer podemos ter esperança.”
LAURA MACHADO é estudante de Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.