Crônica

Elogio aos meus exs e ao meu ciclo circadiano

TEXTO Gianni Gianni

01 de Julho de 2022

Ilustração Hana Luzia

[conteúdo na íntegra | ed. 259 | julho de 2022]

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Por que esta pergunta às 3h da manhã, abestada?”, respondeu um ex & amigo, às 12h42. Antes disso, outro ex tinha me escrito: “Não respondi antes porque não queria lhe acordar”. Entrar no sono com facilidade e, no geral, cedo é o meu trunfo de saúde mental nesta vida, mas nada impede que eu acorde no meio da noite cumprindo as expectativas do ritmo circadiano abalado dos nossos tempos. Às 3h da manhã, segundo especialistas em neurobiologia, a temperatura corporal sobe, os níveis de cortisol também se elevam e a produção de melatonina desce.

Se a vida estiver um pouco degradante, talvez essa virada fisiológica, que deveria ser sutil, se torne um espasmo ou uma sirene interna: aí, você acorda. Com uma fábrica de melatonina tão boa quanto a de cortisol, você vai ter a minha sorte e voltará a dormir em cerca de meia hora. Mas, as mentes aceleradas bem sabem, meia hora é o suficiente para um mar de insights, autoanálise, planos para conquistar o mundo, diálogos e paranoia. Sobretudo se a vida estiver um pouco degradante.

Neste início de ano, para além de problemas articulares e familiares – afora os políticos, que são de todos nós –, achei de bom-tom me envolver em uma microcrise romântico-erótica. Sim, enquanto o mundo se acaba, eu me distraio revivendo uns scripts adolescentes que, por vezes, envolvem transações com o ego de um homem branco de classe média e seu abdômen bem-definido. Quem nunca deixou o tesão turvar o bom senso, minhas sinceras condolências.

O que de fato interessa nesta crônica, porém, são aqueles a quem escrevi às 3 horas da madrugada enquanto me questionava sobre a minha sanidade, hábito que adquiri com desenvoltura, afinal, a sociedade capitalista & patriarcal é muito hábil em lhe fazer se sentir a um passo da loucura – também em distribuir caronas até lá.

Quando o bicho pega aqui dentro, fora da hora marcada com a arteterapia, recorro às minhas amigas e à minha mãe. À custa de muito vacilo, aprendi quando e com quem vale a pena partilhar meus momentos de desespero. Nesse capítulo, acionei umas cinco comadres. Ainda parece muito, mas, fazer o quê, gosto de pontos de vistas e tento não sobrecarregar as minhas interlocutoras não remuneradas.

Já meus amigos homens me ajudam a ver situações romântico-eróticas por outras lentes; e, entre eles, estão meus exs. No dia do lançamento do meu livro, quando eu e Dan – meu ex mais recente – apresentamos um poema que tínhamos musicado, eu concluí dizendo algo como: “Fiquem amigues dos seus ex”. Alguém retrucou no mesmo segundo: “Depende do ex, né?”. Sim, ninguém há de negar que depende muito. Não sou próxima de todos os homens com quem me relacionei de forma relevante: por um, tenho admiração, carinho e quase nenhum contato; com outro, não falo e sou indiferente, depois de muitos e muitos anos de mágoa; de três, considero-me amiga de um modo singular.

_ sublinharia apenas, neste espaço inventado, na falta de uma brecha melhor para encaixe no corpo do texto, que as observações, a seguir, dizem respeito ao universo dos casais heteronormativos monogâmicos, o que não impede de reverberar em outras searas _

Às 3 horas da manhã, se a vida estiver um pouco degradante e você tiver uma relação de confiança, cuidado e responsabilidade com seus exs – e eles com você –, talvez pareça fazer sentido enviar uma mensagem perguntando: Você acha que eu sou borderline?

Ninguém conheceu a minha instabilidade emocional melhor que eles; quer dizer, só a matriarca. Mas, de algum modo, eles foram parceiros e antagonistas do meu caos. Sempre achei esquisito o modo como uma pessoa que é central na vida de outra, em determinado momento – na rotina, nos planos e decisões –, se torna um completo nada a partir do segundo que o pacto romântico-amoroso está desfeito. Aliás, eu uso muito o termo “pacto” quando falo dos meus exs, e isso me gera grandes discussões da mesa de bar à poltrona da terapia.

Óbvio que a vida é móvel, nossos círculos mudam, nem todos precisam, devem ou merecem ser parte de nosso convívio. Parece-me, porém, que essa ruptura de afeto e convívio é bem “institucionalizada”, no caso de namoros e casamentos, porque é mais fácil descartar a pessoa junto com o projeto de casal, geralmente monogâmico. “Ex bom é ex morto”, repete aos quatro ventos a sabedoria popular. Uma exceção mais comum, talvez – não estou muito convencida disso que direi nas próximas linhas, mas me parece razoável acreditar –, sejam os casais separados com filhos, e com algum senso de responsabilidade emocional, e com algum interesse real nas individualidades um do outro; esses, por vezes, reinventam o pacto em nome da narrativa comum que envolve criar outra pessoa.

Quando o cenário não é esse, o fim do projeto de redenção da vida enquanto casal, o fim da promessa do amor romântico, a diluição dos desejos e fantasias que motivaram aquela aproximação, reduz a troca a pó. No fundo, muitas vezes, o seu interesse por determinado indivíduo está atrelado a um modo de vida, a um funcionamento da rotina, a um conjunto de acordos. Fora daquela performance, daquele contrato específico, talvez esse sujeito não lhe interesse para coisa alguma. E, nesse caso, não existirá exercício de imaginação para reinventar esse diálogo. Assim, alguém que habitou a sua intimidade e que você conheceu também no íntimo, subitamente, vira uma espécie de sombra ou um assunto banal no seu círculo de amigos.

Não é doido, doido, doido que a pessoa que em um ano foi a grande parceira da sua vida se torne uma completa desconhecida no ano seguinte? Na verdade, não. É, basicamente, a regra. Nas rodas por onde passo, a relação que tenho com meus exs que ainda não fazem o menor sentido. Em tempo, eles não acham que eu seja borderline, mas disseram que não possuem formação para dar opinião sobre isso.

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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