Cobertura

O encontro da cultura periférica nacional

Investindo mais forte na diversidade da programação e do público, Coquetel Molotov completa 15 anos com representantes de um fazer artístico historicamente marginalizado

TEXTO E FOTOS CHICO LUDERMIR

19 de Novembro de 2018

O brega-funk-suingueira de Troinha, que desceu literalmente para a plateia logo no início do seu show

O brega-funk-suingueira de Troinha, que desceu literalmente para a plateia logo no início do seu show

Foto Chico Ludermir

[conteúdo exclusivo Continente Online | nov 2018]

Faltava pouco para
meia noite e, no backstage, Troinha jogava totó com sua banda. Boné virado pra trás para enxergar melhor a bola, começou no ataque, mas, logo em seguida, trocou de lugar com sua dupla e assumiu a zaga. Era melhor na defesa. Durante os 20 minutos que antecediam seu show no festival Coquetel Molotov, no último fim de semana, dissolvia a ansiedade da apresentação que se aproximava rodando os jogadores de metal, evitando gols e comemorando suas vitórias com um sorriso em dentes cobertos de aparelho. Troinha jogou seis partidas. Não perdeu nenhuma.

De lá de trás do palco, ouvia-se a batida do rapper mineiro Djonga. Com suas letras antirracistas e de forte teor social, como é próprio do rap, inflamava uma plateia lotada, que se espremia, pulava e, em êxtase, cantava em coro as músicas do seus dois álbuns: Heresia, de 2017, eleito o melhor CD do ano pela revista Rolling Stone, e o recém-lançado O menino que queria ser Deus – este segundo com forte teor autobiográfico. Djonga, referência contemporânea pela composição e ritmo, explodia em sua movimentação enérgica e imprimia ao show a atmosfera da revolta que incorpora. Colados na grade que separa público e artista, corpos negrxs sentiam a música na pele. Repetiam com força o desejo de ver queimar o racismo.


Djonga (MG) em momento de erupção durante seu show

MC Troia e Djonga se encontraram rapidamente, na porta dos camarins, e mesmo sem se conhecerem ou se cumprimentarem, protagonizaram o momento de maior tietagem da noite. Nos bastidores, fãs se dividiam em fotos com os dois e eram recebidos por ambos com uma atenção carinhosa. Um encontro dos artistas que, a despeito das diferenças musicais e das formas diversas de fazer política com a música (afinal, a política não se faz só com o discurso, mas com – e sobretudo com – a própria representatividade, que é o ato de estar e fazer estar presentes), unia admiradores e estava carregado de simbolismos.

Djonga, rapper negro, vindo da favela do Índio em Belo Horizonte. Troinha, bregueiro, do Alto José do Pinho, no Recife, protagonista de uma nova geração de brega da cidade, que mescla o próprio gênero ao funk e ao suingue do arrocha. Dois ícones da cultura periférica nacional contemporânea. Representantes de um fazer artístico historicamente marginalizado subiriam ao mesmo palco, o principal do festival, o mesmo que, diga-se passagem, também recebeu o jovem mestre cirandeiro, de Nazaré da Mata, Anderson Miguel. Mestre Anderson é o mais importante representante de uma ciranda viva e que se renova; apresentou naquele dia, pela primeira vez no Recife, o seu terceiro álbum, Sonorosa, que mistura tradição e autoria.


Mestre Anderson, cirandeiro, em síntese de tradição e autoria

Troinha se benzeu, como faz sempre antes de subir ao palco e foi. Tinha me dito, pouco antes, que estava nervoso. Sem nomear a sensação de deslocamento evidente naquela situação, me relatou que ali era muito diferente dos espaços que estava acostumado a tocar. Mesmo assim, mostrava-se à vontade, e, sobretudo, com vontade. “Vamo ver o show, vamo ver”, repetia, mais confiante na sua música do que na sua fala. Dentro do camarim, as dançarinas Dani Costa e Vitória Kelly, musas da dança brega-funk, descreviam um estranhamento. Há uma semana, eu havia acompanhado o show de Troinha na casa de show Espaço Aberto, lugar conhecido do bairro da Imbiribeira pelas suas festas de brega, pagode e suingueira no Recife. “O que tem de diferente?”, perguntei. “As bandas, os ritmos, as roupas das pessoas. Somos acostumadas a tocar em casas de brega. Mas estamos muito animadas para a apresentação de hoje.”

Tão logo entraram no palco, o Molotov explodiu! O palco era dele. Era delas. Era delxs. Com direito à pirotecnia, Troinha dominou, fazendo todo mundo balançar, flexionar a “tcheca” e dar tiro de bumbum. Com uma presença cativante, se jogou literalmente na plateia e cantou nos braços do público; tirou fotos com pessoas do frontstage, em especial com um grupo de cadeirantes que vibrava na sua apresentação. O Coquetel era dele. “Foi um dos melhores shows que já fiz. Espero estar aqui ano que vem”, me disse no final do show.


A performance dos cariocas do Heavy Baile

Acompanhando a apresentação ao meu lado, a dançarina Sabrina Ginga, do grupo Heavy Baile (RJ), que encerraria a noite, se empenhava para acompanhar Dani e Vitória. Era ela quem iria sucedê-las no palco e proporcionar um diálogo entre os ritmos das favelas do Recife e Rio de Janeiro. Menos conhecido do público recifense do que o já consagrado Troinha, o funk e o passinho carioca se fizeram presentes em um performance vibrante e potente, comandado por MC Tchelinho, que cantou as músicas do primeiro CD da banda, Carne de pescoço.

Em quase uma hora de show, a apoteose do festival continuou mexendo com os afetos mais libidinosos. Em uma evocação à liberdade dos corpos, Heavy Baile intercalava suas músicas com gritos de “Ele não!” que marcaram as eleições deste ano e com um discurso em prol da tolerância e diversidade das identidades. Ressaltaram nas letras das músicas, e nos intervalos entre elas, a importância do respeito à autonomia das mulheres, à população LGBT e negra e, assim, conduziram o público ao delírio do alinhamento entre discursos e corpo, que culminou em um bailão em cima do palco.


A baiana Luedji Luna 

Esses 15 anos do Coquetel Molotov trouxeram um diálogo e um reconhecimento importantes de bandas nacionais nascidas nas periferias e da cena queer brasileira, o que se traduziu também na formação de um novo público (diverso daquele que majoritariamente frequentava o Teatro da UFPE nos primeiros anos do festival). Essa virada aconteceu desde o ano passado, a partir da mudança do evento para o Caxangá Golf Clube, com destaque para os shows memoráveis de Linn da Quebrada e Rincon Sapiência. Este ano, além de Troinha, Djonga e Heavy Baile, as meninas do Aqualtune (PE), Luedji Luna (BA), Anelis Assumpção (SP), Teto Preto (SP) e outros nomes da programação foram sinais importantes da preocupação da curadoria do festival com a diversidade e a representatividade

O ano de 2018, crucial para a política nacional, chega perto do fim tendo a necessidade de entender a política espalhada em cada espaço. O Coquetel respirou esse ar. Como dizia um das faixas na entrada do palco, feita pelo artista Aslan Cabral, “Abaixo a realidade”. Ou, em livre interpretação, para nossa indigesta conjuntura, essa cena musical é possibilidade e semente de criação de outra realidade.



CHICO LUDERMIR é jornalista, escritor e artista visual. É integrante dos movimentos Coque Vive e Ocupe Estelita e mestre em Sociologia pela UFPE. É autor do livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres, e do ensaio fotográfico da livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: A música brega em Pernambuco, escrito por Thiago Soares.

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