Além de tomarem conhecimento do PIB da Ecic, eles discutiram juntos aspectos do novo índice, que é resultado de um estudo detalhado desenvolvido pelo Observatório, braço da instituição paulistana voltado à produção de conhecimento e reflexão. Durante um ano e meio, pesquisadores brasileiros e estrangeiros trabalharam para reunir e sistematizar dados relevantes e necessários ao setor, sob coordenação do economista Leandro Valiati, professor de indústrias culturais e criativas na Universidade de Manchester, no Reino Unido. Aliás, a atuação britânica na área é uma referência ao escopo metodológico do estudo brasileiro, pelo seu pioneirismo na adoção de políticas públicas para as chamadas áreas criativas, que começaram a ganhar atenção como dinamizadoras da economia entre os anos 1980-1990, o que gerou expertise e construção de conhecimento.
“As políticas públicas para a economia da cultura e das indústrias criativas dependem, fundamentalmente, de um ecossistema. Em todos os países que construíram políticas organizadas para essa área, existia um ecossistema que unia universidades, governos, organizações não governamentais, fundações, organizações artísticas, a própria indústria, sindicatos, todos pertenciam ao debate”, afirmou Valiati, durante a coletiva. Para o pesquisador, a construção de evidências qualificadas dão subsídios não apenas para tomadas de decisão pelo poder público e privado – o quanto devem investir, por exemplo –, mas é um processo fundamental para alicerçar “uma narrativa importante sobre a relevância do setor cultural para a economia e a sociedade”.
A CRIATIVIDADE NA ECONOMIA BRASILEIRA (2012-2020)
Diferente de levantamentos estatísticos nacionais mais imediatos, como o de emprego e desemprego, feito a cada trimestre, semestre ou ano, o estudo engloba uma gama de cálculos mais profundos e microdados, o que faz com que o índice econômico apresentado pelo Observatório tenha um alcance até 2020 – mais especificamente, de 2012 a 2020. Neste intervalo de tempo, o conjunto de riquezas produzidas por trabalhadores culturais e criativos do país, incluindo grupos e empresas, revelou uma certa volatilidade a cada ano, como atesta um dos gráficos do estudo (veja abaixo).
E é de 2020 o número mais expressivo do PIB da Ecic levantado. Juntos, os segmentos de moda, atividades artesanais, indústria editorial, cinema, rádio e TV, música, desenvolvimento de software e jogos digitais, serviços de tecnologia da informação dedicados ao campo criativo, arquitetura, publicidade e serviços empresariais, design, artes cênicas, artes visuais e museus e patrimônio – elencados pelos pesquisadores como relevantes para a economia e a pesquisa – geraram 3,11% das riquezas produzidas no Brasil, durante o período. Em outros parâmetros, o equivalente a R$ 230,14 bilhões dos R$ 7,4 trilhões movimentados pela economia brasileira naquele ano.
Fonte: Observatório Itaú Cultural
Acima, observamos que, a despeito da oscilação, o PIB da Ecic, em relação ao PIB do país, segurou uma curva ascendente entre os anos de 2018 e 2020 e, apesar das variações percentuais, manteve uma média, entre 2012 e 2020, o período estudado, de 2,63%. Além disso, obteve um salto de 78% nos oito anos – enquanto a economia nacional avançou 55% no mesmo período, o que revela um potencial dinâmico do setor. Como podemos analisar, a representação da categoria para o PIB nacional subiu de 2,72% em 2012 para 3,11% em 2020, embora em 2015, por exemplo, tenha atingido a marca de 3,04%, voltando a cair no ano seguinte. Daí a percepção de uma certa volatilidade.
Presente na coletiva de imprensa ao lado do coordenador da pesquisa, o presidente da Fundação Itaú, Eduardo Saron, fez questão de exaltar que o conjunto de atividades culturais e criativas não representa a “cereja do bolo” da economia nacional, ou mesmo da nação, como se costuma dizer; é “parte integrante deste bolo” e os dados sustentam essa magnitude no Brasil. “Além de a gente humanizar e construir valores inquestionáveis no mundo da cultura, a gente gera emprego e renda, a gente produz desenvolvimento econômico deste país, mas precisamos crescer e conscientizar também, criar mais espaços de conscientização da própria sociedade”, defendeu Saron, que tem uma história de mais de 15 anos à frente do Itaú Cultural. “Pensar na cultura significa também impactar na saúde, impactar nos empregos, significa dar perspectivas para os jovens”, reforçou.
A “cereja do bolo” na verdade é: em um ano no qual o setor cultural, sobretudo artístico, saiu literalmente de cena por conta de uma pandemia e sofreu um processo de desmonte político (leia Eclipse da cultura no Brasil?) – e, vale lembrar: uma desmoralização sem precedentes –, a soma das riquezas geradas pelos “criativos” foi maior do que a do setor automotivo no mesmo período – correspondente a 2,1% do PIB brasileiro (o segmento, inclusive, vem enfrentando crise mesmo antes da pandemia).
Eduardo Saron durante a coletiva. Foto: Bruno Poletti/Divulgação
Para Cassius Antonio da Rosa, secretário-executivo adjunto do Ministério da Cultura, “esses dados são a prova da resistência e resiliência do setor cultural. A alegria voltou, como diz a ministra da Cultura Margareth Menezes e nós vamos fomentar esse debate com novas ações”. A fala foi dita no lançamento oficial do PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas (Ecic), realizado no Itaú Cultural após a coletiva de imprensa – na data em que marcavam, inclusive, os 100 dias do governo Lula. Além de Cassius, estiveram presentes, na solenidade, outras autoridades da cultura, como Fabiano Piúba (secretário de Formação, Livro e Leitura do MinC), Marília Marton (secretária de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo), Aline Torres (secretária de Cultura do município de São Paulo), Marcelo Queiroz (deputado federal pelo PP-RJ e novo presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados) e Fabricio Noronha (secretário de Cultura do Espírito Santo e presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura). Eles e outros gestores também se reuniram no dia seguinte (11 de abril), para debater o PIB da Ecic junto a representantes do Itaú Cultural e da Casa Rui Barbosa.
Como afirmou Cassius, estamos vivendo um “momento único” do MinC e da retomada da política pública cultural no país. O gestor, inclusive, frisou o quanto estão correndo contra o tempo para recuperar o tempo perdido e minimizar a força bolsonarista contrária ao setor nos últimos quatro anos. Por conta disso, já conseguiram destravar mais de 2 mil projetos que aguardavam liberação de recursos há quatro anos e, a partir do mês que vem, começarão a ser feitos, aos estados, os repasses de recursos da ansiada Lei Paulo Gustavo, que chegou a ser vetada e depois travada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no ano passado, sendo depois liberar pelo Supremo Tribunal Federal. O resultado é que, até o fim de 2023, a LPG investirá R$ 3,8 bilhões nos setores culturais e artísticos brasileiros, de todas as regiões, enquanto a Lei Aldir Blanc 2 prevê o repasse de R$ 3 bilhões a partir do segundo semestre (saiba mais aqui).
Este ano, inclusive, o Brasil é o convidado de honra da 7ª edição do Mercado de Indústrias Culturais Argentinas (Mica), em Buenos Aires, entre os dias 1º e 4 de junho. Será um momento estratégico de promoção internacional de nossa cultura e seu potencial econômico, com a participação de 90 empreendedores de audiovisual, circo, dança, teatro, design, editorial, hip hop, música e games, escolhidos pelo MinC a partir de um edital (as inscrições se encerraram no dia 31 de março).
LENDO COM ATENÇÃO O PIB DA ECIC
Voltando ao levantamento do PIB da Ecic, é preciso olhar com cuidado para os dados econômicos gerados pela classe artística e cultural, principalmente no tocante ao ano de 2020, de crise pandêmica e política (e de inexistência do MinC, extinto pelo governo passado). A pergunta que não quer calar é: como a área cresceu em um momento tão adverso? Não existe uma resposta exata, mas alguns indícios.
Questionado sobre isso, Leandro Valiati mencionou a dificuldade de chegar a uma conclusão no momento, sem outros estudos envolvidos, mas a questão da inserção de recursos pela Lei Aldir Blanc, por exemplo, uma medida de emergência para o setor, em 2020, articulada pela categoria junto à Câmara dos Deputados e à Comissão de Cultura de então.
No entanto, é preciso ir além, ao analisar os dados do Observatório Itaú Cultural, e ponderar que o PIB de 3,11% do setor em 2020 foi alavancado em mais da metade pela indústria criativa ligada à tecnologia (games, softwares, aplicativos etc.) e não aos segmentos ditos artísticos. Dos R$ 230,14 bilhões gerados pelo PIB da Ecic naquele ano, 50,13% vieram do agrupamento “Tecnologia” (utilizado como categoria de pesquisa), enquanto 47,71%, do “Consumo” (relacionado a moda, arquitetura, publicidade e serviços empresariais, design e editorial). São áreas importantes e que conseguiram crescer a despeito do governo federal. Mas o chamado agrupamento “Cultural”, por fim, representou 2,16% da fatia da Ecic em 2020, com destaque para atividades artesanais, artes cênicas, cinema, rádio e TV e música. A diferença é gritante.
Se compararmos com dados de outros anos, veremos o quanto “Tecnologia” cresceu vertiginosamente na contribuição para o setor entre 2019 e 2020 (ano, aliás, de virada digital por conta da pandemia). Por exemplo, em 2012, o agrupamento representou 16,94% dessa fatia, enquanto, em 2015 – quando o PIB da Ecic somou 3,04%, o segundo maior do estudo –, a área somou 23,88%. Em contrapartida, neste mesmo ano, “Consumo” teve 72,17% e “Cultural”, 3,94%.
A curva deste último agrupamento, que, devemos lembrar, está bastante relacionado à presença de políticas públicas, ascendeu entre 2012 e 2014, saltando de 4,06% para 6,95% (maior número do período pesquisado), em relação ao PIB da Ecic geral. Estávamos no primeiro governo de Dilma Rousseff. Em 2015 e 2016, em seu segundo mandato, a fatia "Cultural" no PIB da Ecic teve uma queda, ficando entre 3,94% e 3,96%, respectivamente, com uma retomada em 2017 (6,53%), após o seu impeachment e no governo Michel Temer – que, aliás, tentou acabar com o MinC e não conseguiu. Entre a era Temer e Bolsonaro, a curva foi decrescente para esse agrupamento – 3,67% (2018), 2,59% (2019) e 2,16% (2020). Mesmo com a criação, em 2018, do edital Mercado de Indústrias Criativas do Brasil (MicBR), sigla transformada em 2021, num megaevento, pela então Secretaria Especial da Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo do Brasil, e também pela Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, Ciência e Cultura (OEI).
Ao que tudo indica, e é preciso aprofundar o olhar para essa categoria do estudo, o caminho para os artistas pode ser diferente ou ainda é muito longo. Agora é inegável que esses dados, porém, ajudam a referendar o setor como um todo. Além disso, podemos, de repente, especular que se é o setor tecnológico criativo que mais lucra, como o caso da indústria dos games, por que não pode ele ser uma fonte de investimento para favorecer as partes mais frágeis da cadeia produtiva, como a cultura popular, que nem aparece no estudo do Observatório? É preciso esmuiuçar o diagnóstico e pensar estratégias.
Foi, inclusive, o que começou a pactuar os participantes do evento em São Paulo, no dia 11 de abril, de onde saiu a Carta São Paulo – Cultura como valor, assinada pelo Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, pelo Ministério da Cultura, pela Fundação Casa de Rui Barbosa e pela Fundação Itaú. Juntas, as entidades “pactuam o interesse em formar uma rede dedicada à produção de evidências e dados estatísticos, com o objetivo de aprimorar os estudos sobre o PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas, levando em consideração as diferenças e diversidades regionais, os múltiplos saberes e campos simbólicos, assim como as distintas fontes de dados existentes” (leia a carta na íntegra).
Como se pode ver, um dos pontos do documento é uma maior precisão da regionalização dos dados, que ainda carece de maior detalhamento e investigação, sobretudo quanto à real contribuição de cada estado – em suas diferentes matizes culturais e mecanismos de fomento – à geração de riquezas e ao desenvolvimento econômico do país. “Compartilhamento e integração de metodologias de mensuração existentes nos Estados e Municípios” é, inclusive, um dos objetivos da rede pactuada na capital paulista, para contribuir com esse processo de melhoria do PIB da Ecic.
“Estamos enfrentando novos – e bons – desafios, após a consolidação das políticas públicas emergenciais de apoio aos trabalhadores e de fomento à produção cultural. Mapear o tamanho, o impacto econômico e as características regionais das indústrias criativas e dos fazeres da cultura popular é um dos mais dos mais robustos esforços, que exigirá uma intensa articulação e adesão dos entes federativos”, disse à Continente Úrsula Vidal, secretária de Cultura do Pará e ex-presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, também presente na reunião dos secretários em São Paulo.
A secretária de Cultura do Pará, Úrsula Vidal, durante o encontro do dia 11 de abril, com secretários, dirigentes e gestores de cultura no Itaú Cultural. Foto: Bruno Poletti/Divulgação
MÉTODO DO PIB DA ECIC
Para realizar os cálculos, a pesquisa utilizou a base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNADc/IBGE), da Relação de Informações Sociais (Rais), do Programa de Avaliação Seriada (PAS), do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), além das Tabelas de Recursos e Usos do IBGE (TRU) – para contabilização dos impostos (remuneração governamental) –, do histórico de prestação de contas da Lei Rouanet e “de outras fontes externas para estimar a esfera digital”. “Graças a instituições como o IBGE, assim como a Fiocruz, a Embrapa, graças a instituições de Estado, é que o Brasil tem dados e informações muito confiáveis e muita ciência embarcada. E a gente bebeu dessa fonte, sob a liderança do Leandro”, reforçou Eduardo Saron, em claro discurso não só de defesa ao trabalho do Observatório, como ainda de resposta ao que viemos assistindo, nos últimos anos, a extrema direita fazer: atacar, com palavras e atitudes, instituições brasileiras consolidadas, incluindo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
A metodologia de cálculo do índice, que utilizou a renda, em vez da tradicional métrica do produto, foi vista como medida mais adequada à área, a partir de suas particularidades e limitações. Como isso foi feito? “De maneira simplificada, com a finalidade de calcular o PIB pela ótica da renda, é necessário contabilizar a remuneração do trabalho, o excedente operacional bruto (EOB) e os impostos sobre a produção. Nesse sentido, consideram-se as seguintes variáveis: salários – renda do trabalho; aluguéis – renda das instalações físicas; lucro – renda sobre o processo de produção; impostos – renda do governo”, explicam do artigo , publicado na recente edição de nº 34 da Revista Observatório Itaú Cultural (para entender melhor, acesse o artigo).
Quanto à limitação temporal do estudo, Saron afirmou: “Estamos atentos para inserir [os números de] 2021, que deve estar disponível no final do ano. Mas a gente acrescenta que tão importante quanto 2021, é a série histórica, em que você consegue observar tendências, situações que chamam mais atenção ou não, entre outras coisas”. “O próximo passo é olhar para isso”, reforçou Valiati, referindo-se ao estudo do PIB da Ecic no pós-2020, com o agravamento da pandemia e as eleições de 2022. “Eu acredito que esse trabalho de construção de uma lógica de mensuração organizada sobre um elemento específico, que é a economia da cultura e das indústrias criativas, é uma atividade de real transferência de conhecimento”, defendeu o coordenador da pesquisa do PIB da Ecic, um parâmetro construído em seu lastro comparativo e comparável internacionalmente.
A ideia é que, de agora em diante, o Itaú Cultural e as instâncias estaduais e federais possam realmente criar parâmetros ainda mais robustos e precisos para o setor, para que se fortaleça e, com tempo, deixe de ser associado a um ramo “menor” da economia e da sociedade, quando é justamente o contrário, sobretudo num país como o Brasil. É uma tarefa incessante e para muita gente.
“Vejo que precisamos colocar no radar das urgências a inclusão da cultura como ferramenta estratégica na agenda ambiental, no debate das reparações históricas ligadas aos direitos humanos e na política de combate à violência nas escolas. A Colômbia nos deu um exemplo muito bem-sucedido, iniciado em Medelín. Uma fórmula eficiente de um vizinho aqui da América Latina que tem partilhado este modelo no mundo inteiro”, sugeriu a secretária Úrsula Vidal. Sua fala compactua, de certa maneira, com pensamento semelhante dito por Fabiano Piúba, secretário de Formação, Livro e Leitura do MinC, em seu discurso em São Paulo: “A cultura atua nas dimensões simbólica, cidadã e econômica. A cultura, como disse Mariluz, do Cabo Verde, combate todos os tipos de pobreza”.
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista cultural com mestrado em Sociologia e editora da Continente Online.
*A jornalista viajou a convite do Itaú Cultural.