O Parque Biblioteca Fernando Botero, de 2009, comporta teatro, escola de música, sala de exibição e brinquedoteca. Foto: Orlando Garcia/Divulgação
Feita em três momentos, a entrevista a seguir mostra, entre outros assuntos, como foi o processo de transformação de Medellín, no qual poderes públicos e privados se juntaram ao poder popular. “Tenemos que acariciar la bomba con cariño”, diz ele, quando perguntado sobre como foi possível a pacificação de um lugar que um dia foi conhecido pelo esquema de narcotráfico de Pablo Escobar. Hoje, ele e tantas outras pessoas fazem essa cidade de 2,5 milhões de habitantes ser um dos orgulhos latino-americanos.
CONTINENTE Você costuma dizer que o oposto da violência é a convivência. Por quê?
JORGE MELGUIZO Nessa frase, se encerram duas coisas: primeiro, a necessidade de compreender que as condições de segurança não se dão somente ativando medidas puras e duras, como infraestrutura policial, formação de polícias e vigilância. Isso precisa ser feito, sim, mas não é suficiente. Se chego a uma cidade e vejo muita polícia, não me sinto seguro, ao contrário, digo comigo: “Como deve ser insegura essa cidade que necessita de tanta polícia”. O segundo ponto é o que sempre afirmamos em Medellín: temos que construir a convivência mais do que a segurança. A convivência como essa forma radical de entendermos o outro, apreciarmos o outro e aprendermos a viver com o outro, condição fundamental para termos uma cidade mais segura. E a convivência se constrói com projetos sociais, educativos e culturais. Por isso, o trabalho que temos feito em Medellín, durante anos, tem esse foco como estratégia de construção da convivência.
CONTINENTE Por que a cultura é transformadora?
JORGE MELGUIZO Porque nos permite apreciar a própria vida e aprender a viver com o outro. Para mim, a definição básica de cultura é esta: apreciar a vida e ver que o seu valor é fundamental, aprendendo a viver com o outro e a pensar nele, a não ser indiferente. A cultura é um antídoto contra a indiferença. E a cultura é muito mais do que belas artes, é o que nos transforma em pessoas dentro de uma sociedade comum.
CONTINENTE Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro, dizia que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto. Você acha que o mesmo se dá na cultura?
JORGE MELGUIZO Sim. Quando Temer assumiu o poder (2016), a primeira coisa que fez foi extinguir o Ministério da Cultura. Então, a classe cultural se organizou e impediu. Mas seria preciso perguntar se isso era um projeto, porque a cultura nos faz diferentes, mais conscientes, mais pensantes. A cultura gera pensamento crítico. A muitos governantes não lhes interessa que a sociedade tenha pensamento crítico. Gosto de pensar nessa ideia que você colocou.
CONTINENTE O presidente recém-eleito no Brasil já anunciou o fim do Ministério da Cultura, entre outros ministérios, e os possíveis acordos, inclusive com a Colômbia, contra a Venezuela. Como você avalia os efeitos do atual cenário político brasileiro para a América Latina?
JORGE MELGUIZO É preocupante, para dizer de uma maneira suave, o caminho que pode tomar o Brasil com o presidente eleito. Não somente pela figura dele, mas também pelo que se passou na campanha política, com fanatismos e setores radicais apoiando-o. O problema realmente não está nos políticos, senão no tipo de sociedade que os representa, ou no tipo de sociedade que esses políticos ajudam a criar e gerir. O que me preocupa hoje no Brasil é essa radicalização, esse poder assumido pelas igrejas cristãs. A proliferação das igrejas evangélicas nos bairros de maior pobreza é uma evidência do fracasso da sociedade e do estado nesses bairros e temos que ser geradores de esperança nos bairros a partir das políticas públicas. É um grande desafio. Penso que todas as igrejas sempre estiveram metidas no poder, mas me parece gravíssimo como alguns dos postulados do presidente eleito aparecem como ideias cristãs, havendo o desconhecimento da diferença, incluindo até o ataque à diferença, e não só à ideológica ou política, mas à sexual, a pessoas com atuações distintas de vida. Isso me preocupa muito, além da posição do presidente eleito frente a temas básicos de construção de uma nova América Latina, como assuntos ambientais, sustentabilidade, educação pública, direitos culturais, sobre o governo eleito tomar como medida eliminar um ministério como o da Cultura. Na Espanha, quando fizeram o ingresso do governo de Mariano Rajoy (2011), eliminou-se a cultura como saída para a crise. Eliminar o Ministério da Cultura ou fusionar os ministérios pode ser uma medida administrativa coerente para minimizar gastos, mas se perde um valor simbólico muito importante, porque a mensagem que se manda é de que esses assuntos não são tão necessários, pouco importam.
CONTINENTE Como começou a sua relação com a cultura e a política cultural?
JORGE MELGUIZO Nasci numa favela, no Bairro de San Javier, na Comuna 13, que representa um conjunto de bairros de Medellín, com cerca de 130 mil pessoas. Toda minha vida, desde os 13 anos, fui um ativista social do meu bairro. Estudei Comunicação e sempre trabalhei com projetos sociais e culturais. Também por isso o prefeito (Sergio Fajardo) me nomeou secretário de Cultura em 2005.
CONTINENTE Você pegou o início da transformação de Medellín, no começo dos anos 1990?
JORGE MELGUIZO Sim. Nesse período, estava trabalhando com ONGs. Em uma ONG para o desenvolvimento humano e a democracia e, ao longo de 17 anos, numa organização não governamental de prevenção ao consumo de drogas. A primeira se chamava Corporacíon de la Région, a segunda, Surgir. E, estando nas duas, desenhei um programa para a televisão regional sobre os jovens de Medellín. Eram duas horas e meia direto e o que fazíamos era trabalhar com grupos de jovens e meninos de toda a cidade, especialmente nos bairros mais conflituosos. O programa segue aí, 27 anos depois. Eu já não o faço, mas digamos que seja parte de mim.
CONTINENTE E como foi o trabalho estratégico envolvendo a cultura, especificamente, durante a prefeitura de Fajardo?
JORGE MELGUIZO Existe algo fundamental. A prefeitura e seu grupo de trabalho elegeram a educação pela cultura como algo de maior relevância, com os maiores orçamentos. Para a Secretaria de Cultura, o orçamento previsto era ser 6% e nós chegamos a 5% do orçamento municipal, cerca de 60 milhões de dólares, aproximadamente, por ano, para uma cidade de 2 milhões e meio de habitantes. Isso é simbólico, porque Medellín tinha mais orçamento para a cultura do que o governo nacional para todo o país.
CONTINENTE E como se deu essa mágica?
JORGE MELGUIZO Nesse tempo, trabalhávamos juntos com a ministra de Cultura em projetos para Medellín. Mas creio que foi algo importante, no início dos 1990, em meio à pior fase de violência da cidade, sermos, na sociedade civil, capazes de reagir e agir de maneira organizada, e a juntar quem nunca se juntava. Pensávamos juntos, propúnhamos juntos e buscávamos saídas juntos. Então, isso foi chave. Empresários, organizações comunitárias, coletivos de bairro, fizemos um plano para Medellín até 2015, a fim de trabalharmos especialmente com a juventude. Então, quando ganhamos a prefeitura, em 2004, os 15 anos anteriores haviam sido um processo, essa possibilidade de pensarmos juntos a cidade.
CONTINENTE Então, vocês colocaram em prática o que haviam pensado nesse tempo?
JORGE MELGUIZO Não. No início dos anos 1990, quando começamos a pensar juntos, pusemos em acordo duas ou três chaves para o plano estratégico de Medellín: era preciso intervir nos bairros de maior pobreza e teríamos que fazê-lo de maneira integral; tínhamos que gerar muitíssimos espaços para a infância e a juventude; e tínhamos que gerar projetos de grande valor simbólico e alta qualidade. Quando ganhamos o governo, 12 anos depois, parte dos projetos tinha essas quatro características. Nos parques-bibliotecas, nos colégios públicos de qualidade, nas unidades desportivas, no sistema de transporte, na intervenção das escadas rolantes nos bairros, nas unidades de vida articulada. Tudo isso foram intervenções de um alto simbolismo.
CONTINENTE Como foi esse processo de construção?
JORGE MELGUIZO Nos governos municipais, estatais ou nacionais, o mais difícil é os gabinetes e as equipes trabalharem de maneira articulada. Nós nos pusemos de acordo com critérios populacionais e territoriais, não com setoriais. O mais importante era o menino, o jovem, a luta maior, e o território, o bairro, a comuna. Não a “cultura”, o “esporte”, em si, mas como trabalhar a cultura, o esporte e as obras públicas nesse território e com essa população. Após oito anos, a chave era a sustentação, a sustentabilidade de todas as ações, que teriam que depender da apropriação pela comunidade do que a gente havia estudado e desenvolvido no governo.
CONTINENTE Qual a importância de se construírem prédios como os parques-bibliotecas?
JORGE MELGUIZO Por três razões. Uma pelo acesso das populações mais pobres ao melhor da cultura. Dois, pela formação e criação cultural, esses são lugares para impulsionar a criação a desenvolver projetos. Três, porque é um lugar para os serviços culturais, para que a cultura seja direito e não privilégio.
CONTINENTE A arquitetura foi discutida com a população?
JORGE MELGUIZO A arquitetura é chave, porque simbólica. O que quisemos fazer? Os melhores edifícios nos bairros mais pobres. O edifício mais importante nos bairros era o templo religioso e não pode ser. A religião é um assunto privado e converter o público no principal símbolo do bairro, em um dos principais motivos de orgulho, é uma das chaves da transformação.
Vista de um dos pontos do Comuna 13, complexo de bairros populares que viraram exemplo de transformação em Medellín. Foto: Reprodução
CONTINENTE E a relação com a população?
JORGE MELGUIZO Primeiro, desenhamos vários espaços de participação para a comunidade, mas reconhecendo todos os espaços que a comunidade tinha e não eram reconhecidos antes pela prefeitura. Então, nossa missão era desenhar novos espaços e momentos de participação, mas reconhecer e valorizar os que já existiam, como grupos juvenis, organizações eclesiásticas de bairro, grupos de terceira idade nos territórios e agrupações infantis que nunca haviam existido para a prefeitura. Meninos que pensavam seu território, mulheres que faziam defesa de seu bairro, organizações, inclusive, que estavam contra o estado e jamais eram escutadas, porque eram contra. Ninguém simplesmente pensava em dialogar com elas, e dizíamos que tínhamos que conhecer, valorizar e potencializar o que já era feito sem o estado, apesar do estado ou mesmo contra ele. Por exemplo, dizia-se que os jovens não participam, então fizemos uma convocatória de grupos de rock e se apresentaram 280 bandas, com média de cinco a seis integrantes por banda. Eram 1.500 jovens compondo letras, participando, fazendo oficinas. Então dissemos: “Isso é uma potência”. E tinha os jovens do skate. Ninguém os escutava. Assim, as primeiras pistas de skates fizemos na prefeitura, escutando esses jovens. Hoje o skate é uma das glórias de Medellín, porque há umas 20 pistas de alta qualidade.
CONTINENTE Como a população de Medellín lida com a imagem de Pablo Escobar hoje?
JORGE MELGUIZO Pablo Escobar havia desaparecido do imaginário de Medellín, da Colômbia. O seu túmulo, visitavam quatro turistas que vinham de Israel e feirantes que trabalhavam lá. Não era um personagem recordado. A série de televisão o colocou outra vez em moda. Hoje, encontramos nas ruas camisetas dele que não encontrávamos antes. Pode ser simplista, mas poderia dizer que ele existe mais para os mochileiros de países desenvolvidos do que para os jovens de Medellín. Também digo que não gosto da série Narcos, mas gosto muito da série Pablo Escobar, o senhor do tráfico. Aí a história dele foi muito bem-contada e em canal aberto. Acho a memória necessária e preciso dela, mas não necessito de espetáculo.
CONTINENTE Como é possível levar o exemplo de Medellín para cidades latino-americanas?
JORGE MELGUIZO Isso já está sendo feito. Estivemos no Brasil e você tem aí, em sua própria cidade, o Recife, a experiência dos Compaz, os centros comunitários de paz, que são, em boa parte, uma transferência de ideias de Medellín. Os centros de saúde cultural, os parques-bibliotecas, as casas de justiça, os centros de saúde empresarial, as unidades de vida articulada que a prefeitura faz de maneira muito acertada. Medellín se converteu em um laboratório para o urbano, o social, o educativo e o cultural. O Banco Mundial e a Prefeitura de Medellín há três anos estão implementando um laboratório de aprendizagens sobre boas práticas de Medellín, que está no fechamento de um processo de formação de pessoas de governos de 100 cidades latino-americanas e iniciou, há pouco, com cidades da Ásia e da África. Elegem temas como gestões municipais, finanças, intervenções urbanas, sobretudo em bairros informais, projeto de segurança e convivência, entre outras áreas. Sim, é possível levar o exemplo, temos apenas de ser capazes de compartilhar aprendizagens entre cidades e vencer os distanciamentos físicos e culturais.
OLÍVIA MINDÊLO, jornalista e editora da Continente Online com mestrado em Sociologia. Viajou a Corumbá (MS) em maio, a convite da 14ª edição do Festival América do Sul Pantanal (Fasp).