Em âmbito federal, o ciclo das políticas culturais brasileiras já começa seu 2020 com o repugnante episódio do vídeo de inspiração nazista protagonizado pelo então Secretário Especial da Cultura. A demissão do sujeito, que hoje já ocupa lugar cativo na lata de lixo da História, não encerra a grave crise institucional enfrentada pelo setor cultural desde o início do desgoverno Bolsonaro. Ao contrário, essa passagem escandalosa, de repercussão internacional, escancarou o quão receptivos são os donos do poder para que mentes doentias e criminosas prosperem ocupando altos postos de comando na área cultural desse governo. Presidências e diretorias de importantes entidades vinculadas à Secretaria Especial da Cultura, como Fundação Palmares, Funarte, Ancine, Iphan, Fundação Casa de Rui Barbosa, seguem sendo bunkers ideológicos “Bolsolavistas”, ocupados por representantes da “necropolítica” que operam o desmonte sistemático das instituições que comandam.
A estupidez e a boçalidade vigentes até a queda do Secretário Nazista levavam verniz de "guerra ideológica" contra o "marxismo cultural". O que se viveu na sequência dos fatos, porém, foi um pastelão de péssima qualidade estrelado por sua sucessora, a atriz Regina Duarte, que também foi, sem nunca ter efetivamente sido, Secretária Especial de Cultura. Uma novela de roteiro previsível – namoro, noivado, casamento, intrigas conjugais e, claro, a separação – que consumiu meses de atenção da imprensa e só deixaram como legado o escárnio e o descaso aos quais esse governo é capaz de submeter agentes culturais de todo o país.
Entre a demissão do Nazista e a posse da Namoradinha, foram quase dois meses. Ela permaneceu por mais três. De janeiro, a maio a dança das cadeiras na Cultura estampou manchetes em toda a mídia, mas o que se sabia dos bastidores era que a inércia política e o caos administrativo eram os que realmente assumiam a gestão. Um período que poderia ter sido decisivo para um planejamento consequente que pudesse amparar o setor com políticas públicas de mitigação do impacto negativo da pior crise de sua história. Pois, enquanto isso, a pandemia do novo coronavírus já estava no auge de sua força no Brasil e, quase que simultaneamente, Regina desembarcava do governo, não sem antes um epílogo grotesco: "Vou fazer Cinemateca".
A chegada do ator Mário Frias ao comando da Secretaria Especial de Cultura, em junho de 2020, não surpreendeu. Mário é grande entusiasta e propagador das ideias do presidente e de seus ideólogos (inclusive, os filhos) nas redes sociais. É também uma voz, cada vez mais solitária, de apoio ao atual governo entre artistas e produtores culturais. Portanto, reunia os atributos necessários para que o Palácio do Planalto o convidasse a assumir um posto tão rebaixado por seus antecessores.
Assessoro a deputada Áurea Carolina (PSOL) como segunda vice-presidenta da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, sob a brilhante Presidência da Deputada Benedita da Silva (PT) e primeira vice-presidência da deputada Maria do Rosário (PT). No ano de 2019, a gestão dessas três mulheres lutadoras do campo das esquerdas foi marcada pela postura combativa de fazer frente aos sucessivos ataques do governo à cultura brasileira. Foram inúmeras audiências, seminários, requerimentos, diligências, denúncias internacionais e ações na justiça, que fizeram dessa comissão um espaço qualificado para aprofundar os debates sobre os desmontes em curso, mas também para a formulação de alternativas de resistência a eles.
Já em 2020, enquanto as políticas culturais de responsabilidade do governo federal foram relegadas a tantas idas e vindas, a pandemia do coronavírus paralisou, em definitivo e em todo o Brasil, atividades culturais presenciais em função das necessárias medidas de isolamento social. A irresponsabilidade e o negacionismo com que se comportaram o presidente da República, a maioria dos ministros e seus apoiadores no trato com a saúde pública também foram a tônica em outras áreas. Na cultura não seria diferente, vivemos uma emergência dentro da outra.
A ESPERANÇA EQUILIBRISTA No meu ponto de vista, é fundamental que a contextualização anterior seja ponto de partida para uma análise consequente do que representou a criação da Lei 14.017/2020, conhecida como Lei Aldir Blanc (LAB). Ela é fruto de um estado de total anomalia institucional no âmbito das políticas culturais brasileiras. Seu surgimento, dentro do Congresso Nacional e por uma articulação de parlamentares que faziam parte da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados em 2019, é uma resposta à falta de compromisso do executivo federal em prestar socorro emergencial ao setor e, mais ainda, sinal de seu descaso com o tema da cultura não somente durante a pandemia. Constitucionalmente, é atribuição do poder executivo implementar as políticas, principalmente aquelas de caráter emergencial e que demandam agilidade em sua execução. Entretanto, seria perda de tempo alimentar qualquer expectativa de que a Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro estivesse empreendendo qualquer esforço nessa direção.
Atribuo, portanto, a formulação da LAB como resultante do somatório desses acúmulos no legislativo e, principalmente, do trabalho conjunto entre parlamentares de diversos partidos em uma profunda articulação com os movimentos e agentes culturais do país. A lei aprovada resulta, inclusive, de propostas legislativas diversas, consolidadas pela relatoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB) – mais uma liderança feminina histórica e integrante da mesma Comissão de Cultura. Jandira foi capaz de promover uma articulação habilidosa e quase unânime, garantindo a aprovação da lei com votos do governo, centro e oposição – à exceção do Partido Novo. No Senado, houve unanimidade e, finalmente, em 4 de junho de 2020, a LAB seguiu para sanção presidencial.
O governo vem tentando capitalizar para si louros nessa conquista, inclusive propagando peças publicitárias mentirosas, que reputam ao presidente da República a liderança desse processo. O conhecimento dos fatos, entretanto, não deixam dúvidas do quanto, mesmo com a aprovação da LAB em tempo recorde no Parlamento, Bolsonaro fez o que pôde para inviabilizá-la. Utilizou o prazo máximo dado para a sanção, demorou 50 dias para regulamentá-la e, quando o fez, instituiu por decreto que, se não executados até 31 de dezembro, os recursos repassados aos entes federativos deveriam ser devolvidos ao tesouro nacional. Em 5 de agosto, o Ministério do Turismo abriu o sistema para o envio de planos de ação e, para aqueles estados e municípios que tiveram o documento aprovado, iniciou o repasse dos recursos em 15 de setembro. Ou seja, além da responsabilidade de operacionalizar toda uma série de procedimentos administrativos inéditos, estados e municípios têm 115 dias para lançar editais, cadastrar ou selecionar contemplados e pagar os auxílios aos trabalhadores e entidades culturais do país.
É também por essa participação da União, como ente exclusivamente repassador de recursos a estados e municípios, que discordo das análises que relacionam a operacionalização da LAB com o Sistema Nacional de Cultura (SNC). É fato que os repasses fundo a fundo, já preconizados pelo SNC, nunca foram efetivamente implementados de forma articulada e nacional. Entretanto, do ponto de vista sistêmico, não se pode admitir que atribuições constitucionais do governo federal na formulação e implementação das políticas culturais sejam reduzidas à dimensão da mera transferência de recursos.
Isto posto, mais uma vez reforço que a LAB é fruto de uma situação de emergência em um contexto de anomalia institucional, portanto carrega em si esses genes. Ela não pode ser confundida com uma política de fomento estruturante e perene – basta compará-la à Política Nacional Cultura Viva, à Política do Audiovisual ou ao Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) – há nelas um conjunto de formulações que consideram as diversas dimensões do fazer cultural, corresponsabilizam a União e suas estruturas de gestão, possuem mecanismos de participação social e articulam, em âmbito federal e federativo, diversos agentes das redes produtivas da cultura brasileira.
Fato inegável é que, a resiliência do setor artístico-cultural brasileiro, acostumado a reinventar-se cotidianamente para manter-se vivo, foi o grande motor dessa construção. Trabalhadores e trabalhadoras da cultura aglutinaram-se de forma muito vigorosa em torno da LAB, garantindo não somente o direito ao amparo do estado em uma crise de proporções ímpares, mas também a possibilidade de alguma segurança econômica para os desafios futuros de reinvenção de seus ofícios.
Salve nossa esperança equilibrista.
LEONARDO LESSA, artista de teatro, gestor cultural e atualmente assessor de políticas culturais da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG).