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O ideal de beleza e o clareamento de pele na sociedade japonesa

A pele branca e sem bronzeado foi associada à posição social elevada, refinamento, pureza e ascensão espiritual

27 de Junho de 2025

Ilustração Kitagawa Utamaro

Ter uma pele clara constitui um aspecto fundamental na construção dos ideais de beleza feminina no contexto da cultura japonesa. Muito antes de qualquer contato com o Ocidente, os japoneses veneravam a pele branca e esse conceito de beleza é um valor estabelecido na sociedade japonesa.

Durante o período Nara (710 – 794), as damas da corte utilizavam cosméticos e aplicavam generosamente pó branco no rosto. Pontos de beleza vermelhos eram pintados entre as sobrancelhas e nos cantos externos dos lábios e olhos. As pálpebras e os lábios recebiam um tom avermelhado. Homens e mulheres removiam suas sobrancelhas naturais e desenhavam longas e grossas linhas inspiradas no estilo chinês.

Movendo-se para o período Heian (794 – 1192), é possível encontrar em O livro do travesseiro, de Sei Shônagon, informações sobre o Palácio Imperial e dados precisos sobre ética, estética e como o padrão de beleza já estava estabelecido entre o povo japonês, conforme este trecho do livro: “...É muito encantadora a cena de uma bela jovem de 18 ou 19 anos, de lindos cabelos de pontas bem volumosas que lhe chegam aos pés, bem roliça, muito branca e de rosto gracioso…” (p. 340) O livro do travesseiro (枕草子 Makurano shôsi) é, ao lado das Narrativas de Genji (源氏物語 Genji monogatari), de Murasaki Shikibu, a obra mais emblemática da literatura clássica japonesa.

Assim como essa, inúmeras referências foram feitas, tanto em ilustrações quanto em escritos, demonstrando o padrão de beleza ideal do período antigo. Falava-se sobre a pele branca e suave, cabelo longo, preto, liso, corpo redondo e rosto atraente. Os nobres da corte eram os portadores de refinamento cultural e os praticantes de arte e poesia. A pele branca e sem nenhum bronzeado era símbolo dessa classe privilegiada, poupada de qualquer trabalho ao ar livre. A pele clara, além de símbolo de beleza, também representava posição social elevada.

Um antigo provérbio japonês afirma que “a pele branca compensa sete defeitos” (色の白いは七難隠す iro no shiroi wa shichinan kakusu). A frase reflete a valorização cultural da pele clara como um dos principais referenciais de beleza, sugerindo que essa característica é capaz de ofuscar ou disfarçar outros defeitos percebidos. Conforme Hiroshi Wagatsuma, no livro The social perception of skin color in Japan, de 2015, “na cultura japonesa, a tez clara sempre foi associada a atributos que indicam certo grau de refinamento, pureza, naturalidade e elevação espiritual”.

Para examinar as dinâmicas culturais que constroem os ideais de beleza na sociedade japonesa, é importante não desconsiderar uma prática antes reservada às classes mais altas, mas se tornou amplamente popularizada no período Edo (1600 – 1868). O hábito de escurecer os dentes, chamado お歯黒 Ohaguro, foi uma atividade com significados diversificados. Era comum pintar os dentes para celebrar a maioridade, foi adotado como símbolo da mulher casada, utilizado para simbolizar lealdade, para ser considerada mais atraente e a tinta escura também servia como prevenção de cárie. Os dentes pintados de preto eram um atributo de beleza desejável e a prática foi incentivada em diversos períodos históricos.

O rosto do Imperador e a criação da nova identidade nacional

No período Meiji (1868 – 1912), como nos informa Ashikari Mikiko, em The memory of the women’s white faces: Japaneseness and the ideal image of women, de 2003:

“A nação passou a ser concebida como uma família estendida, com o imperador como o pai supremo da comunidade nacional e chefe do estado familiar. Como resultado, uma percepção de raça japonesa consanguínea se desenvolveu fomentada pela noção de estado familiar”.

Antes da Restauração Meiji, o rosto do imperador era desconhecido pela maior parte da população. Após o encontro com a cultura ocidental, iniciou-se o projeto de transição do Japão à modernidade. Foi necessário transformar o imperador de uma figura cerimonial em um líder soberano. Com essa mudança, o rosto do imperador proveniente da cultura tradicional japonesa foi completamente transformado para um novo chefe moderno.

Devido ao processo de modernização do Japão, um decreto proibiu aos nobres a prática de escurecer os dentes e raspar as sobrancelhas. A imagem do imperador de sobrancelhas raspadas, pintadas no alto da testa, e dentes escurecidos, foi abandonada, e o líder adotou um novo estilo de vestimenta ocidental e cabelos curtos. Ao mesmo tempo, a classe alta aderiu ao novo estilo ocidental e nas cerimônias oficiais passou a utilizar roupas formais provenientes do Ocidente.

De acordo com Erwin Baelz, Awaking Japan: The diary of a german doctor (1974): “Após a guerra sino-japonesa, o imperador Meiji consolidou seu poder ao se apresentar como representante simbólico da nação”, e seu novo visual circulou pelo país e converteu-se em um emblema evocativo da identidade nacional japonesa, conforme Ashikari, no livro já citado:

“O rosto do imperador não apenas se ocidentalizou; mais importante ainda, seu rosto tornou-se um símbolo da raça japonesa e da identidade japonesa. Assim, o rosto do imperador funcionou como um sinal que homogeneizou seus súditos e os incluiu dentro do estado familiar”.

Uma nova identidade nacional foi criada. O que antes era tradicionalmente japonês foi percebido como obsoleto, e apenas o novo modelo era digno de apreciação. A roupa ocidental passou a simbolizar o poder europeu e, aos poucos, as vestes tradicionais e alguns padrões de beleza típicos japoneses deixaram de fazer parte do dia a dia da população.

O ideal estético no período Meiji caminha em direção à modernidade e ganha novos formatos. Com influência direta do Ocidente, um rosto semelhante ao dos caucasianos passou a ser considerado bonito. De maneira similar, as características como cabelos loiros ou castanhos, olhos azuis, lábios finos, nariz alto e um corpo esbelto obtiveram admiração das mulheres.

O governo incentivou as mulheres japonesas a abandonar os costumes tradicionais de beleza, pois os mesmos pareciam incivilizados aos olhos ocidentais. O governo Meiji conseguiu realizar um ato radical em eliminar características indispensáveis da maquiagem japonesa que existiam há, pelo menos, mil anos no Japão. Diferentemente da maquiagem branca, a prática nativa de escurecer os dentes e cortar as sobrancelhas, considerada um hábito antiquado, não foi valorizada como um símbolo da nova identidade japonesa.

Em 1873, a imperatriz apareceu publicamente pela primeira vez sem escurecer os dentes, acompanhada pelo imperador de cabelos curtos. As mulheres, a seguir o exemplo do casal, começaram a deixar suas sobrancelhas crescerem e seus dentes brancos. No final da era Meiji, as mulheres que ainda usavam a maquiagem tradicional japonesa eram raramente vistas em áreas urbanas. O rosto pintado de branco era o único a representar a imagem ideal da mulher japonesa. As mulheres da era Meiji deixavam o rosto branco com o mesmo tipo de pó de chumbo branco que as mulheres de Edo aplicavam e colocavam rouge vermelho puro nos lábios.

Desde o período Edo, o rouge vermelho era considerado como vaidade, mas o pó branco como dever moral das mulheres. O livro Onna chouhouki (女重寳記 おんなちょうほうき) dedicado à educação das mulheres da classe samurai, explica que colocar pó branco no rosto é uma lei que todas as mulheres devem obedecer, e uma mulher não deve mostrar publicamente seu rosto sem pó branco. A maquiagem branca passa a funcionar como um dos elementos mais importantes para representar a imagem ideal da feminilidade japonesa durante o período Meiji.

Os homens que trabalhavam fora de casa foram incentivados a adotar as roupas ocidentais, e as mulheres com ocupação doméstica eram encorajadas a usar roupas tradicionais com nihongami3 (日本髪 にほんがみ) e o rosto pintado de branco. Nihongami é um dos muitos estilos de cabelo tradicionais japoneses, que data do período Edo. Tradicionalmente, dois lados do cabelo sobressaem até se curvar para trás. O cabelo é puxado tanto para trás quanto para frente.

Tornou-se encargo das mulheres do período Meiji preservar o modelo tradicional japonês. Conforme Liza Dalby elucida no livro Kimono fashion culture. (2001), a separação do vestuário diferenciou-se por gênero. As roupas ocidentais foram confiadas aos homens, e o quimono às mulheres. Pessoas de classes mais baixas precisavam continuar trabalhando e não tinham acesso à maquiagem branca e ao nihongami no dia a dia. Entretanto, durante o período Meiji, as mulheres menos favorecidas reconheceram como a mulher japonesa virtuosa deveria parecer. As mulheres de classes mais altas da era Meiji tornaram-se um símbolo de tradição e representatividade da cultura japonesa, distintas não apenas das mulheres ocidentais, mas também das mulheres de classes mais baixas.

O clareamento de pele no Japão contemporâneo

A consciência sobre a pele é antiga no Japão, e os padrões tradicionais de beleza da antiguidade sempre enfatizaram a pele pálida como atributo ideal de beleza feminina. A conceituada marca de cosméticos Shiseido aborda em suas mídias a diferença da pele japonesa em comparação com a pele caucasiana, alegando que a brancura da pele japonesa é diferente da pele das ocidentais, sendo a qualidade da cútis japonesa notavelmente superior à pele caucasiana.

No Japão, a indústria de cosméticos e a mídia mantêm operante o conceito da pele pálida como atributo nobre e de beleza feminina, levando milhares de mulheres a buscar esse ideal de beleza diariamente. Shiseido (株式会社資生堂 Kabushiki-gaisha Shiseidō) é uma das empresas de cosméticos mais antigas do mundo, fundada em 1872.

É importante compreender a branquitude japonesa como símbolo de feminilidade e sentimento de pertencimento à nação. A pele japonesa é considerada, além de atributo de beleza, como diferente e superior à cútis clara ocidental. A pele da mulher japonesa pode ser considerada um patrimônio que não apenas molda as percepções de beleza, mas influencia também suas chances de casamento, oportunidades de emprego, posição social e capacidade de geração de renda.

O ideal de beleza associado à pele clara na Ásia antecede o contato com o ocidente e a introdução de padrões estéticos ocidentais, porém os significados contemporâneos da pele clara resultam da convergência entre ideologias amplamente disseminadas pelo Ocidente e valores culturais asiáticos tradicionais.

AGATHA GARIBE, designer com especialização em Design Thinking. Pesquisadora associada da curadoria de Assuntos do Japão do CEÁSIA-UFPE, seus interesses de pesquisa incluem: Narrativas sobre Mulheres, Cultura Japonesa, Beleza, K-Beauty, J-Beauty, Comportamento e Indústria de Beleza Asiática

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