Artigo

O enigma Taylor Swift

Além de hits, a compositora e cantora norte-americana também tem uma coleção de silêncios intrigantes em sua carreira

TEXTO Thiago Soares

24 de Novembro de 2023

The Eras Tour deve se tornar a turnê mais lucrativa da história dos EUA

The Eras Tour deve se tornar a turnê mais lucrativa da história dos EUA

FOTO Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A passagem da cantora Taylor Swift pelo Brasil foi marcada por acontecimentos trágicos (a morte de uma fã), inesperados (a onda de calor intensa) e controversos (a falta de homenagens e de acolhimento da cantora à tragédia ocorrida em seu espetáculo) adicionando temperaturas mais altas à máquina de tretas da internet brasileira. As duas semanas de Taylor em solo brasileiro foram povoadas por manchetes jornalísticas, fofocas em redes sociais, protestos de fãs e admiradores e uma metralhadora de gestão de crises que passou pela instauração de um novo dispositivo legal: as produtoras de espetáculos pop de grande porte terão que garantir a distribuição de água em “ilhas” acessíveis ao público para evitar fatalidades como a ocorrida no show da The Eras Tour, no Rio de Janeiro, principalmente, em função das mudanças climáticas.

É comum vermos pessoas perguntando “Quem é Taylor Swift?”, “Por que esta comoção toda em torno de uma cantora?”, “Como eu não conheço Taylor Swift?”, etc. De fato, quando um fenômeno pop aparece, com tanta mobilização, tanta gente gostando, amando, na mesma proporção que odiando e xingando, parece que se está diante de algo que explica o coletivo ou, ao menos, os estilos de vida de uma época. Os Beatles, quando invadiram nosso imaginário na década de 1960, explicaram tanto a aparição de afetos femininos por ídolos quanto a emergência da psicodelia no mainstream; Michael Jackson foi, na década de 1980, possivelmente, um comentário sobre o que pode um homem negro na esfera da música pop; Madonna até hoje segue gerando novas perguntas para o que significa ser mulher branca e se manter em evidência mesmo envelhecendo. E aqui um recorte territorial se faz necessário: são todos ídolos de um mundo anglófono que projetou - e segue projetando - injeções de Botox no nosso imaginário e na cultura pop.

Você não precisa gostar de Taylor Swift, muito menos, endossar a obra da artista, tampouco seus fãs (alguns podem ser seus parentes ou amigos), mas olhar detidamente para Taylor Swift vai fazer você entender melhor o nosso tempo - para o bem ou para o mal. A cantora é a tradução mais perfeita de um mundo profundamente autorreferente, hiper conectado, obcecado por simulações, especulações, em que a noção de performance, da desconfiança à idolatria, está amplamente enraizada. Parte do fascínio sobre Taylor Swift vem do resíduo de outras artistas pop (notadamente as chamadas songwriters - compositoras - como Carole King, Carly Simon, Chrissie Hynde, Stevie Nicks), parte vem do modo como ela incorporou este legado ao pop (aproximando-se do esmero de espetáculos como Madonna e Lady Gaga). Seu início de carreira como cantora country, empunhando o violão e fazendo canções sobre dores amorosas é parte deste processo.

O rechaço a Taylor vem de um traço de consumo comum da música pop: é música aparentemente banal, que fala de amor, desilusões, algo que aqui no Brasil, chamamos de sofrência, ou seja, o sofrer coletivo, gritado, em público, cantado, bêbado. Os shows da The Eras Tour são repletos de momentos em que o grande acontecimento é, veja só, cantar junto. Berrar junto sobre dores de amores, reconciliações e injustiças afetivas. Foi esse “cantar junto” no show que impulsionou a viralização da faixa Cruel summer, lançada em 2019, quando fãs se filmavam cantando trechos da música nos espetáculos e postavam em seus perfis especialmente no TikTok, fazendo com que a canção chegasse ao número 1 da Billboard, quatro anos depois, em 2023. 

Entender o fenômeno de Taylor Swift passa por reconhecer novas dinâmicas de escuta da música pop. Antes da passagem da The Eras Tour pelo Brasil, o selo de festas itinerantes chamado Festa da Taylor, promovia eventos em que a balada era sair para ouvir exclusivamente as canções da loirinha - como os fãs brasileiros passaram a chamar a artista. Só que grande parte das músicas de Taylor Swift são lentas, baladas românticas, o oposto da música dançante das boates. O que as pessoas faziam na Festa da Taylor? Cantavam juntas. Às vezes em pé, às vezes até sentadas. Muitas vezes abraçadas. No Carnaval de 2023, viralizou nas redes sociais brasileiras um vídeo gravado em Belo Horizonte, em que um trio elétrico tocava músicas de Taylor Swift. As pessoas estavam paradas, de olhos fechados, cantando - sim, no meio do Carnaval.

Taylor Swift seria então sintoma de um mundo em mal-estar, melancólico, em que as ideias sobre coletividade, embora centrais a partir de agendas de movimentos sociais e reivindicações identitárias, parecem estar sob suspeita. Num mundo de enorme fragmentação pelas agendas políticas, ironicamente, vive-se sob a égide da poética de uma cantora branca, loira, estadunidense.

SILÊNCIO BRANCO
Para entender como a menina cantora country se torna um fenômeno pop, é preciso tocar na questão racial - a camada mais profunda da psique de um mundo colonial e pop. O ano era 2009 e, ao receber um prêmio de melhor videoclipe num evento midiático da MTV, Taylor Swift, no palco, microfone na mão, teve seu discurso interrompido pelo rapper Kanye West, que disse que “aquele prêmio deveria ser de Beyoncé”. A cena coloca em evidência a dramaturgia: o homem negro “descontrolado”, a menina branca vitimizada, o conflito de valor estético (um prêmio de melhor videoclipe) convertido em conflito racial e de gênero.

O episódio acionou o grande trunfo da persona de Taylor Swift: o silêncio. Ao não elaborar, não ficar agenciando a mídia em torno do episódio para não se passar por estar querendo lucrar sobre o disparate de um homem negro, Taylor fez aquilo que já vinha fazendo: escreveu canções. E instaurou o que seria a sua principal estratégia de mobilização de fãs, a criação de zonas especulativas em torno de sua vida que habita sua obra, como parte de um projeto que cria um ambiente propício aos jogos de identificação com seus dramas.

Mais uma vez: a música pop está repleta de episódios em que canções, discos, shows traduzem episódios da vida dos artistas (o álbum Rumors, do Fleetwood Mac, como sintoma de supostas traições dos integrantes da banda; o disco 21, de Adele, e sua relação com o fim de relacionamento da cantora), mas com Taylor Swift há o peso do tempo presente: na internet, se multiplicam as possibilidades de conversas em rede, de suposições e de conjecturas. Os dramas midiatizados pela artista viram centrais na criação de uma poética musical e audiovisual.

A vida de Taylor Swift, não esqueçamos, a menina loira, que não segura em pé um relacionamento sequer, cheia de desilusões afetivas, vítima dos impropérios de um homem negro, olhe só, passa a ser o principal ativo numa cultura especulativa e datificada nas redes. A cada descoberta de que supostamente uma canção era feita para um ex (há metáforas mais óbvias como a faixa Dear John, que tudo indica ser para seu então namorado John Mayer ou Style, para Harry Styles, outras mais subentendidas como o hit All too Well, que retrataria o fim de relacionamento com o ator Jake Gyllenhaal) desvela-se um novo ninho de conversas online que impulsionam a permanência da cantora nas plataformas. E, enquanto fãs especulam, Taylor Swift silencia.

O silêncio da artista só é quebrado em contextos extremos. Quando, por exemplo, em 2017, sua imagem foi associada a supremacistas brancos vinculados ao então presidente recém-eleito Donald Trump, a cantora se pronunciou a favor de mulheres, de pessoas LGBTQIA +, às lágrimas, no documentário Miss Americana, lançado em 2020. No Brasil, o silêncio da artista sobre a morte da fã Ana Clara Benevides, no show no Rio de Janeiro reiterou a prática de que, numa era de histeria coletiva em que todo mundo posta absolutamente tudo - de sua comida até a sua recuperação de uma cirurgia plástica nas redes sociais - silenciar sobre algo passa a ser um capital, ou aquilo que chamamos de capital especulativo.   

A ARTE DE ESPECULAR
Não dá para entender Taylor Swift fora dos novos regimes do capitalismo financeiro. A artista é sintoma de um mundo ultra datificado em que até o silêncio é convertido em capital - aquele que vai criar um ambiente propício à especulação, às conjecturas. Verdade? No caso da música pop, verdade é um detalhe: o que importa é a performance. Quando é atacada nas redes sociais, a artista faz música (You need to calm down), quando termina um relacionamento, escreve um álbum com “mensagens cifradas” (Red), quando é alvo de fofocas, entra no personagem da “namorada psicopata” (como na letra de Blank Space).

E, então, outro sintoma dos tempos: quando tem sua obra comprada pelo ex-empresário e perde os direitos financeiros sobre sua própria música, ela então regrava seus álbuns. Taylor Swift passa a ser nomeada de “a indústria”, na medida em que passa a refazer práticas, reivindicar novos parâmetros de valor de repasse das plataformas de streaming e até de agendar debates públicos sobre a formação de clusters entre plataformas de venda de ingressos online. A relação direta da artista com as práticas especulativas e também com a regulação da própria indústria da música vão construindo um lugar de reputação comercial, mercadológica que, em alguma medida, também se converte em reconhecimento artístico. A cantora já ganhou três Grammys de melhor álbum (Fearless, 1989 e Folklore) e acumula 52 indicações ao principal prêmio da indústria fonográfica estadunidense.

Observando atentamente a trajetória da artista, em alguma medida, Taylor Swift sintetizaria a volta do triunfo da linguagem e suas articulações em uma era de “cultura do cancelamento”. A poética do cancioneiro da artista captura a subjetividade em torno de ideais, utopias, memórias, pertencimentos e desencaixes. Suas canções falam de temas bastante gerais e amplos - amor, ressentimento, culpa, auto-engano, depressão. Parece promover aquilo que é tão essencial para a música pop: o crossover cultural. Ou seja, a ampla escuta independente de classe, raça, gênero, território. Fãs negras e negros de Taylor Swift expõem a cobrança nos “tribunais” das redes sociais que sofrem por gostarem da “loirinha”. Parecem ser pessoas menos politizadas, mais fúteis, longe dos padrões normativos de parte da militância. Num mundo muitas vezes essencialista e com agendas políticas vigiadas nas redes, a escrita da canção e do poema camufla os afetos e faz conectar subjetividades para além das exigências de coerência e marcações sociais. A psicanálise já vem dizendo: você se sente atraído, também, por aquilo que rejeita.

Taylor Swift nos coloca diante de um impasse: é possível apreciar esteticamente sua obra mesmo ela sendo omissa, silenciando e se recolhendo diante das urgências do contemporâneo? Enquanto segue enclausurada em seu castelo imaginário, a loirinha canta, em solo carioca, Bigger than the Whole Sky, uma faixa que fala de adeus, possivelmente uma morte (ou um amor?), mas que imediatamente é “lido” como uma “mensagem” da artista para Ana Clara Benevides, a fã que morreu no seu show no Rio de Janeiro. Ela silencia. E fecha as cortinas do espetáculo de sua vida.

THIAGO SOARES, professor e pesquisador da UFPE, onde coordena o Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop). Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.

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