Curiosamente, a abertura de Matrix constituiu um risco calculado por Larry e Andy Wachowski, nomes utilizados na ocasião pela dupla de diretores e roteiristas. Como eram iniciantes (haviam dirigido, até então, somente um filme de baixo orçamento), eles tiveram apenas US$ 10 milhões liberados para as filmagens pela Warner. E gastaram a maior parte filmando a sequência de Trinity no hotel. Tinham fé de que, depois de verem o resultado pronto, os executivos do estúdio aumentariam o orçamento para os US$ 80 milhões que haviam calculado. Era uma aposta alta – e eles venceram. A produção, filmada na Austrália (cujos incentivos fiscais baratearam o custo total), recebeu sinal verde para ir em frente. Matrix chegou aos cinemas em 31 de março de 1999 (no Brasil, como era hábito na época até mesmo para as maiores produções de Hollywood, estreou algumas semanas mais tarde, no dia 21 de maio) e tornou-se um fenômeno da cultura pop. Até os modelos dos óculos escuros usados pelos protagonistas viraram coqueluche mundial. Os US$ 460 milhões arrecadados nos cinemas transformaram Matrix na produção mais lucrativa da história da Warner, até então.
O abalo provocado pelo filme na indústria do entretenimento não se restringiu à invenção de uma técnica de montagem, ou à venda de merchandising. O filme foi diretamente responsável pela popularização de um novo suporte de armazenamento e reprodução de filmes para o mercado doméstico: o DVD. O disco de Matrix contava com uma opção interativa que permitia aos espectadores acessar, durante a projeção, pequenos documentários mostrando o processo de criação de determinadas cenas, incluindo o chute de Trinity e o momento icônico em que o protagonista Neo (Keanu Reeves) – o programador de computadores responsável pela descoberta de que a raça humana foi transformada em alimento para máquinas, e a realidade não passa de um grande sonho coletivo – tem a capacidade de desviar de balas.
O DVD de Matrix não apenas bateu recordes de comercialização, vendendo mais de 30 milhões de cópias em três anos (há 20 anos, filmes de grande sucesso não atingiam sequer 10% desse total; o megassucesso Titanic, lançado no mesmo ano, não chegou a vender um terço desse total), como impulsionou fortemente as vendas de aparelhos de DVD, fazendo o suporte relegar o VHS ao esquecimento e modificar os hábitos dos consumidores, que pouco a pouco deixaram de lado a prática de alugar fitas em videolocadoras e passaram a comprar e colecionar discos contendo filmes e documentários de bastidores.
Muito se falou, na época do lançamento original, no modo como Matrix introduziu, no mundo da cultura pop, um interesse pela filosofia, até então restrito a acadêmicos. Filósofos como Jean Baudrillard e até mesmo Platão, que inspiraram o roteiro, passaram a ser lidos por jovens que usavam óculos escuros e botas de couro preto. Muitos deles demonstravam também um interesse especial pela cultura produzida no Oriente, em especial animações de ficção científica e histórias em quadrinhos. Esse interesse foi ampliado e diversificado nas duas décadas que se seguiram, em torno de fenômenos como o interesse crescente pelos thrillers e filmes de ação do Japão e da Coreia do Sul, e por toda a cultura que hoje chamamos de J-Pop e K-Pop. Sem Matrix, esse interesse talvez nunca tivesse se expandido tanto.
O universo ficcional de Matrix também foi um dos primeiros a explorar a convergência midiática, através de produtos conexos que expandiam o enredo central em múltiplas direções. Em 2003, durante a preparação para o lançamento do segundo filme da franquia, os criadores da saga conceberam Animatrix, uma coleção de nove curtas-metragens animados, com pequenas histórias vividas por coadjuvantes do primeiro filme, ou anônimos habitantes do universo nele estabelecido. Além disso, um game eletrônico intitulado Enter the Matrix trazia cenas gravadas com os atores da franquia, que revelavam detalhes inéditos da história contada nas duas sequências. Os enredos transmídia começaram a se tornar populares a partir daí.
MINORIAS
Além de tudo isso, os 20 anos transcorridos desde o lançamento permitem ao observador atento perceber que a própria trama de Matrix já sinalizava tendências culturais que ferviam no submundo frequentado pelos irmãos Wachowski, mas que só seriam percebidas como fenômenos sociais de grande alcance vários anos depois. O enredo do filme, por exemplo, valoriza sistematicamente o papel de personagens femininas fortes, inclusive fisicamente, que Hollywood costumava reservar para os homens – Trinity é o exemplo mais latente, mas há outras mulheres empoderadas no filme e em suas sequências, como Switch (Belinda McClory) e Niobi (Jada Pinkett-Smith).
Na linha de frente de uma tendência que só se tornaria massiva em Hollywood anos depois, Matrix também abre espaço de destaque para os negros no elenco: Morpheus (Lawrence Fishburne), mentor e professor de Neo, no primeiro filme, e vários outros personagens no restante da franquia – como Zee (Nona Gaye), Link (Harold Perrineau Jr) e a própria Niobi – são negros. A maior parte dos habitantes de Zion, a cidade subterrânea onde se escondem os últimos humanos livres sobreviventes, é formada por negros, como fica claro nas multidões que frequentam as raves que agitam as noites subterrâneas, nas duas sequências.
Aliás, o próprio Neo seria originalmente um negro, já que o ator escolhido pelos irmãos Wachowski para o papel – que ele recusou – era Will Smith. Além de tudo isso, o filósofo Cornel West (da prestigiada Universidade de Princeton), que atuou como consultor de filosofia nos filmes, faz uma ponta no segundo filme e está presente na trilha, em um comentário em áudio presente em Matrix reloaded e Matrix revolutions, para explicar as ideias filosóficas que ajudaram a elaborar a construção conceitual da franquia.
Finalmente, o filme ainda abraça a cultura LGBTQ+ de forma sutil, pois se não é possível ver esse tipo de relação afetiva em primeiro plano narrativo, elas aparecem nas paisagens humanas de corpos dançantes, nas festas agitadas que ocorrem em todos os três filmes. A questão ganharia força e visibilidade nos anos seguintes, tendo os dois diretores como protagonistas involuntários: Larry se tornaria Lana em 2012 e Andy passaria a assumir o nome de Lilly em 2016, ambas se tornando mulheres trans após fazerem terapias hormonais. As irmãs dirigiriam, ainda, duas temporadas da série Sense8 para a Netflix, em 2015, emprestando o carisma e a fama para angariar respeito e credibilidade à causa trans. Desde o sucesso avassalador do primeiro filme, as duas vivem discretamente e fazem raras aparições públicas, mas têm perfeita noção do quanto foram importantes para esgarçar o tecido da cultura pop do século XXI.
RODRIGO CARREIRO, jornalista, crítico e professor do curso de Cinema da UFPE.