O autor de O cânone ocidental acreditava firmemente numa espécie de conspiração contra a alta literatura e a grande tradição literária e artística do Ocidente, e defendia o retorno universitário ao currículo humanista tradicional. Seu tom por vezes era bastante pessimista e pouco cortês: “Eu diria que não há futuro para o estudo literário como tal nos Estados Unidos. Cada vez mais, esses estudos estão sendo invadidos pelo surpreendente lixo chamado crítica cultural. Em NY, estou rodeado de professores de hip-hop. Em Yale, estou rodeado de professores mais interessados em vários artigos desse monte de esterco chamado cultura popular do que em Proust ou Shakespeare ou Tolstoi”.
A postura de Harold Bloom, no trecho acima d'O cânone, é bastante radical e mesmo caricata em seu elitismo, além de, evidentemente, redutora – os Estudos Culturais não podem ser reduzidos a isso –, mas seu tom e afã polemista amiúde se sobrepunha às motivações legítimas de sua crítica a seus adversários acadêmicos. Segundo ele, suas divergências com os membros do que ele chama de Escola do Ressentimento – os partidários do political correctness – não eram prioritariamente de natureza política, mas estética e espiritual. Para o crítico, a educação que se recebe através da frequentação dos grandes textos – Dante, Cervantes, Chaucer, Homero ou a Bíblia – deve ser independente de nossa posição política e de nossas crenças ideológicas. Os ressentidos, para ele, são aqueles professores universitários e críticos que não são capazes de reconhecer a grandeza de autores canônicos por puro preconceito e fé ideológica; para estes, a valorização dos autores tradicionais do antigo currículo humanista faria parte de uma mistificação intencional promovida pelo discurso literário, que serviria para ocultar o que está à margem e servir como propaganda ratificadora do status quo. Bloom denunciava o objetivo político-ideológico como única motivação desses intelectuais alheios a questões de ordem artística e estética, que fazem da crítica literária uma plataforma para todo tipo de denúncia social: a opressão da dominação masculina (falocentrismo), a alienação das classes subalternas, o eurocentrismo, o imperialismo ocidental etc.
A grande insatisfação com as abordagens da teoria literária do nosso tempo o levou a desenvolver uma interessante – e personalíssima – perspectiva a respeito dos caminhos adequados para a educação literária e, também, uma visão própria, muito influenciada pelas tradições romântica e humanista, relativa à natureza e ao valor da arte literária.
DA ACADEMIA AO DEBATE PÚBLICO
A primeira fase de sua carreira de crítico e teórico, que dura entre os anos de 1959 e 1989, aproximadamente, pode ser descrita como essencialmente acadêmica: suas obras tinham poucos leitores fora da universidade e suas ideias ficavam restritas ao mesmo ambiente. Desse período é justamente o seu livro de maior repercussão no âmbito da teoria literária, A angústia da influência. Nessa obra, em que se sente forte influxo da psicanálise freudiana, já pode ser percebida – apesar, ainda, da linguagem marcadamente acadêmica – a proposta de revitalização de certos valores humanistas e românticos, como na noção de “individualidade forte”, “genialidade”, “força imaginativa”, “talento individual” e “intenção autoral”. O crítico defendia, basicamente, que os grandes escritores – sempre fortes representantes de sua própria individualidade – só terão um relevante destino literário, podendo chegar a fazer parte do cânone, se alcançarem uma real independência em relação aos grandes autores que os precederam e influenciaram mais fortemente. Mas essa independência não pode ser alcançada por simples desejo: faz-se necessária uma consciência agônica – uma verdadeira luta contra a influência dos predecessores, a qual desperta a vida literária, mas também pode suprimir o talento numa esterilidade imitativa. A afirmação da personalidade como elemento imprescindível da realização artística e a valorização da perspectiva individual – tanto na literatura quanto na crítica literária – estiveram sempre presentes nas reflexões de Harold Bloom, seja em sua fase mais acadêmica, ou em suas obras mais recentes.
Para o crítico e teórico marxista Terry Eagleton, no livro Literary Theory: an introduction, “a teoria literária de Bloom representa uma volta apaixonada e desafiadora à tradição romântico-protestante de Spenser e Milton a Blake, Shelley e Yeats [...]. Bloom é o profético porta-voz da imaginação criativa da idade moderna, que lê a história literária como uma heroica batalha gigantesca ou como um vigoroso drama psíquico, confiando na ‘vontade de expressão’ do poeta mais forte em sua luta pela autocriação”.
Uma concepção como essa, defendida em meio a um ambiente acadêmico marcado pela hegemonia do paradigma anti-humanista das principais correntes da teoria literária, da influência do projeto desconstrucionista, e pela politização e ideologização promovida pelos Estudos Culturais, só poderia ser obra de uma individualidade muito forte e de uma personalidade afirmativa e polemista. Ainda segundo Eagleton, “esse corajoso individualismo romântico entra em choque frontal com o ethos cético, anti-humanista, de uma era desconstrutiva; de fato Bloom defendeu o valor da ‘voz’ poética e do gênio contra seus colegas derridianos de Yale (Hartman, De Man, Hillis Miller). Sua esperança é poder arrancar das mandíbulas de uma crítica desconstrutiva, que ele respeita sob certos aspectos, um humanismo romântico que reestabeleça o autor, a intenção e o poder da imaginação. Esse humanismo lutará contra o ‘sereno niilismo linguista’ que Bloom identifica, acertadamente, em grande parte da desconstrução americana, passando do mero desfazer interminável de uma dada significação para uma visão da poesia como vontade e afirmação humana”.
Averigua-se na passagem acima, portanto, que a volta ao humanismo preconizada pelo crítico literário norte-americano não se daria como um simples retorno, uma mera repetição acrítica. Bloom está consciente de que as diversas teorias literárias anti-humanistas e as filosofias de mesmo caráter que abundaram no século XX não permitem mais uma visão humanista ingênua e essencialista: o paradigma pós-moderno – depois dos “filósofos da suspeita” (Marx, Freud e Nietzsche), depois da virada linguística e do Pós-Estruturalismo – exige, e com muitas razões, uma nova configuração, mais humilde e cética, dos valores da tradição intelectual e artística humanista.
CRÍTICO VERNÁCULO
A fase mais “popular” de sua carreira, que perdurou até o dia de sua morte, teve início a partir do lançamento de O livro de J (1990), obra cuja difusão marcou a entrada do crítico no mercado editorial mais amplo e, portanto, possibilitou o aumento nas vendas de seus livros e abriu-lhe o diálogo com um número muito mais expressivo de leitores que, em sua maioria, não eram especialistas em literatura e muito menos em teoria literária. A nova etapa exigiu, em primeiro lugar, uma reforma na linguagem, como explicou o próprio Harold Bloom em entrevista: “Já não tinha nada em comum com meus colegas da academia, e me fazia falta um novo público. Descobri que havia chegado a hora de falar a linguagem comum, e tive que voltar a aprender como escrever crítica (…). Desde então, quando escrevo não olho mais em direção à universidade; dirijo-me ao leitor comum, e não só o do mundo anglófono, mas do mundo em geral (…). O que aprendi foi, em última instância, a escrever como falo, como falo nas aulas, como falo com meus amigos. Acabei convertido numa espécie de crítico vernáculo”.
O estranhamento que Harold Bloom passou a sentir em meio a seus colegas acadêmicos se devia primordialmente ao fato de que muitos dos professores e pesquisadores universitários pertencentes aos departamentos de Literatura – e também os que trabalham com questões estéticas em geral – converteram-se em grandes conhecedores do cânone teórico e esqueceram, ou pelo menos relegaram a um segundo plano, o cânone artístico-literário. Além disso, o crítico percebera que esses mesmos especialistas em literatura escreviam exclusivamente – salvo raríssimos casos – para seus próprios pares acadêmicos.
Acredito que essa mudança na linguagem – marcada pelo abandono do vocabulário teórico permeado de jargões e tecnicismos de suas primeiras obras –, levou-o a uma mudança na orientação geral de seu pensamento e foi responsável pela aproximação de Harold Bloom ao ideal dialogante da crítica humanista; um ideal que tem como uma das bases fundamentais a crença na possibilidade de edificação individual e comunitária através da literatura e da conversação literária (a crítica). Não por acaso, Bloom apresenta como seu “herói intelectual” – e predecessor crítico – o inglês Samuel Johnson (1709-1784), um expoente da crítica literária de orientação humanista, de prosa elegante e fluente.
Ler o legado de Harold Bloom, ainda que não se concorde com suas posições mais radicais, é uma forma de exercitar a sensibilidade e a inteligência. Não há maior elogio possível a um crítico de literatura.
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia.
(M. Santarrita, Trad.) Rio de Janeiro: Imago, 1991.
____________. O cânone ocidental. (M. Santarrita, Trad.) Rio de Janeiro: Objetiva, 1994.
___________. Como e por que ler. (J. R. O'Shea, Trad.) Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
___________. Onde encontrar a sabedoria. (J. R. O'Shea, Trad.) Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
EAGLETON, Terry. Literary Theory: an introduction. Oxford: Blackwell, 1996.
EDUARDO CESAR MAIA, crítico literário, mestre em Filosofia, doutor em Teoria da Literatura e professor da UFPE.