Um dos efeitos inesperados do avanço da renda, especialmente nos anos do governo do PT, foi uma mudança importante na esfera pública. Majoritariamente monopolizada por um catolicismo tácito, a esfera pública conheceu algumas alterações significativas com a entrada de outro agente religioso: os evangélicos. Mais do que os evangélicos, os neopentecostais. Com o aumento do poder aquisitivo das populações de baixa renda, esse grupo, que domina ideologicamente parte importante das classes menos favorecidas, investiu massivamente em canais de televisão e saiu do papel de coadjuvantes para atores políticos decisivos em qualquer processo eleitoral. Eles não estavam mais apenas no cotidiano das comunidades, com os seus cultos improvisados nas calçadas, mas dominavam uma grande estrutura midiática que passou a lhe servir de aparelho ideológico.
A ascensão dos evangélicos mostra como a esfera pública está subordinada ao capital, visto que a visibilidade necessária para formar a opinião pública está diretamente ligada à posse sobre os meios de comunicação. Diferente de Habermas, é preciso notar que o caráter ideológico da opinião pública não é acidental num sistema em que a posse material das mídias determina o alcance e a possibilidade da expressão da opinião.
Assim, a esfera pública passou a comportar uma pauta conservadora sem que as pautas identitárias tivessem a mesma oportunidade de emitir as suas opiniões num debate público. Apesar de temas importantes da vida social terem passado a circular nos meios de comunicação, a falta de um debate mais amplo na esfera pública sobre a pauta identitária foi desproporcional frente ao avanço vertiginoso dos canais de televisão evangélicos (católicos também, ainda que numa menor proporção), que introduziram agendas claramente retrógradas no meio político.
Essas pautas não conseguiam se alojar no poder público de modo definitivo e imediato porque os avanços econômicos refreavam o ímpeto por uma mudança radical na mesma proporção daquela proposta pela agora denominada bancada evangélica. O risco de um colapso econômico com a mudança de governo era demasiado alto para uma mudança mais drástica, uma vez que foi o desenvolvimento econômico que assegurou o protagonismo político dos evangélicos. Com efeito, o colapso da economia se aproximava na mesma proporção que o governo Dilma cambaleava sem um rumo certo e já distante de sua base política: os movimentos sociais. Formou-se o vácuo político necessário para a mudança mais radical não apenas na esfera pública, que já tinha sofrido transformações com a presença midiática dos evangélicos, mas no próprio poder político-institucional.
Quando se pôs em marcha o impedimento da presidenta eleita, essa mudança não poderia ser mais simbólica. O combate à “ideologia de gênero” (pauta central da bancada evangélica) se iniciou institucionalmente, tomando como primeiro alvo material a própria presidenta. Sem constrangimento, o agora presidente, na época apenas um dos vários deputados do baixo clero, evocou publicamente, no seu voto pelo impedimento da presidenta, um torturador (sabemos que a tortura na ditadura militar era particularmente perversa com as mulheres) que, segundo ele, seria o terror de Dilma na ditadura militar. Esse discurso foi mimetizado nas ruas com adesivos ultramachistas que mostravam Dilma com as pernas abertas. Era preciso combater, dizia-se, a ideologia de gênero que, na prática, significava tirar a força política das mulheres. Começaram tirando a primeira presidenta eleita. O preconceito já tinha saído do armário. Retrocedemos.
Foi no impedimento também que as palavras Deus e família circularam livremente na boca de parlamentares majoritariamente brancos e homens. Longe de ser uma caricatura que tomou de assalto a classe brasileira ilustrada, a votação do impedimento era o prenúncio dos cultos que viriam em seguida no seio do estado laico. A pauta privada já estava dominando a esfera pública naquele momento, mas já começava a dominar igualmente o poder público institucional na medida em que uma mulher presidenta, a primeira da história, era que estava sendo impedida. Era a primeira vez que tínhamos a dimensão do poder dos evangélicos no parlamento (não se deve esquecer que um dos principais artífices do impedimento e presidente na câmara na época, Eduardo Cunha, é evangélico) e que tínhamos a clareza de uma pauta moral cujo objetivo final é dissolver a dimensão pública do poder público.
Esse domínio dos evangélicos precisava transpassar a posse das mídias televisivas, cuja audiência dispunha de um público já convertido. Essa audiência não era o suficiente para os fazer expandir em direção à consolidação de um protagonismo político num sistema presidencialista. Foi preciso avançar para a publicidade nas redes sociais e nos aplicativos de celular. Novamente, a esfera pública perdia espaço para o âmbito privado, sobretudo no caso dos aplicativos de celular, onde os preconceitos não cabiam mais dentro do armário e que, longe do debate público, passaram a driblar a censura do razoável. Tudo podia ser dito e protegido pela sombra do ambiente privado do WhatsApp. Mais gravemente: tudo era verdade, desde que fosse uma crítica às causas identitárias. A verdade, Nietzsche já tinha nos ensinado: está diretamente ligada à vontade de poder.
Associar o PT à degeneração moral, que supostamente seria o grande problema do Brasil, quiçá do mundo, não foi difícil. Por um lado, porque o enfoque da Lava Jato estava no partido que fora governo por 13 anos e que continha claro um desgaste acentuado, e, por outro, porque foi no governo do PT, de fato, que as pautas identitárias deixaram um pouco a sua invisibilidade. Varrer, então, o PT do mapa foi tomado como uma tarefa moral para combater a corrupção (arbitrariamente ligada apenas ao PT) e proteger os valores cristãos. Um compromisso de fé. Um compromisso com o Brasil e, claro, com Deus. Esse comprometimento moral com os valores da família cristã formava, junto ao ressentimento – em face de todos os avanços na construção de um espaço realmente público porque capaz de abarcar as diferenças –, a rede afetiva responsável por encorajar os conservadores a irem para as ruas fazerem campanha de modo espontâneo. O que estava em jogo não era apenas o destino do país, que deveria estar acima de tudo, mas o compromisso com os valores privados da fé cristã que deveriam estar acima de todos.
Desse modo, o poder público institucional, que já fora enfraquecido pelas denúncias de corrupção, passava a ser objeto de uma crítica que não visava apenas aos políticos, mas à própria compreensão do que é público. Isto é, as críticas ao sistema da política nacional, iniciadas em 2013, se autorizaram a focar não apenas nos políticos (a parte contingente), mas tiveram como alvo as regras básicas que constituem a própria esfera pública como fiadora institucional da distinção entre o público e o privado.
É nessa perspectiva que a criação de uma falsa simetria entre as pautas identitárias (associadas ao PT) e as posições religiosas foi uma estratégia política não apenas para mudar o quadro político (retirar o PT do poder), mas para minar o caráter público das instituições. Isso porque se, por um lado, as pautas identitárias mostravam a necessidade de a política incluir existências que foram historicamente e socialmente vulnerabilizadas (também em decorrência de posicionamentos morais), para ampliar a representação no poder público e fortalecer as instituições; por outro, as pautas religiosas, especialmente evangélicas, borram as fronteiras do público e do privado em benefício próprio, no sentido de fazer imperar, no âmbito do poder público, a sua verdade religiosa que exclui do mesmo espectro público as existências que não são o seu espelho. Ou seja, se as pautas identitárias fortalecem não apenas a esfera pública, mas o próprio poder público por incluir mais existências, as pautas religiosas, por outro lado, restringem o poder público ao que está adscrito ao campo do privado porque subordina a legitimidade do direito de cada indivíduo ao seu credo moral, que deve estar acima de todos.
É nesse sentido preciso que o governo de Bolsonaro se constitui numa ameaça à democracia, porque introduz, na esfera pública e no próprio poder público, princípios morais privados que não apenas reforçam assimetrias historicamente construídas, e que enfraquecem a própria natureza da coisa pública (como, por exemplo, a falta de participação de mulheres na política), como retiram o que deveria ser o alicerce de qualquer pacto constitucional: a possibilidade de todos os indivíduos, com as suas diversas identidades, se reconhecerem no texto constitucional apenas com o qual podemos formar democraticamente um povo.
ÉRICO ANDRADE, filósofo e psicanalista. Professor de Filosofia da UFPE.