Artigo

Café e livros: uma dupla irresistível

O café está presente em obras dos grandes autores da literatura, que também são grandes apreciadores da bebida

TEXTO Marcelo Pereira

21 de Julho de 2024

Estudiosos da vida de Balzac estimam que o autor de A Comédia Humana sorveu 50 mil xícaras de extrato de coffea arábica, enquanto escrevia suas 95 obras, ao longo de 18 anos

Estudiosos da vida de Balzac estimam que o autor de A Comédia Humana sorveu 50 mil xícaras de extrato de coffea arábica, enquanto escrevia suas 95 obras, ao longo de 18 anos

Ilustração Louis Boulanger

Café e literatura formam uma dupla clássica e indispensável. Desde os turcos, em Constantinopla, onde começou a difusão da bebida da coffea arábica pelo mundo, no século XVI. A expansão encontrou em Viena as mesas para conquistar os primeiros coffee lovers europeus. Nos cafés Central, Imperial, do Museu e Sperl, Herrenhof, Landtmann, entre outros, centenas de anos depois, literatos como Stephan Zweig, Elias Canetti, Robert Musil, Rainer Maria Rilke, Karl Kraus e Franz Kafka frequentaram seus salões.

O público de um café é tão diverso, na maioria das vezes, que ditadores como Hitler e Stálin, e o desafeto deste, Leon Trotsky, preferiam o mesmo Central de intelectuais e artistas como o pintor Gustav Klimt, que não queria saber de encrencas bélicas; enquanto Kafka tinha inclinação pelo Herrenhof. Já Sigmund Freud ia ao Café Landtmann, hoje frequentado pela turma do teatro.

Em Paris, Zola, Maupassant e Massenet, Oscar Wilde e Enrico Caruso iam ao Café de la Paix, próximo à Ópera Garnier. Uma turma mais barra pesada de farra, entre eles, Pablo Picasso, Ernest Hemingway, que dividia mesa com Ezra Pound, Charles Baudelaire e Paul Verlaine preferiam o La Closerie de Lilas, em Montparnasse, não distante do famoso cemitério. As ostras frescas de lá são espetaculares.

Hemingway e Picasso também se debandavam para o bairro de Saint-German- de-Prés, onde estão os cafés hoje centenários Les Deux Magots e de Flore, ambos de esquina e separados por uma rua, onde o casal existencialista Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, além de Albert Camus, Raymond Queneau, George Bataille, entre tantos outros cabeças-feitas, batiam ponto, enquanto cubava o movimento e trocavam ideias.

A turma dos surrealistas André Breton, Louis Aragon, Pierre Massot e René Crevel tinha mesa em frente à entrada do Deux Magots, onde qualquer um “podia achar conveniente insultar qualquer recém-chegado que calhasse estar brigando”, de acordo com Janet Flanner, em seu livro Paris era ontem - 1925-1939 (José Olympio Editora).

Em Veneza, não se pode deixar de dar um pulo no clássico Florian, com mais de 300 anos de história, onde Casanova, Marcel Proust e Charles Dickens passavam umas horas pensando em suas aventuras literárias enquanto tomavam suas xícaras.

Se nos cafés reais de Viena, Paris e Veneza nomes consagrados da literatura se encontravam com outros ilustres personagens da vida social e anônimos da vida mundana, na ficção, surgem outras figuras criadas pela imaginação do autor.

Por ter falado em Kafka: quando em Praga, o escritor costumava ir ao Hotel Café Imperial, que reabriu em agosto do ano passado, após dois anos de reforma. É na capital checa que literatura entra em cena em forma de ficção pelas mãos do escritor argentino Ricardo Piglia, patrocinador de um misterioso encontro, em Respiração artificial, entre o autor de A Metamorfose, O Castelo e O Processo, e o autor de Mein Kampf, o nazista Adolf Hitler. O local é o Cafe Arcos, na Rua Meiselgasse. Piglia adora fazer jogos narrativos, criando camadas de indefinições em seus textos, como neste seu principal romance.

Em certo trecho (na página 186 da edição da Iluminuras, de 1987), o personagem Tardewski revela a descoberta por acaso. “Os dados e evidências são tão incríveis que parece impossível que ninguém tenha percebido. Por exemplo, há duas cartas de Kafka onde ele se refere ‘a um exilado austríaco que frequenta o Arcos’. Em uma delas, remetida no dia 24 de novembro de 1909 ao seu amigo Rainer Jauss, Kafka fala desse estranho homenzinho que diz ser pintor e que fugiu de Viena “por motivo obscuro”.

Umas páginas antes, preparando essa “descoberta”, o personagem havia lembrado que “Hitler eludiu o dever de alistamento militar, que caía entre 1909 e 1910. Sua desaparição foi uma fuga do serviço miliar”.  Teria ido para Alemanha. Mas Piglia o leva para Praga. Ou seja, é um desertor semiclandestino, um artista fracassado do curso de Belas Artes e Arquitetura.

Adolf, diz Tardewski, no livro de Piglia, teria demonstrado que “sabia planejar tão maravilhosamente bem o que pensava fazer com o futuro do mundo”, na conversa no Café Arcos que deixou Kafka impressionado e ansioso. De acordo com o relato de Tardewski, era a ele que o escritor, no quarto rascunho de Descrição de uma luta, está se referindo ao dizer: “Conte-me tudo do princípio ao fim' (...). Se for menos não o escutarei, esteja avisado. Mas estou ansioso para ouvir tudo do senhor. Porque [o que] o senhor planeja é tão atroz que ao ouvi-lo só posso dissimular meu terror”. Todo mundo sabe o que Hitler fez na Segunda Guerra Mundial, no holocausto dos judeus.

Um livro dos mais interessantes - e injustamente esquecido - é Café dos Loucos, do espahol Felipe Alfau. A obra foi publicada em 1928, quando ele já tinha migrado para Nova Iorque. Uma galeria de tipos se reúne neste café de Toledo, logo no primeiro capítulo: um médico de almas perdidas, um mendigo rico, um suicida arrependido, o poeta García com sua habilidade de papiloscopista, o chefe de polícia da cidade, um vendedor de sucata e seu sobrinho, um cafetão, uma freira fugitiva, um monge salesiano, uma viúva necrófila, um escravo gigante e um mágico mandarim e o próprio Felipe Alfau, entre outros. O autor intercala narrativas curtas entre eles, antecipando o que veio se conformar como “realismo mágico”.

Considerado um dos mais talentosos escritores de sua geração, o chileno Roberto Bolaño recorreu várias vezes ao café em seus poemas, no livro A universidade desconhecida.

Dentre os escritores, talvez ninguém tenha bebido mais café do que Honoré de Balzac. Compulsivo escritor, para atender às suas demandas e encomendas que recebia para saldar suas infindáveis dívidas, ele se valia da cafeína da bebida para se manter acordado, a mente acesa e vencer a fadiga do corpo numa jornada que variava de 10 a 15 horas por dia.

O escritor, pode se dizer, era um estudioso dos efeitos benéficos e maléficos do café sobre o corpo, tema abordado em Tratado dos excitantes modernos. Balzac ensina como preparar desde um bom café até “um terrível e cruel método”, capaz de corroer as mucosas do estômago e causar úlceras: torrar e moer o café e infundir com o mínimo de água. Eis uma receita de amargar.

Segundo os estudiosos da biografia do autor de A Comédia Humana, ele teria entornado 50 mil xícaras de extrato de coffea arábica, enquanto escrevia suas 95 obras, ao longo de 18 anos, para pagar boletos e saciar a sociedade francesa com seus romances. A bebida, é claro, terminou cobrando a conta. De acordo com Stephan Zweig, Balzac morreu de “uma cardiopatia antiga, agravada por trabalho noturno e pelo uso, ou melhor, abuso do café, ao qual tinha ele de recorrer para lutar contra a natural necessidade humana de dormir”.

Outra adicta do café é a compositora, cantora, escritora e fotógrafa Patti Smith. O Café ‘Ino, [no bairro nova-iorquino Greenwich Village], é o personagem do primeiro capítulo do livro Linha M, (livro de memórias lançado pela artista em 2015). É onde faz seu desjejum, sempre com café preto, lê, toma notas para futuros textos.

“Quatro ventiladores girando no teto. O Café ‘Ino está vazio, a não ser pelo cozinheiro mexicano e por um garoto chamado Zak, que atende meu pedido habitual de torrada de pão integral, um pratinho de azeite e café preto. Me instalo no meu canto, ainda de casaco e gorro. São nove horas da manhã. Sou a primeira a chegar (....). Minha mesa, ladeada pela máquina de café e pela vitrine, me proporciona uma sensação de privacidade, onde me recolho na minha atmosfera particular”, escreve Patti Smith, que chega a se trancar no banheiro para dar um tempo, quando sua mesa está ocupada.

O Café ‘Ino é uma paisagem ou um personagem recorrente em Linha M. Em certo trecho, ela nota botões vermelhos enfeitando o banheiro e passa mais de hora “enchendo páginas do meu caderno com desenhos de animais unicelulares e diversas espécies de plânctons. Foi estranhamente tranquilizante”.

Enquanto esteve em Paris para compromissos editoriais descritos na primeira parte de Devoção (2017), Patti Smith gostava de chegar cedo no Café de Flore para pedir um café preto e uma baguete com algum acompanhamento - ovos com presunto ou geleia. “Os ovos são perfeitamente redondos dispostos sobre um pedaço perfeitamente redondo de presunto”, escreve, comparando-os a um ringue de patinação.

Quando Patti foi morar em Michigan com o guitarrista Fred Sonic Youth, ela ganhou um bule da mãe “que era uma versão menor do dela”. Eles moravam numa casa de campo e não havia cafés onde pudesse ir à pé. “Meu único refúgio era uma máquina de café na 7 Eleven”.

CAFÉ BRASILEIRO

No Brasil, ainda está para ser escrito um livro ou antologia do café na literatura que faça jus à importância que tem para a economia e a história do País. Assunto não falta. Terra de um dos melhores cafés especiais do mundo, São Paulo teve no modernista Mário de Andrade um dos mais ousados escritores sobre o tema, com seu projeto de escrever uma ópera (que teria música do maestro e compositor Francisco Mignone), cujo libreto foi incluído em suas Poesias Completas, e um romance. As obras ficaram inéditas e vieram a público postumamente.

Em Café, “um romance de páginas cheias de psicologia e intensa vida”, o cantador de coco Chico Antônio é um migrante nordestino que passa por São Paulo, antes de seguir para uma fazenda de café no interior para encontrar com o seu pai, que trabalha na lavoura. O período é o da crise do café, que arruinou os barões, obrigando-os a queimar milhares de sacas do produto numa tentativa de segurar o preço, que despencou com o crack da Bolsa de Nova York, e causou uma convulsão social e econômica, levando sofrimento à vida tanto daqueles que trabalharam na lavoura como nas cidades. Parte do material saiu publicado como crônicas na Folha da Manhã, com o título de “Vida de Cantador”, que foi reunida em livro, em 1993.

O romance não foi publicado na época porque Mário de Andrade não encontrava um desfecho para a história, escrita de uma forma convencional. No entanto, a história de Chico Antônio, de certa forma abandonada na segunda metade do romance (em que o foco está na fazenda e na crise do café) é retomada com uma escrita surpreendente em Vida de cantador.

A ópera Café foi encenada pela primeira vez com música de Hans-Joachin Koellreutter em meados dos anos 1990. Para comemorar os 100 anos da Semana de Arte Moderna, o Theatro Municipal de São Paulo patrocinou uma segunda montagem do texto de Mário de Andrade, em 2022, com música de Felipe Senna. A encenação levou em consideração a provocação teórica do autor, que imaginou uma ópera coral na qual os personagens fossem representados coletivamente e não individualmente. O sentimento de uma solução socialista é construído durante o processo de desenvolvimento da ópera.

O primeiro ato da ópera abre com o canto coral dos estivadores, que resume o drama vivido pelos trabalhadores:

"Minha terra perdeu seu porte de grandeza...
O café que alevanta os homens apodrece 
Escravizado pela ambição dos gigantes da mina do ouro0
O café ilustre, o grão perfumado
Que jamais recusou a sua recompensa, 
Nada mais vale, nada mais. 
Que farei agora que o café não vale mais!
Essa força grave da terra era também a minha força.
                          - me ensinava
Ela era verde e - desenhava               o futuro 
- me desvendava 
Ela era encarnada e audaciosa
Era negra e aquentava o meu coração. 
Foi ela que deu à minha terra o seu porte de grandeza 
E hoje nada mais vale, nada mais. 
Café! Café! Eu exclamo a palavra sagrada (no deserto) 
Café!... O seu fruto me trazia o calor no coração 
Era o cheiro da minha paz, o gosto do meu riso 
E agora ele me nega o pão... 
Que farei agora que o café não vale mais! 
Porte de grandeza, odor da minha terra, força da minha vida, 
Que farei agora que pra mim não vales mais!"

Maior produtor de café, Minas Gerais também produziu grandes escritores e era natural que o maior poeta mineiro oferecesse aos leitores um pouco da bebida. Entre os poemas que Carlos Drummond de Andrade publicou está “O visitante inábil”:

O café coado na hora, 
adoçado a rapadura bem escura,
deve ser servido na tigela
de flores de três cores, 
flores pegando fogo, de tão quente
deve ser o café pra ser café
oferecível.

"Queimo os dedos, viram cacos
as cores das três flores, 
molho a calça, queimo a perna
me envergonho:
Este café tem plenas condições
de ser bebido com prazer e continência,
e não correspondi à etiqueta
de beber café pelando em pele alheia."

No poema “Infância”, CDA relembra o tempo de menino na fazenda dos pais. Um trecho talvez sofra restrições hoje de leitores sensíveis, por comparar a bebida com uma empregada da casa.

"No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu 
chamava para o café. 
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.”

Outro grande nome da poesia brasileira, o pernambucano Manuel Bandeira é autor de “Momento num café”, um dos mais famoso do seu livro Estrela da manhã, e que representa bem a instituição cultural que eram os cafés há cem anos, quando os homens se reuniam para confabulações sobre a vida. Eis o poema:

"Quando o enterro passou 
Os homens que se achavam no café 
Tiraram o chapéu maquinalmente 
Saudavam o morto distraídos 
Estavam todos voltados para a vida 
Absortos na vida
Confiantes na vida."

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado 
Olhando o esquife longamente 
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade 
Que a vida é traição 
E saudava a matéria que passava 
Liberta para sempre da alma extinta."

O também poeta pernambucano Ascenso Ferreira incluiu o café logo nos primeiros versos da estrofe de abertura do poema “História Pátria”:

"Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa ave-maria,
           Negramente… 
                  Caboclamente… 
                         Portuguesamente...
A gente vivia."

O paranaense Paulo Leminski exercitou como poucos a poesia curta, influência direta dos haicais japoneses. Num poema de apenas quatro versos, ele dá a sua receita de literatura e café:

"Antes que a tarde amanheça 
e a noite vire dia 
põe poesia no café 
e café na poesia"

Poesia não faltava aos versos do polivalente Antônio Maria. O pernambucano jogava em todas as posições: radialista, speaker esportivo, diretor, criador e produtor de programas para o rádio e TV, compositor e um dos principais cronistas brasileiros, o pernambucano era um grande criador de frases. O grande Maria, com uma melancolia e uma ironia tão sua escreveu assim na crônica “Café com leite”:

“Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do prazer cumprido.

No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária,  a ioga, todo asceticismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.”

Foi à mesa do café, conta Maria, que ele se descobriu um menino feio, porém muito amado por sua mãe:

“Na mesa do café, éramos cinco irmãos. Havia bolo de mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d'água. Éramos cinco irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era feio. Então, por que minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena, não era, porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente, por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado. Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia e ela sabia, que eu sabia. (....) Da mesa do café, víamos pela vidraça, os canteiros de terra negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das pálidas rosas da minha infância. Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.”

Também nascido em um dos maiores estados produtores de café, o cronista capixaba Rubem Braga manejou como poucos as palavras. Se fossem grãos, teria separado os de café especial de peneira mais alta e maior pontuação daqueles quebrados, murchos, da boia. Para Braga, “O Brasil é uma plantação de café. O resto é literatura”.

Uma de suas crônicas sobre a bebida é “O cafezinho”, aquele momento em que se dá uma pausa após o término de uma tarefa para puxar um papo, mas que, na maioria das vezes, é mais um pretexto para adiar o trabalho e fugir de tudo. Nesta crônica, o personagem é um servidor público tipo Bartleby, chamado Bonifácio, que está sempre procrastinando o serviço, se ausentando da sala. Daqueles que quando perguntam, alguém sempre diz: “Ele foi tomar café”.

“A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar com um número excessivo de pessoas. O remédio é ir tomar um ‘cafezinho’. Para quem espera nervosamente, esse cafezinho é qualquer coisa infinita e torturante. Depois de esperar duas ou três horas, dá vontade de dizer: – Bem cavalheiro, eu me retiro. Naturalmente o Sr. Bonifácio morreu afogado no cafezinho”, escreveu Rubem Braga.

O cronista José Carlos Oliveira tem uma das crônicas mais completas em se tratando do tema que dá título ao texto “Café da manhã”. À mesa, logo cedo para a primeira refeição do dia, às sete horas da manhã, uma família sente a rotina ser quebrada pelo pai, durante a leitura habitual do jornal, que ele “dobra em quatro como um livro” e coloca ao lado da xícara e espera a mulher dá a voz de comando “o café está servido”. Ele automaticamente se serve de açúcar e de leite. Mas nesse dia específico, ele diz que vai tomar apenas um cafezinho. A mulher e a filha ficam curiosas e querem saber o motivo. Não é a venda de Tostão para o Flamengo nem a aplicação na bolsa. O pai não gosta de que ninguém interrompa, mas a filha de 15 anos, depois da tentativa inútil da mulher, entra em campo e termina descobrindo a razão: a guerra no Vietnã, com a entrada dos vietcongues em Hué. Mas o que ele julga ser uma novidade, a filha diz que a guerra está empacada faz tempo e que o pai está desatualizado.

O escritor Rubem Fonseca colocou o café numa cena do conto “O Cobrador”, na qual a personagem Ana conversa na cama com o personagem que dá título ao texto. O relacionamento entre os dois é celebrado pela patroa do cobrador, entre um gole e outro de café. Eis o diálogo:

Você já matou alguém? Ana aponta a arma para minha testa. 
Já. 
Foi bom? 
Foi. 
Como? 
Um alívio. 
Como nós dois na cama? 
Não, não, outra coisa. O outro lado disso. 
Eu não tenho medo de você, Ana diz. 
Nem eu de você. Eu te amo. 
Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.

Como tema, ambiente de convívio ou de forma prosaica para ilustrar uma situação, o café estimulou muitos escritores, convidando o leitor a compartilhar esses momentos, entre um gole e outra da bebida.

Marcelo Pereira é coordenador de edição e difusão das revistas Pernambuco e Continente

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