O café que alevanta os homens apodrece
Escravizado pela ambição dos gigantes da mina do ouro0
O café ilustre, o grão perfumado
Que jamais recusou a sua recompensa,
Nada mais vale, nada mais.
Que farei agora que o café não vale mais!
Essa força grave da terra era também a minha força.
- me ensinava
Ela era verde e - desenhava o futuro
- me desvendava
Ela era encarnada e audaciosa
Era negra e aquentava o meu coração.
Foi ela que deu à minha terra o seu porte de grandeza
E hoje nada mais vale, nada mais.
Café! Café! Eu exclamo a palavra sagrada (no deserto)
Café!... O seu fruto me trazia o calor no coração
Era o cheiro da minha paz, o gosto do meu riso
E agora ele me nega o pão...
Que farei agora que o café não vale mais!
Porte de grandeza, odor da minha terra, força da minha vida,
Que farei agora que pra mim não vales mais!"
Maior produtor de café, Minas Gerais também produziu grandes escritores e era natural que o maior poeta mineiro oferecesse aos leitores um pouco da bebida. Entre os poemas que Carlos Drummond de Andrade publicou está “O visitante inábil”:
O café coado na hora,
adoçado a rapadura bem escura,
deve ser servido na tigela
de flores de três cores,
flores pegando fogo, de tão quente
deve ser o café pra ser café
oferecível.
"Queimo os dedos, viram cacos
as cores das três flores,
molho a calça, queimo a perna
me envergonho:
Este café tem plenas condições
de ser bebido com prazer e continência,
e não correspondi à etiqueta
de beber café pelando em pele alheia."
No poema “Infância”, CDA relembra o tempo de menino na fazenda dos pais. Um trecho talvez sofra restrições hoje de leitores sensíveis, por comparar a bebida com uma empregada da casa.
"No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.”
Outro grande nome da poesia brasileira, o pernambucano Manuel Bandeira é autor de “Momento num café”, um dos mais famoso do seu livro Estrela da manhã, e que representa bem a instituição cultural que eram os cafés há cem anos, quando os homens se reuniam para confabulações sobre a vida. Eis o poema:
"Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida."
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta."
O também poeta pernambucano Ascenso Ferreira incluiu o café logo nos primeiros versos da estrofe de abertura do poema “História Pátria”:
"Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa ave-maria,
Negramente…
Caboclamente…
Portuguesamente...
A gente vivia."
O paranaense Paulo Leminski exercitou como poucos a poesia curta, influência direta dos haicais japoneses. Num poema de apenas quatro versos, ele dá a sua receita de literatura e café:
"Antes que a tarde amanheça
e a noite vire dia
põe poesia no café
e café na poesia"
Poesia não faltava aos versos do polivalente Antônio Maria. O pernambucano jogava em todas as posições: radialista, speaker esportivo, diretor, criador e produtor de programas para o rádio e TV, compositor e um dos principais cronistas brasileiros, o pernambucano era um grande criador de frases. O grande Maria, com uma melancolia e uma ironia tão sua escreveu assim na crônica “Café com leite”:
“Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do prazer cumprido.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo asceticismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.”
Foi à mesa do café, conta Maria, que ele se descobriu um menino feio, porém muito amado por sua mãe:
“Na mesa do café, éramos cinco irmãos. Havia bolo de mandioca, requeijão, bananas fritas, pão torrado e bolacha d'água. Éramos cinco irmãos e, dos cinco, quatro eram bonitos. Vá lá, eu era feio. Então, por que minha mãe gostava mais de mim? Ela, que nos zelava a todos, que nos conhecia pelo avesso e pelo direito, por que gostava mais de mim? De pena, não era, porque pena é uma coisa e amor é outra. Menino conhece. O gesto complacente, por mais carinhoso, é sempre vacilante e triste. O gesto de amor chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado. Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia e ela sabia, que eu sabia. (....) Da mesa do café, víamos pela vidraça, os canteiros de terra negra e as rosas de maio. Vinha o cheiro úmido da terra molhada, mais que o das pálidas rosas da minha infância. Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos.”
Também nascido em um dos maiores estados produtores de café, o cronista capixaba Rubem Braga manejou como poucos as palavras. Se fossem grãos, teria separado os de café especial de peneira mais alta e maior pontuação daqueles quebrados, murchos, da boia. Para Braga, “O Brasil é uma plantação de café. O resto é literatura”.
Uma de suas crônicas sobre a bebida é “O cafezinho”, aquele momento em que se dá uma pausa após o término de uma tarefa para puxar um papo, mas que, na maioria das vezes, é mais um pretexto para adiar o trabalho e fugir de tudo. Nesta crônica, o personagem é um servidor público tipo Bartleby, chamado Bonifácio, que está sempre procrastinando o serviço, se ausentando da sala. Daqueles que quando perguntam, alguém sempre diz: “Ele foi tomar café”.
“A vida é triste e complicada. Diariamente é preciso falar com um número excessivo de pessoas. O remédio é ir tomar um ‘cafezinho’. Para quem espera nervosamente, esse cafezinho é qualquer coisa infinita e torturante. Depois de esperar duas ou três horas, dá vontade de dizer: – Bem cavalheiro, eu me retiro. Naturalmente o Sr. Bonifácio morreu afogado no cafezinho”, escreveu Rubem Braga.
O cronista José Carlos Oliveira tem uma das crônicas mais completas em se tratando do tema que dá título ao texto “Café da manhã”. À mesa, logo cedo para a primeira refeição do dia, às sete horas da manhã, uma família sente a rotina ser quebrada pelo pai, durante a leitura habitual do jornal, que ele “dobra em quatro como um livro” e coloca ao lado da xícara e espera a mulher dá a voz de comando “o café está servido”. Ele automaticamente se serve de açúcar e de leite. Mas nesse dia específico, ele diz que vai tomar apenas um cafezinho. A mulher e a filha ficam curiosas e querem saber o motivo. Não é a venda de Tostão para o Flamengo nem a aplicação na bolsa. O pai não gosta de que ninguém interrompa, mas a filha de 15 anos, depois da tentativa inútil da mulher, entra em campo e termina descobrindo a razão: a guerra no Vietnã, com a entrada dos vietcongues em Hué. Mas o que ele julga ser uma novidade, a filha diz que a guerra está empacada faz tempo e que o pai está desatualizado.
O escritor Rubem Fonseca colocou o café numa cena do conto “O Cobrador”, na qual a personagem Ana conversa na cama com o personagem que dá título ao texto. O relacionamento entre os dois é celebrado pela patroa do cobrador, entre um gole e outro de café. Eis o diálogo:
Você já matou alguém? Ana aponta a arma para minha testa.
Já.
Foi bom?
Foi.
Como?
Um alívio.
Como nós dois na cama?
Não, não, outra coisa. O outro lado disso.
Eu não tenho medo de você, Ana diz.
Nem eu de você. Eu te amo.
Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.
Como tema, ambiente de convívio ou de forma prosaica para ilustrar uma situação, o café estimulou muitos escritores, convidando o leitor a compartilhar esses momentos, entre um gole e outra da bebida.
Marcelo Pereira é coordenador de edição e difusão das revistas Pernambuco e Continente