Artes Visuais

Uma exposição vestida de sol

Sob o título "Mil Graus", o 38º Panorama da Arte Brasileira apresenta, de 5 de outubro a 24 de janeiro de 2025, 130 obras de 34 artistas de 16 estados

TEXTO Carlos Costa

09 de Outubro de 2024

Painel multimídia do coletivo Rop Cateh - Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella

Painel multimídia do coletivo Rop Cateh - Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella

Foto Divulgação

O mundo acabará em fogo. A peremptória profecia cristã é alegoria apropriada para o cenário atual de altas temperaturas, incêndios suspeitos e o aquecimento global levando o sistema climático a limiares críticos. Pois assim, vestido de sol, o 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus teve início, no MAC USP, no Ibirapuera, em São Paulo.

Mil graus é o título que os curadores Germano Dushá e Thiago de Paula Souza, com a curadora-adjunta Ariana Nuala, escolheram para esta edição da mostra bienal, que apresenta um recorte crítico sobre a produção artística nacional, organizada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), com curadores convidados, desde 1969.

A 38ª mostra faz referência a um calor-limite, temperaturas extremas que modificam o estado físico da matéria. Está instalada no MAC USP, porque a marquise do Parque Ibirapuera, onde fica o MAM-SP, está sendo reformada e o museu fechado. Desse modo, as direções das instituições organizaram um período de ações em conjunto, em grande estilo.

São mais de 130 obras de 34 artistas de 16 estados, em cartaz até 26 de janeiro de 2025. Nesse caldeirão, há um pouco de tudo. Desde a vidente Dona Romana (Romana Pereira da Silva, Natividade, TO, 1941), conhecida pelo trabalho espiritual que inclui uma produção pictórica em desenho e escultura, desenvolvida há 50 anos e que ocupa um galpão e o terreiro do Sítio Jacuba, onde vive, na cidade mais antiga do Tocantins, apartada do meio artístico; a Joseca Yanomami (Terra Indígena Yanomami, Amazônia, 1971), promissor pintor que há anos vem se destacando nas artes nacionais difundindo a cosmovisão Yanomami.

NORDESTINOS

Nascidos na região Nordeste, há 10 artistas presentes na curadoria.

De Pernambuco, o representante é mestre Nado (Agnaldo da Silva, Olinda, PE, 1945), que desenvolve uma obra que parece apagar esse fogo e baixar as altas temperaturas. Oleiro há mais de 60 anos, cria instrumentos de sopro e percussão em formas arredondadas, primitivos e rebuscados, que o levaram ao posto de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2019.

Sua trajetória é sólida e seu legado, enorme. De sopro, as ocarinas e as flautas são destaques. Dos percussivos, os buns de água. Os instrumentos por si só são uma obra estética – textura, cor, formas. Não bastasse, são aptos a produzir música com afinação e harmonia.

O artista gravou em 2014 o disco “O som do barro”, registrando a música de suas criações, que seduziram, acompanharam e acompanham músicos de renome da Música Popular Brasileira (MPB). Mantém com os filhos, em Olinda, o Instituto Mestre Nado, onde dissemina seu conhecimento sobre a olaria, do molde à queima, e ocorrem uma série de atividades culturais.

Para a mostra, criou três obras inéditas, esculturas de grande escala, incomuns em sua produção corrente – “A forma do som I, II e III”. Parecem torres de sopro e repousam, no espaço expositivo, em meio a outros trabalhos feitos em material e cor similar, como os desenhos sobre pedras de Maria Lira Marques (Araçuaí, MG, 1945) e as esculturas de arenito de Paulo Pires (Poxoréu, MT, 1972).

BAIANOS

Da Bahia, vem quatro artistas, de idade, trajetória e produção diversas.

Antonio Tarsis (Salvador, BA, 1995), nascido e criado no miolo de Salvador, no Cabula, atravessou o cenário de violência e pobreza mirando a arte. Começou a pintar aos 14 anos. Aos 19 anos, ganhou o primeiro prêmio, uma residência no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) e não parou mais.

Desenvolveu painéis monocromáticos com caixas de fósforo, nos quais surpreendem as composições geométricas que exploram nuances de cor e que ele remete a um olhar atento que desenvolveu observando as caixas de fósforos, desbotadas pela luz e pelo tempo, de pessoas viciadas em crack nas ruas de Salvador.

O reprocessamento de objetos do cotidiano se tornou uma recorrência em sua produção. Para o Panorama, criou a obra comissionada “Ascendendo o silêncio” (2024): um tronco de eucalipto carbonizado suspenso no teto, de onde goteja água, que cai em uma peça circular metálica aquecida, uma bacia no topo de um monte carvão, e aos poucos evapora.

Jayme Fygura (Jaime Andrade de Almeida, Cruz das Almas, BA, 1951 - Salvador, BA, 2023) é o único artista da mostra falecido – sofreu um infarto em novembro passado –, e sua presença é também uma homenagem a uma trajetória performática de mais de 50 anos.

Artista plástico, gráfico, pintor, escultor, desenhista, performático, iniciou a carreira trabalhando em gráficas em Salvador. Manteve uma produção musical punk-rock, desde o final da década de 1980. Tinha um ateliê no Pelourinho, chamado Sarcófago, onde construiu um caixão para seu descanso e produzia sua arte. Não exibia o rosto publicamente.

Andava pelo Centro Histórico e redondezas vestindo armadura e máscara que criou reciclando materiais, majoritariamente de ferro. O uso das peças de proteção, dizia ser para se defender dos maus-tratos que costumava sofrer por ser diferente.

Na mostra, há peças de seu arsenal de defesa – duas máscaras e um tridente – e pinturas a óleo, de resultado impactante, colorido e expressivo, às quais se dedicou nos anos finais.

Jayme Figura, óleo sobre tela. Foto: Divulgação

José Adário dos Santos (Salvador, BA, 1947) é um dos mais célebres ferreiros de santo de Salvador, atividade em vias de extinção, mas de suma importância na constituição do repertório iconográfico afro-brasileiro: instrumentos musicais, utilitários de casa e ferramentas de terreiro. Em atividade desde os 11 anos, José Adário é mais conhecido como Zé Diabo e sua produção, de mais de 60 anos, é elegante e de grande apuro estético. Mantém um ateliê na Ladeira da Conceição da Praia, no Centro Histórico de Salvador.

Em 2021, teve seu labor registrado e disponibilizado online em um projeto da Fundação Gregório de Mattos. Foi tema de uma grande mostra individual na capital baiana, em 2023, e tem estado presente em diversas exposições em museus brasileiros, americanos e europeus. No Panorama, está representado por um conjunto de sete esculturas que se referem a entidades das religiões de matriz africana.

Rebeca Carapiá (Salvador, BA, 1998) fecha o grupo de baianos. Única mulher, é formada em Artes Visuais e vem da cidade baixa de Salvador. Trabalha, principalmente, com ferro e cobre, mas diferentemente dos ferreiros tradicionais, atinge leve e delicada estatuária, que se aproximam de uma escrita espacial.

Para a mostra, trouxe uma grande peça comissionada que remete a uma palavra-frase simbólica e sinuosa, escrita em aço e cobre; uma escultura que se impõe delicadamente no espaço expositivo.

MARANHENSES

Rop Cateh - Alma pintada em Terra de Encantaria dos Akroá Gamella (MA, 2024) é um coletivo que estreia sua produção artística nessa mostra. Akroá Gamella é um povo indígena da baixada maranhense que foi praticamente dado como extinto, mas que, desde 2013, atua ativamente no reconhecimento de sua identidade, na resistência cultural e na retomada de suas terras.

A partir de conversas dos curadores com membros do conselho da comunidade e o Coletivo Pyhan (grupo de comunicação do povo Akroá Gamella), foram chamados dois artistas maranhenses que tinham laços com o território e práticas relacionadas às questões da exposição para participar desse processo criativo, Gê Viana e Thiago Martins de Melo.

Focaram na vivência e documentação da celebração principal da etnia, o ritual de Bilibeu – um encantado representado por um boneco esculpido em madeira e retinto como o breu. Ele concede fertilidade à terra, aos animais e às mulheres e é cultuado todos os anos numa liturgia que sincretiza elementos do catolicismo, dura quatro dias e tem como ápice uma caminhada em que os homens personificam cães de caça em busca de comida e bebida para oferecer a São Bilibeu.

O coletivo produziu um vídeo, fotografias, colagens manuais e pinturas, que compõem um grande painel multimídia exposto na mostra.

Zimar (Eusimar Meireles Gomes, Matinha, MA, 1959) comparece com um conjunto de dez máscaras de um personagem do bumba meu boi, o cazumba. Zimar é assíduo brincante do boi, chefe da Turma de Cazumba do Bumba Boi Flor de Matinha e há 24 anos, desde que uma máscara feriu seu rosto, as confecciona. O personagem que ele persegue, cazumba, é uma espécie de bufão, que surpreende, espanta, dança com a morte e usa sua feiura para assustá-la. E Zimar confessa que suas máscaras são coisa feia, que ele acha bonita.

Primeiramente feitas em madeira, num estilo que chamam de queixo, atualmente são feitas com capacetes derretidos e seguem os moldes de uma máscara clássica, no formato do rosto, com encaixe para olhos e boca. Feia ou bonita, depende de seu olhar. Mas uma coisa é certa, ela vai capturar seu olhar.

Em 2022, o Centro Cultural Vale Maranhão organizou uma mostra de máscaras do artista em São Luiz (MA), que este ano foi levada ao Museu da República, em Brasília (DF). Da mostra, um catálogo está disponível online.

Zahy Tentehar (Colônia, Reserva Indígena Cana Brava, MA, 1989) fecha o grupo maranhense. Atriz da segunda temporada da série "Cidade Invisível" e ganhadora do Prêmio Shell 2024 de Melhor Atriz com o solo "Azira’i", é uma multiartista radicada no Rio de Janeiro, desde os 19 anos. Seu trabalho no teatro é uma homenagem à sua mãe, a primeira mulher pajé da reserva indígena onde nasceu.

Da etnia Tenetehára-Guajajara, foi alfabetizada na língua ze'egete ("a fala boa"), da família tupi-guarani, e é nela que produz seu trabalho autoral. Além do solo para o teatro, possui três obras audiovisuais – “Aiku’è zepé” (Ainda r-existo, 2021), “Karaiw a’e wà” (Os civilizados, 2022) e “Ureipy” (Máquina ancestral, 2023). O trabalho mais recente, uma vídeo-performance de ficção científica, está na exposição. Em todos eles, uma inquietação a respeito de ancestralidade, memória e futuro se faz perceber.

 Atriz Zahy Tentehar apresenta uma vídeo-performance de ficção científica. Foto: Divulgação

DO CEARÁ

Jonas Van (1989, Fortaleza, CE) se identifica como artista transviado cearense e cozinheiro. Mora, estuda e cria, desde 2019, em Genebra (Suíça), onde, em 2022, ganhou uma premiação com uma instalação que questionava o movimento e a velocidade da luz, “Moving Towards Us”.

Juno B. (1982, Fortaleza, CE) se considera um artista transdisciplinar não-binário. Mora e cria em São Paulo. Participou de residências na Bolívia, Suíça e no Brasil. Unidos por questões como subversão de gênero, transgressões de linguagem, experimentações e discursos não-hegemônicos, o duo atua em conjunto há algum tempo.

Para o evento, a colaboração foi a videoinstalação imersiva "Visage" (2024), uma experiência que combina esculturas e mobiliário feitos com peças automobilísticas, luz, som e vídeo, e propõe um jogo entre o cinema drive-in e o carro como máquina do tempo.

Nesse contexto, o mito popular nordestino do Pavão Misterioso, com referências à literatura da escritora afro-americana Octavia E. Butler, surge como um ser capaz de voar na velocidade da luz e se tornar visível para aqueles que estão em avançado processo de transição.

PARAÍBA

Marlene Almeida (Bananeiras, PB, 1942), uma grande dama das artes plásticas abstratas paraibana, fecha a constelação nordestina no 38º Panorama. Desde a década de 1970, a artista pesquisa a manufatura de tintas à base de corantes naturais, mapeia sítios de afloramentos de pigmentos minerais e organiza mostruários de cores. Atuou ativamente em sua pesquisa artística, mantendo um ateliê em casa, em João Pessoa (PB), participando de atividades e oferecendo cursos em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Paraíba e em Pernambuco. A pesquisa sobre pigmentos naturais ressoa o ativismo ambiental e se relaciona com uma busca pelas origens, a terra, os minerais, sob nossos pés.

Em maio, esteve em cartaz na Galeria Marco Zero com a individual "Histórias da Terra", com obras inéditas e trabalhos antigos. As obras em cartaz no Panorama são "Derrame" (2024), uma instalação com recortes de algodão cru tingidos com pigmentos originários do basalto, localizada próxima às esculturas de mestre Nado, e "Tempo voraz II" (2012), que esteve na individual do Recife, e faz referência a questões existenciais como a fugacidade da vida.

MESTRE NADO

Na abertura da exposição, Mestre Nado mostrou para que servem suas esculturas e, com sua filha, Sara Cordeiro, anunciaram que as atividades do Instituto Mestre Nado serão intensificadas, até 2025, quando serão comemorados os 80 anos do artista.

Em meio ao burburinho da abertura da exposição 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus, sábado (05/08), em São Paulo, um casal passeava tranquilamente, seguidos por um homem com uma câmera na mão. Vestidos com a mesma estampa, da marca pernambucana Rush, que reproduz o padrão das criações do célebre artista cearense do couro mestre Espedito Seleiro. Era Mestre Nado (Agnaldo da Silva, Olinda, PE, 1945) e sua filha, Sara Cordeiro, conferindo “in loco” a representação do artista olindense na mostra, enquanto seus passos eram registrados para um futuro documentário.

Em 2025, Mestre Nado completa 80 anos e a data não vai passar em branco. Quem avisa é Sara, que além de filha do mestre, é educadora, percussionista (das peças de barro do pai) e presidente do recém-aberto Instituto Mestre Nado, no sítio histórico de Olinda.

Eles contam que o mestre mantinha o Instituto no galpão, ao lado de sua casa, no bairro de Caixa D’água, mas esse ano, as atividades começaram a migrar para esse novo espaço, que ainda terá a inauguração oficial anunciada. Atualmente, além dos fornos e da produção e venda de peças, no Instituto ocorrem ensaios de uma orquestra de instrumentos de barro, que reúne 20 estudantes da rede pública da cidade, e encontros de um grupo de idosos para aulas de cerâmica.

Sara tem uma lista de, pelo menos, mais seis ações que quer iniciar com frequência regular no Instituto, além de tornar o local a referência para a salvaguarda do trabalho e da história de Mestre Nado.

As ações são um curso de cerâmica como geração de renda, uma atividade terapêutica com cerâmica para pessoas com deficiência, pesquisas universitárias sobre os instrumentos de barro, um grupo de mamulengos de barro, aulas-espetáculos para escolas e a montagem de uma representação teatral para a comemoração dos 80 anos do Mestre.

“Fora isso, já estamos realizando curso de modelagem, recebemos pedidos para aulas-espetáculo em escolas públicas, comercializamos as peças e realizamos saraus”, contou.

"A forma do som II argila", de Mestre Nado. Foto: Divulgação

MAIS MÚSICO

O Mestre não contém sua felicidade de estar presente em mostras de arte, mas reforça que, na verdade, hoje, se identifica mais como músico do que escultor ou oleiro. Depois de circular por toda exposição, discretamente, se aproximou de suas esculturas, abriu seu alforje e sacou sua flauta para começar um show improvisado.

Tocou três músicas, duas de Luiz Gonzaga e uma de Alceu Valença, reuniu os visitantes a seu redor, agradeceu os aplausos e a atenção, colocou a flauta de volta na bolsa e seguiu, tranquilamente, seu passeio.

Questionado sobre o tema da mostra, o calor-limite e o aquecimento global, primeiro brincou que entre a vinda de Olinda a São Paulo, o clima havia esfriado. Depois destacou que a preocupação com o meio ambiente é essencial e, por isso, nunca usou substâncias tóxicas e opta por forno a gás em sua produção. Sempre sorrindo e sempre tocando.

CARLOS COSTA, jornalista, graduado pela UFPE, trabalha há mais de 20 anos com arte, cultura, jornalismo e produção de conteúdos, com atuação em empresas e instituições de comunicação no Recife, em Brasília, São Paulo e Madri (Espanha)

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