Renato Valle e a arte política sem miopia
Artista lança livro pela Cepe e está com exposição braꙄil em cartaz no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), aberta no dia 17 de maio
TEXTO Carol Botelho
26 de Maio de 2025
O pessimista mais doce que a arte já moldou tem carreira revista em livro e exposição política
Foto Leopoldo Conrado Nunes
O artista plástico Renato Valle se declara um pessimista. Na arte, expurga esses pensamentos com técnica e sentimento de humildade e ausência de hierarquia como poucos. Como se o ofício fosse por ele moldado como meio de comunicar sua mensagem, invariavelmente preenchida com política, religião e sociedade, com toques de leveza, estranheza e humor. Faz depósito vultoso na educação como forma de acabar de vez com questões grotescas como preconceito, racismo e violência. Os temas saltam aos olhos até do mais alto grau de miopia. E nem seria preciso óculos para enxergar as dimensões gigantescas de suas obras, no sentido literal e conceitual. Nesse mundo onde o estranho torna-se banal, uma boa lente de aumento pode nos fazer enxergar a realidade, ou ao menos o sentido etimológico da palavra banal - sob a posse do senhorio, do senhor feudal. Através da arte, a educação como ferramenta transformadora representa um tijolinho, segundo Renato. Mas, de grão em grão, nos veremos distantes de nossa ainda tão real face colonial.

Com olhos claros, atentos e óculos de grau para ajudar a ver o mundo e, principalmente o Brasil, Renato é figurativista mais que abstrato, prefere o analógico pincel e grafite mais do que os recursos digitais. Mas não abre mão deles, se preciso for. É experimentalista, lida com todo e qualquer tipo de material que lhe possibilite dizer o que quer por meio da imagem, sua maior aliada na comunicação com o mundo.
O que importa é aprender e ensinar, caminho que costuma percorrer, como revela o pesquisador e curador Diogo Dobbin-Todë em texto do livro de arte Renato Valle, lançado recentemente pela Cepe Editora. "O caminho percorrido com gestos, a descobrir traços e texturas, inicialmente solitário e depois sob a breve orientação do artista Francisco Neves, forjou a base de seu conhecimento. E esse saber, adquirido por experiência, permite-lhe mediar a percepção do outro, suscitar possibilidades. A pesquisa individual e intermitente propõe soluções técnicas e liberdade de percursos a quem toma parte de suas oficinas, vivências, residências e tantas ações em que aprender e ensinar foram e são a prática".
Aos 40 anos de trajetória artística, Renato é presenteado com um livro de arte repleto de imagens e pensamentos escritos por curadores e conhecedores do seu trabalho. A obra literária representa um presente que ele achou meio de grego, a princípio, mas depois gostou muito. "Geralmente quem ganha livro é porque está morto. Fiquei com medo", brinca. Brinca e conversa de uma maneira tão simples e acolhedora, digna de um artista e um cidadão que compartilha conhecimento sem hierarquizá-lo.

O livro de artista traz textos de Joana D’Arc Lima, Moacir dos Anjos, Agnaldo Farias, Lilian Maus, Marcus Lontra, Renata Bittencourt, Diogo Dobbin-Todë e Bruno Albertim, além de um rico acervo de imagens de todas as fases do trabalho de Renato. Um rico compêndio para iniciados e iniciantes. "Este conjunto de textos ricamente ilustrados por imagens dos trabalhos do artista permitem ler/ver o texto e ver/ler a imagem nesse duplo exercício da experiência cognitiva do olhar", escreve Joana D’Arc Lima.
Mais de seres vivos que de objetos, o artista os apresenta à imagem e semelhança da deformação que o percurso da vida deseducada os impôs. "Trato da violência sem discutir questões partidárias, mas sim perversão e desumanidade". Afinal, segundo ele, um dia esse líder morrerá. Mas outro tomará seu lugar e a violência seguirá em paz o seu caminho.

Merece destaque o texto de Moacir dos Anjos sobre a série Bandido bom é bandido morto, de 2022, com 20 desenhos em formato de revista. "Os desenhos de Renato Valle apresentam corpos que, justo antes de serem mortos, foram colocados na condição precária em que podiam ser aniquilados, desprotegidos de toda regulação legal que supostamente garante a existência de qualquer um que viva em sociedade. Situação de extrema vulnerabilidade a que alguns (e não outros) são submetidos e que requer, para sustentar-se, a existência e a disponibilidade de mecanismos de controle e submissão seletiva dos viventes. Mecanismos que por séculos estiveram associados ao exercício de um poder soberano que 'fazia morrer' os indesejados (através da pena de morte em variados formatos) e 'deixava viver' os restantes".
EXPOSIÇÃO
Aberta no dia 17 de maio, a exposição que acompanha o lançamento do livro tem um recorte mais sucinto: braꙄil, em cartaz no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). São 12 obras, sendo apenas uma não inédita, sobre o extremismo e o autoritarismo que acompanha o Brasil desde os tempos em que ainda era colônia - se é que deixou de ser. O "s" ao contrário representa o passado doentio que não poderia gerar outra coisa se não um presente e um futuro também adoentados.
Uma das obras expostas tem nome sugestivo: Persistência doentia faz uma atualização da obra do artista francês Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro, de 1827. "Continuamos com o pensamento escravista dessa cena, que só vestiu a camiseta da seleção brasileira nos brancos. Mas é o Brasil de sempre, que insiste nesse comportamento de uma sociedade de castas, hipócrita. Fala-se da Índia, mas, lá, as castas são assumidas por uma tradição religiosa que não consigo entender e se entendesse discordaria”, diz o artista.
Preconceito e exploração, constantes sociais desenvolvidas na infância, somente serão reduzidas quando a convivência entre raças, cores, credos, classes sociais ocupar o lugar de regra, e não o de exceção. "Nossa sociedade é anormal. Quando levantamos questões sobre o porquê de sermos assim, esbarramos na educação".
Quando Renato começou a fazer a série que deu origem à exposição, em 2020, uma lufada de esperança chegou a ocupar sua mente, e a ideia era somente fazer três quadros para acompanhar o lançamento do livro. "Achava que, com a pandemia, o mundo ia se pacificar um pouco. Mas, quando chegou 2022, veio a depredação e em seguida os atentados terroristas aos três poderes da nação. Fiquei muito 'deprê'. Deprê em Debret (risos) e resolvi retomar a série”, conta. "Mas o que a gente viveu foi um extremismo já enraizado na sociedade".
As bandeiras do Brasil ganharam duas "atualizações" - ele prefere do que chamar de "releitura" - por parte do artista. Uma delas aparece com o trecho onde se lê ‘ordem e progresso’ rasgado e pendurado, vandalizado, violentado. A outra, "atualização" da bandeira dos Estados Unidos, vem com um vira-lata se confundindo com a imagem e ganhou o título que ainda é a nossa cara: Complexo de vira-lata. "A primeira bandeira da nossa república foi uma imitação barata da bandeira norte-americana".
O porco Napoleão, personagem de George Orwell no livro A revolução dos bichos, surge marcado a ferro com o título da exposição. Tal como no livro, o Napoleão de Renato representa aqueles que, após tomar o poder, tornam-se tão tiranos quanto os que os sucederam. “Napoleão brasileiro também existe, A república brasileira começa com golpe e daí em diante é golpe sobre golpe. Getúlio (Vargas) cria leis trabalhistas mas entrega Olga Benário, grávida, ao governo nazista, para ser torturada e morta”.
Canudos, Caneca, Direta… e o Brasil não mais resiste (2006), única obra não inédita, se descortina em seus mais 7,73X2,5 metros para lembrar o massacre de Canudos, ocorrido sob o governo do nosso primeiro presidente civil, Prudente de Morais. Deitado sobre fundo branco, como se flutuasse na história esquecida do Brasil, Antônio Conselheiro foi concebido em grafite esfumado com pincel duro e gasto sobre lona.
Um lado mais pop surge nos três mapas do Brasil preenchidos com diferentes materiais tridimensionais, como esculturas em 3D. Nossa eterna república das bananas se veste com a fruta ora verde, obra amarela. Ao lado, as linhas territoriais brasileiras se revestem de um Tecido Social mal-ajambrado, mal-costurado, mal-acabado para mostrar o que somos. “Fragmentado como é nosso território e o que eu sou aqui dentro qual o meu lugar nesse tecido social”. No último, Espelho, espelho meu, o objeto em diversos formatos e tamanhos nos reflete, e nele nos refletimos, fazemos uma auto-crítica. “Fui o primeiro a me ver; não estou apontando pros outros”.
Entre os oito textos que decoram as paredes do Mamam, na Rua da Aurora, o de Renato discorre sobre seu mentor, o pintor pernambucano Zuleno Pessoa. Menos pela pintura em si e mais pelo pensamento. “Zuleno foi quem me ensinou a pensar. Ia a casa dele toda semana e conversávamos muito. Essa minha espiritualidade, de não ficar personificando bem e mal e procurar entender, veio dele”.
Escreve Lilian Maus no livro da Cepe: “Certo dia, tomado por um sentimento de angústia, Renato conta que foi visitar o ateliê de Pessoa, estava aflito com as inseguranças provocadas pela profissão; afinal, como um artista poderia sobreviver nesse mundo miserável? Alguns de seus familiares e amigos mais próximos o aconselhavam a optar por um caminho mais fácil e a abandonar essa história trágica de ser artista, alegando que, se escolhesse isso, acabaria por morrer de fome. O mestre notou a angústia do jovem, e eles tiveram a seguinte conversa:
Zuleno: — Você ama o que faz?
Renato: — Sim!
Zuleno: — Então, qual o problema?
Renato: — É que tem muita gente dizendo que eu vou morrer de fome.
Zuleno: — E qual o problema em se morrer de fome? Muita gente morre de fome no mundo, você será só mais um. As pessoas vão comentar: Sabe quem morreu? Renato!
Morreu de quê? De fome. Qual o problema?”
Pintor, desenhista, escultor, ceramista, experimentalista, afinal, Valle aprendeu sozinho com prática e insistência. “Passava o dia todo desenhando e pintando”. Não nega, porém, influências. “O artista dialoga com Vicente do Rego Monteiro em sua volumetria e clareza compositiva e também se conecta com a clássica elegância de Reynaldo e suas figuras etéreas e impávidas. Entre os contemporâneos, a mórbida metafísica de João Câmara aproxima-se de Renato, que a ela acrescenta um componente político e uma exigência moral que entende a arte como agente de subversão e transformação do mundo”, escreve o curador Marcus Lontra, no livro da Cepe.
Joana D’Arc Lima cita outros tantos: “Reynaldo Fonseca, Vicente do Rego Monteiro, Ismael Caldas, Pablo Picasso — com a série Mulheres na praia, A grávida e O salva-vidas —, Matisse, ou ainda, aqueles artistas de que Valle se apropria literalmente em suas obras, a exemplo de Gil Vicente e Montez Magno. Uma estrutura de sentimento que o liga a seu próprio tempo. O que queremos dizer: Renato Valle não anda sozinho”.

Certa vez, ele andou com Francisco Brennand. Teve com o Mestre da Várzea muitas conversas e trocas de conhecimento. Quando Brennand viu o quadro A filha da Monga, logo perguntou: "Você é o artista, autor desse bebê gigante? Eu conheço essa obra". Brennand a associou ao livro Solaris, do ucraniano Stanislaw Lem, e ao filme homônimo do cineasta russo Andrey Tarkovsky, segundo conta Joana D'Arc no livro de Renato. Assim nasceu Solaris, outro bebê gigante de Renato, que engrenou em uma de suas séries mais perturbadoras, como a obra Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil. "Incomoda a sensação provocada pelo não cumprimento das expectativas, o paradoxo do corpo frágil de uma criança, com as pequenas dobras de sua pele acetinada, seus minúsculos membros, impor-se desse modo sobre nós. O artista volta-se recorrentemente a esse tema sensível das crianças que têm sua infância roubada, quando não sua vida literalmente suprimida. Essa parcela particular de seus desenhos e pinturas, todos eles em grande formato, todos eles representando crianças recém-nascidas, amarradas, em queda, submetidas às piores atrocidades, é um dos capítulos mais fortes da produção artística contemporânea, uma demonstração do poder da imagem na produção de consciência", escreve Renata Bittencourt.
SERVIÇO:
Exposição braꙄil, de Renato Valle
Quando: até 17 de agosto
Onde: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) - Rua da Aurora, 265 – Recife
Horários de visitação: de quarta a domingo, das 10h às 16h
Entrada gratuita
Livro Renato Valle (Cepe Editora)
Preço: R$ 170