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“O grande trabalho foi separar o joio do trigo”

TEXTO Thiago Corrêa

01 de Dezembro de 2013

Fred Navarro

Fred Navarro

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de "Linguagem" | ed. 156 | dezembro 2013]

Fred Navarro cresceu numa casa
no Bairro de Campo Grande, no Recife. Já formado em Jornalismo, arrumou as malas e migrou para São Paulo. No convívio com os colegas de redação, ele descobriu diferenças. As palavras que ouviu da sua babá, e aprendeu a usar para se comunicar nas suas brincadeiras de menino, passaram a ser motivo de risadas no trabalho. A partir de então, ele adquiriu um novo hábito, passou a colecionar palavras que remetiam à sua região. Quando está curtindo uma praia, conversando, lendo ou ouvindo música, ele está, na verdade, caçando palavras. Prática que se tornou trabalho, já dura 21 anos e frutifica com a terceira edição do Dicionário do Nordeste, com mais de 10 mil verbetes.

CONTINENTE Colecionar palavras tem a ver com sua mudança para SP?
FRED NAVARRO É uma prática de exílio. Tive que sair do Recife para que essas palavras ganhassem importância na minha vida. Antes, eu as usava normalmente, mas, quando vim para cá, isso virou um objeto de estudo. Mudei para São Paulo em 1983, vim trabalhar na Folha de S.Paulo e, no meio do caminho, fui parar na revista IstoÉ. E lá, sempre que eu usava expressões típicas do Nordeste, como a “coluna tá troncha” e “ora, pinoia”, era aquela gargalhada na redação. Então, percebi que havia alguma coisa a ser explorada. O riso não era de sarcasmo, de crítica, mas de desconhecimento, surpresa. Havia ali um desconhecimento muito grande e comecei a colecionar essas palavras, cada vez que acontecia, ia anotando, rabiscava num pedaço de papel e guardava.

CONTINENTE Como se deu essa busca por palavras?
FRED NAVARRO Quando saiu a primeira edição do dicionário, eu já estava escrevendo a segunda há muito tempo. A primeira edição, com 2.500 palavras, é de 1998, a segunda, com 5 mil, é de 2004. Veja que se passaram quase 10 anos para a terceira edição, que tem 10 mil verbetes. Ele foi crescendo, à medida que foi sendo escrito; 20% a 30% das palavras da nova edição fui conhecer quando escrevia o livro – ia procurar uma coisa e achava outra. Procurava uma citação para ancorar um verbete e achava outras duas palavras que não conhecia, então ia atrás e confirmava a origem nordestina delas. Foi um trabalho em construção. Parti da minha biblioteca, da minha discografia pessoal. Também viajei muito pelo Nordeste, tenho parentes na Bahia, no Ceará, Paraíba e sou um rato de praia. Então, cada vez que ia, voltava com centenas de palavras novas para checar, pesquisar. O grande trabalho, ao final, foi separar o joio do trigo, muita coisa que parece ser do Nordeste, mas não é. É do Amazonas, de Minas, de Goiás. As fontes foram se multiplicando e o que deu mais trabalho foi confirmar o que não podia entrar.

CONTINENTE Por mais que você se dedique, novos termos surgem e é impossível atingir a totalidade. Isso dá alguma frustração?
FRED NAVARRO Quando vou ao Recife, no avião, já vou colecionando expressões novas, já vou com a caderneta no bolso, porque sei que vão surgir palavras novas. Como Manuel Bandeira falava, o povo é o inventa-línguas. Hoje à noite, em algum barzinho do Pina, alguém está inventando palavra nova. A riqueza vocabular da nossa linguagem é uma no Litoral, outra na Zona da Mata, no Agreste e no Sertão. E, às vezes, elas não se confundem. A classe média de Fortaleza não fala igual à classe média de Juazeiro do Norte. O sotaque, as expressões, os termos são muito diferentes. Assim como a do Recife é diferente da de Petrolina, o sertanejo não fala igual ao pescador. São características próprias de microrregiões. Claro, elas interagem, fazem um conjunto, mas a riqueza vocabular é tremenda.

CONTINENTE Como foi o processo de checagem para saber se o termo é do Nordeste?
FRED NAVARRO É um trabalho duro de jornalismo investigativo, que é checar as fontes, ir aos dicionários tradicionais e clássicos para pesquisar a origem dessas palavras, encontrar referências na nossa cultura popular. Consultei os três dicionários tradicionais, o Aurélio, o Houaiss e o dicionário da Academia Brasileira de Letras. Quando eles identificam, a sigla do estado está registrada lá. Quando não conseguem identificar o estado, eles colocam a região. E, quando não conseguem identificar a região, colocam como brasileirismo. Muitas dessas palavras eu chegava achando que eram do Nordeste e a fonte era Goiás. Além disso, nossa cultura popular registra essas palavras com abundância; você pega 10 cordéis de Caruaru, Campina Grande ou do Crato e vai encontrar dezenas de termos em comum, e outros não, são específicos do Ceará, específicos da Paraíba. E eu ia fazendo a triagem. Meu trabalho foi tentar ver o que era realmente de onde. Isso deu trabalho. Meus critérios foram jornalísticos, de checar a veracidade da informação, de procurar uma citação digna de confiança.

CONTINENTE É normal que novos termos sejam criados e muitos acabem se perdendo. Qual o critério para que ele se torne um verbete?
FRED NAVARRO Useis dois critérios. Primeiro, o registro em alguma forma de manifestação cultural, pode ser Lia de Itamaracá, pode ser Xico Sá ou Chico Science. Ser registrado por alguém é uma evidência de que esse termo continua vivo, não caiu em desuso, não é um ósculo da vida. O critério para mim é aquilo que está vivo. O que é representativo para a comunicação, o povo adota, assume como seu. Inclusive, nós temos centenas de palavras de origem estrangeira, na língua portuguesa. Se essas palavras foram incorporadas, é porque elas tiveram uma utilidade, uma função na comunicação das pessoas. O critério é a utilidade, às vezes, entra a beleza, a singularidade, o humor, mas tem que ser útil, funcional.

CONTINENTE O Dicionário do Nordeste é resultado de um trabalho anterior, que tinha como título Assim falava Lampião. Essa primeira versão não foi bem-recebida no Rio Grande do Sul por conta da antipatia dos gaúchos com Lampião. Como foi essa história?
FRED NAVARRO É aquela velha história do desconhecimento. Para eles, a imagem de Lampião é lugar comum, clichê, bandido, bandoleiro, matar criança. Nunca leram Frederico Pernambucano de Melo, nunca leram a grande e boa literatura sobre Lampião já feita no Nordeste, nunca viram Baile perfumado. A região Sul e o Nordeste são as duas regiões mais nacionalistas. O Rio Grande do Sul já tentou se separar do Brasil, assim como nós. Lampião era músico, inventou um ritmo musical, inventou o xaxado com as marcações dos fuzis e alpercatas, para comemorar as vitórias sobre os policiais, compôs mais de 18 músicas, inclusive Mulher rendeira. Lampião tinha todo um lado fascinante junto ao bandido vingador, que merece atenção. Esse fato reflete um pouco nosso distanciamento cultural, eles não se interessam pelos livros de Jorge Amado, as músicas de Fagner. Para eles, tudo isso é o lado pobre, o lado sem educação, sem instrução e estrutura do brasileiro. É preconceito, é falta de informação e ignorância deles. Mas, quando tiram férias e conhecem o Nordeste, eles voltam todo ano.

CONTINENTE Um exemplo que sempre é citado no campo da linguística é o dos esquimós, que possuem mais 100 termos para designar o branco. Esse exemplo nos dá uma ideia de que a língua se desenvolve de acordo com as necessidades e características de cada sociedade. A partir do seu trabalho, é possível entender o Nordeste?
FRED NAVARRO É possível conhecer o Nordeste através dele. Vejo o dicionário como um manual de tradução do Nordeste para outras regiões do Brasil e outros países. Porque a força da cultura popular nordestina está na diversidade, na capacidade que tem de expressar a voz do homem da rua e do rico de Boa Viagem ao mesmo tempo. No cordel, na linguagem sofisticada de Elomar, na invenção de um Tom Zé, Francisco Dantas. Essa diversidade cria uma riqueza vocabular que expressa o meio ambiente em que vive o homem nordestino. A chave para entender o dicionário é a relação do homem com a natureza, é da sua relação com a natureza que o vaqueiro, o pescador e o canavieiro tiram a maior parte dessas expressões. Muitas delas foram herdadas de Portugal e adaptadas ao meio nordestino. Isso aconteceu em todas as regiões do Brasil, não só no Nordeste. O número de palavras que o vaqueiro tem para designar o boi e que o pescador tem para falar do barco são equivalentes às do esquimó com a neve. O mesmo peixe, no Brasil, tem 18 nomes diferentes. Essa riqueza remete à questão da globalização. A globalização passa réguas nas culturas, mas ela localiza e destaca as culturas com base nessa força popular. Não são culturas que inventaram as coisas artificialmente, são culturas enraizadas, com história, as histórias da nossa linguagem remetem ao tempo medieval português, aos romanos, à própria origem do latim. É uma língua que soube acoplar essa história ao meio ambiente e ao povo.

CONTINENTE No dicionário, há muitos páginas com verbetes relacionados a sexo. Isso é um reflexo da importância que o tema tem no Nordeste?
FRED NAVARRO Ele não entra como item especial, tem tantos termos quanto comidas e árvores. Mas a importância dos termos chulos, com a picardia e a sacanagem, tem a ver com o bom humor do nosso povo. Você só encontra isso, no Brasil, na gíria carioca. A linguagem falada no Amazonas, no Pantanal, no Sudeste e no Sul é muito careta, muito conservadora, sob esse ponto de vista. Só o Nordeste e o Rio de Janeiro têm essa expressão tão rica, com o tom da brincadeira, da sacanagem, da provocação. Mário Souto Maior já publicou o Dicionário do Palavrão com 500 e tantos verbetes. 

THIAGO CORRÊA, jornalista, mestre em Teoria Literária e integrante do coletivo Vacatussa.

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