Apesar da popularização dos estudos acadêmicos sobre o palhaço nas universidades brasileiras ser um fenômeno relativamente recente, ocorrido mais fortemente a partir dos anos 2000, essa figura está presente desde os primórdios da arte teatral ocidental. De Aristófanes a Beckett, passando por Shakespeare, os indivíduos deformados, deslocados e desbocados povoam as mais diversas obras da dramaturgia, geralmente com o intuito de despertar no público uma reflexão sobre nossa frágil condição humana e sobre o disparate de encarar este mundo como algo racional. Por outro lado, nas tribos nativas norte-americanas, o palhaço está associado à figura do xamã que, igualmente aos bufões e bobos existentes na dramaturgia erudita ocidental, tem como propósito a “busca de visão”, isto é, a compreensão de algo sob outros pontos de vista que não os ordinariamente utilizados pelas pessoas da comunidade, e que, quando revelada, pode desencadear um processo de transformação coletiva.
Tomando como premissa que a arte do palhaço consiste em despertar no outro um novo ponto de vista sobre algo, pode-se depreender que os cursos de formação de palhaços, no âmbito teatral, estimulam a “busca de visão” dos iniciantes. Para tanto, muitos mestres na arte da palhaçaria lançam seus aprendizes em um processo de autoinvestigação, visando uma transformação pessoal, ou seja, um novo olhar sobre si mesmo, para que o palhaço seja capaz de despertar nas pessoas da plateia outros modos de olhar para si e para as relações sociais. Nessa linha, encontram-se nas pesquisas do francês Jacques Lecoq (1921-1999) e do brasileiro, idealizador do grupo Lume, Luís Otávio Burnier (1956-1995), algumas referências fundamentais, quando se pensa em formação de palhaço no teatro.
Por habitar o universo da comédia, é comum, nas oficinas de formação, que o aspirante a palhaço seja estimulado a entrar em cena com o objetivo de causar riso na plateia, e muitas vezes é o fracasso no desempenho dessa função que dá as diretrizes para a construção do palhaço pessoal. Quando o aprendiz “fracassa”, e percebe que não é tão imbatível e autoconfiante como gostaria, sua vulnerabilidade vem à tona; nesse estado, ele tem a possibilidade de ver o ridículo de si mesmo, e o riso se torna decorrência da consciência da loucura que é querer se levar a sério. A dessacralização da suposta majestade humana é obra do palhaço.
Todavia pode ocorrer o fato de o aprendiz se fixar em truques com o único propósito de fazer o público rir, independentemente da função de despertar outra consciência sobre si e sobre as relações e padrões sociais. Há também os que traduzem o “fracasso” humano como uma maneira desastrada de ser, levando o palhaço a tropeçar, cair ou derrubar coisas pelo caminho, forma comumente adotada nas tradições circenses. Também pode acontecer a associação do estado de vulnerabilidade com a ingenuidade infantil, e alguns palhaços moldam sua voz e gestos na tentativa de representar uma criança. Como é impossível determinar o que é certo ou errado na forma de atuação do palhaço, pois isso seria ir de encontro à anarquia intrínseca a esse ser que relativiza toda e qualquer norma de conduta, cabe ao aprendiz fazer a escolha de sua linha de trabalho.
Como pesquisadora que endossou alguns trabalhos acadêmicos sobre a arte da bobagem, embrenhando-se nessa prática como atriz, diretora e pedagoga, entendo que um palhaço não é necessariamente um indivíduo com uma patológica falta de coordenação motora, tampouco uma criança, trata-se de um artista que, por mais inexperiente que seja em seu ofício, possui alguma experiência de vida. Penso que, ao reverenciar o palhaço como um idiota, deixa-se de lado seu potencial de sabedoria, comparável ao de um xamã. Esse é o ponto de vista defendido pela canadense Sue Morrison, que desde os anos 1980 forma palhaços em diversas partes do mundo com o método Clown through mask (Palhaço através da máscara), criado por seu mestre Richard Pochinko (1946-1989).
Pochinko desenvolveu um sistema de exercícios que une princípios do palhaço europeu, sob o viés de Lecoq, e dos xamãs das tribos indígenas norte-americanas. Apesar da diversidade de sistemas de crenças dos nativos, há um conceito fundamental que as une, o Princípio de Totalidade, que aceita todos os aspectos do ser. Nessa postura inclusiva, não há como o palhaço ser engraçado ou triste, pois ambos os estados compõem a natureza humana. A função do palhaço, assim como a dos xamãs, é comunicar aquilo que a comunidade precisa saber e isso pode nem sempre ser engraçado, o que não significa, porém, que seja errado associar o palhaço ao riso, quer dizer apenas que a risada pode nem sempre ser aquilo que é solicitado.
Se aceitarmos que o palhaço é alguém com uma consciência expandida de si e da comunidade em que vive, obtida pela sua experiência de vida, temos que ele não só não é uma criança, como não é para crianças. O estado de vulnerabilidade pode ser aqui relacionado com a honestidade, abertura e entrega com que o palhaço entra em contato com aquilo que sabe e com a forma com que compartilha essa experiência. Sendo assim, minha escolha foi entender o palhaço como um ser humano que pertence a este mundo, que possui vivência e que tem o propósito de comunicar algo que promova a transformação de si e do público.
MARIANNE CONSENTINO, professora do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da UFPE, mestre em Artes e doutora em Artes Cênicas.
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