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Comédia: Inocentes palhaçadas

Possivelmente a mais conhecida de suas versões, a figura cômica que enternece e toca as emoções profundas está no imaginário da cultura ocidental

TEXTO Fernando Athayde

01 de Outubro de 2014

Espetáculo 'Olga, a pulga'

Espetáculo 'Olga, a pulga'

Foto Giuliana Cerchiari/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 166 | out 2014]

As luzes que ficam sobre o palco do Teatro Hermilo,
no Bairro do Recife, são acesas gradualmente e vão, aos poucos, revelando uma grande lata de lixo cenográfica com duas pernas e dois braços para fora. Com uma dificuldade descomunal, os membros se retorcem e gesticulam freneticamente, para remover a tampa da lata e revelar mais uma porção de sucata. Depois de muito esforço, finalmente, dá as caras uma simpática palhaça que, coberta até o pescoço por sacos de lixo e embalagens vazias, apresenta-se ao público e luta contra o próprio corpo para fazer suas pernas tocarem o chão. É o início do hilário espetáculo Olga, a pulga, de Tereza Gontijo, a palhaça Guadalupe, apresentado na segunda edição do Festival Palhaçaria, que ocorre bienalmente na capital pernambucana.

O número, executado com maestria e carisma pela palhaça, transformou as trêmulas arquibancadas de metal do teatro numa máquina do tempo, que viajou pelo íntimo de cada um dos presentes, liberando suas emoções mais singelas. Algo como uma criança tecendo os primeiros contatos com as coisas do mundo. Ainda que o número de Tereza Gontijo tivesse sua primeira metade concentrada na brutal busca da palhaça por satisfazer a necessidade natural de se alimentar, impedida pela pobreza de alguém que vive numa lata de lixo, é certo que o desenrolar do espetáculo também instigou nos presentes uma discussão interessante sobre até onde vai a máscara do palhaço.


Mesmo sem máscara, o personagem Chaves apresenta a clássica situação do clown.
Foto: Divulgação

Ao ver a palhaça Guadalupe fixando de novo e de novo sua perna esquerda num lugar, sem perceber que enquanto ela o fazia, a perna direita, por sua vez, saía da posição adequada, como não lembrar daquele que é, possivelmente, o maior equalizador sociocultural da América Latina, o seriado El Chavo Del Ocho, ou, em português, Chaves? Ainda que, nos episódios da série, o diretor e protagonista Roberto Gómez Bolaños não estivesse mascarado, ou seja, sob o marco simbólico de um nariz vermelho, é impossível não o classificar como um palhaço. Presente na memória das mais distintas gerações de brasileiros, Chaves atingiu uma insuspeita popularidade no país. No pátio da vila onde morava, o garoto Chaves sucumbia à fome, à solidão e aos mais diversos tipos de situações em que o seu próprio corpo aparentava ser um inimigo – uma representação clássica do clown.


Como não ver na atuação de Woody Allen os elementos do palhaço atrapalhado e algo melancólico?. Foto: Divulgalção

Assim como Chaves, há outros palhaços contemporâneos que não envergam, necessariamente, o acessório clássico. A figura do clown, definida na relação que ele tem com o mundo que o cerca, está presente simbolicamente em mais obras do que aquelas tradicionalmente classificadas como “de palhaço”. Mais que isso, as dinâmicas e os tipos, como o branco e o augusto, aparecem em mesma proporção. É o caso de uma das maiores obras da comédia cinematográfica Débi & Lóide, de 1994, dirigida pelos irmãos Farrelly.

Um clássico perdido em meio ao preconceito iminente que o título do filme traz, Dumb & Dumber (no original) é não somente um road movie hilário da primeira à última cena, mas também uma sátira à sociedade americana tradicional. Protagonizado por Jim Carrey e Jeff Daniels, o longa conta a história de dois sujeitos sem família, lisos e frustrados que, simplesmente, não conseguem se adaptar à sociedade em que vivem. Como é característico dos palhaços, a dupla é impulsionada pelo motor do desejo e viaja o país inteiro para disputar o amor de uma mulher que mal sabe da existência deles. Loyd, interpretado por Carrey, é o clown branco, que debocha, sacaneia e faz pouco do Harry vivido por Daniels, o augusto que nunca deixa o amigo na mão, não importa o que aconteça.


Os tipos de palhaços branco e augusto estão claros na comédia Débi & Loide.
Foto: Divulgação

E se Débi & Lóide nunca teve a atenção merecida, há outros palhaços que atingiram a simpatia mundial, mesmo distantes do estereótipo. É o caso de Woody Allen, que, no início de carreira, dirigiu e estrelou obras como Bananas, de 1971, e O dorminhoco, de 1973, quando era frequente usar o corpo como uma de suas principais ferramentas para arrancar os sorrisos do público, algo que foi gradualmente vertido nos roteiros perspicazes e psicanalíticos que o consagraram.


Possivelmente, o maior palhaço do século 20, Charles Chaplin elevou ao
mais alto nível a bondade e inocência do clown. Foto: Divulgação

Outro caso curioso está associado à quarta temporada da série de TV norte-americana Seinfeld, no capítulo intitulado The opera, que gira em torno da exibição da ópera Pagliacci, em Nova York. Nele, a astúcia do texto se complementa com a destreza física do ator Michael Richards, intérprete do coulrofóbico personagem Kramer, amedrontado com a imagem do palhaço Canio, protagonista do espetáculo. A grande sacada está no fato de que Kramer é, como fica bem evidente ao longo das nove temporadas do seriado, um clown sem máscara. Ou seja, um palhaço tão inocente… que tem medo de palhaços.

Surgida da ingênua e astuta aura cômica que envolve o clown, a sensação de despir-se das obrigações da vida adulta, para reconhecer que o que resta é apenas o desejo, alivia o peso da passagem dos anos. A ingenuidade transmitida pelos gestos do palhaço, ainda que inicialmente remeta a uma volta no tempo, não nos reduz à infantilidade, mas à essência do bem-estar. Ao final de Luzes da cidade, de 1931, estrelado por Charles Chaplin, possivelmente o maior palhaço do século 20, quando a florista, antes cega, reconhece o seu grande amor pelo toque da palma da mão, o que está sendo demonstrado ali é algo distante das piruetas, pantomimas, sátiras e críticas sociais. É uma pequena amostra do que é, de fato, dar um sentido à vida. 

FERNANDO ATHAYDE, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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