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Palhaço: O riso necessário

Figura que remete aos antigos bufões e ao bobo da corte, o clown ocupa lugares simbólicos na sociedade, como o de ser aquele a quem não é vetado dizer a verdade e ridicularizar os poderosos

TEXTO Fernando Athayde

01 de Outubro de 2014

Foto Ana Carolina Cordovano

Desde que o mundo é mundo, a imagem de alguém que arranca gargalhadas dos outros é algo presente na vida das pessoas. Tão humano quanto a submissão à moral e a busca pela felicidade, o riso é uma necessidade. É, sobretudo, o agente catalisador do intercâmbio entre a paz de corpo e alma e o cotidiano humano. O responsável por definir essa relação é justamente aquele que faz graça e, com ela, nos tira da realidade mecânica dos dias e nos leva a um estado de descontração. É o palhaço. Pode até parecer estranho, mas defini-lo não é tão simples quanto parece.

Historicamente, o nariz vermelho, a face pintada de branco e os sapatos desproporcionalmente grandes, responsáveis por ilustrar popularmente essa distinta figura, são aspectos muito recentes. Orgânico, ele não apenas teve sua aparência e atitude modificadas pela ação do tempo, como nem sempre se chamou palhaço. Demarcando um possível período para seu surgimento, regressamos à Antiguidade, quando as primeiras civilizações foram forjadas sob o impacto da criação da escrita cuneiforme e o registro inicial de suas culturas.

Naquela época, era comum, não só em meio aos povos surgidos entre os rios Tigre e Eufrates, mas também no extremo Oriente e na África, a presença de homens desfigurados, aleijados, corcundas e portadores de todo tipo de deformidade, que saíam pelas ruas entretendo e divertindo o povo. Eram os chamados bufões, os mais distantes ancestrais do palhaço de que se tem notícia. A despeito de sua aparência grotesca e repugnante, o bufão demonstrava conhecimento sobre o mundo e a vida, e inseria seu humor na sociedade, através de ácidos comentários sobre tudo e todos. Por serem feiosos e desfigurados, eles nunca eram levados a sério, sendo tratados como loucos faladores de insanidades.

Graças a esse comportamento, uma prática socialmente aceita, os bufões tinham plena liberdade para expor quaisquer verdades a quem quer que fosse, mesmo aos regentes. Embora suas palavras pudessem ser realistas e agressivas, ninguém os levava de fato a sério, pois que os enxergava como fonte de divertimento inconsequente. Ao contrário do palhaço contemporâneo, que demanda o conhecimento de uma linguagem artística, os bufões interpretavam seu papel a qualquer momento. Não havia o tempo de atuação ou performance, aquilo que lhes vinha à mente era o que a boca falava.

GARGALHADAS NA CORTE
Muitos bufões deixaram sua marca na história. Alguns deles, de tão carismáticos, chegaram a obter prestígio suficiente a ponto de viverem na corte, divertindo e proporcionando gargalhadas aos reis e nobres. Em meio às transformações que levaram o mundo antigo a adentrar na Idade Média, acabaram vertidos na imagem que hoje nós reconhecemos como a do bobo da corte. Suas roupas, muitas vezes sátiras das próprias vestes reais, em que o chapéu pontudo e disforme parodia a coroa, representam a reconstituição da realidade a partir de um referencial mais cômico, menos refletido na moral e nos bons costumes. Portanto, a essência do que viria a ser o palhaço.


É comum à comédia a presença, às vezes antagônica, de dois
palhaços em cena. Foto: Reprodução

Um caso interessante de como os bufões se tornaram personagens históricos é o de Yu Sze, que costumava acompanhar o imperador chinês Shih Huang-Ti, famoso por construir a Muralha da China, no século III a.C. Conta a lenda que, após o término da colossal obra, o monarca decidiu que ela não tinha ficado adequada e ordenou a todos os seus servos que realizassem alguns reparos ao longo dos 21 mil km da edificação. Um trabalho desse porte, ainda por cima há mais de 3 mil anos, levaria inevitavelmente consigo a vida de muitos dos pobres operários chineses.

A ordem aterrorizou a população local, e só não se concretizou por causa da astúcia do bufão Yu Sze, o único a ter coragem de expor a verdade a Shih Huang-Ti, que recuou na ideia megalômana. Não sabemos o que Yu Sze fez para convencer o imperador, mas chega a ser irônico que tenha sido por intermédio de um sujeito, cuja posição na sociedade era caracterizada justamente por despertar o desprezo das pessoas, que muita gente escapou de morrer sob desumanas condições de trabalho.

Muito tempo depois, já no século 14, foi a vez do turco Nasreddin Hodja fazer história. Contemporâneo do temido imperador Tamerlão, que muito sangue derramou em meio à conquista de diversos territórios no Oriente Médio, o bufão aparentemente era o único capaz de lhe falar a verdade – e com muito bom humor. Andarilho, passou a vida perambulando pelas ruas de vários distritos do que hoje é o território turco e se tornou uma figura cultuada no país por sua sabedoria e irreverência. São tantos os contos e causos que o envolvem, que todo ano é celebrado o Festival Internacional de Nasreddin Hodja, que acontece entre 5 e 10 de julho, na cidade de Aksehir, na Turquia. O evento mantém vivo, através das mais diversas linguagens artísticas, o espírito do bufão sábio, que tinha o núcleo de seu humor baseado numa abordagem fabulesca da vida, em que toda piada acabava sempre numa lição de moral. No fim das contas, uma das características principais do palhaço acabou se tornando a exposição da verdade através do riso.

O ARLEQUIM
Se, inicialmente, podemos retratar como ancestral do palhaço contemporâneo a satírica e disforme figura do bufão, é preciso compreender que tal herança se transformou com o tempo. Graças aos horizontes desbravados pelo desenvolvimento constante da linguagem e pelas propostas criativas cada vez mais factíveis do ponto de vista da técnica, a arte se apropriou daquele que faz rir.


O picadeiro entronizou o palhaço como elemento fundamental  ao espetáculo de variedades. Imagem: Swin Ink 2, LCC/Corbis/Latinstock

Surgida na Itália, entre os séculos 15 e 16, a commedia dell’arte se configura como uma dissidência do teatro popular da Antiguidade, com raízes incrustadas na comédia dórica grega e na fábula atelana. Uma de suas características principais é que quase todos os atores usavam máscaras, que, por sua vez, determinavam sempre os mesmos personagens. O mais icônico deles, o Arlequim, é uma figura seminal para a construção da imagem que nós temos hoje do palhaço.

Via de regra, itinerantes, as companhias de teatro da commedia dell’arte se adaptavam por onde passavam, com espetáculos erguidos sob o calor de temas como o sexo, a fome, o adultério, o ciúme e a relação entre o rico e o pobre, retratados de forma satírica e bem-humorada. O Arlequim, empregado miserável e aparentemente tolo, destacava-se por suas habilidades acrobáticas e personalidade astuta, vivaz, responsável por conquistar não só o público, mas também o amor da Colombina. A sua roupa, formada por losangos coloridos, é algo que foi herdado pelo palhaço de circo alguns séculos depois. Bem como a vestimenta, também foi o caso da pele branca, traço característico de outro personagem da commedia dell’arte, o Pierrô, um dos poucos que não usavam máscaras. Finalmente, a busca constante pela realização, tanto das aspirações sociais quanto do desejo, também é um traço que fundamentou os caminhos do palhaço na contemporaneidade.

A principal marca deixada na história pelo gênero teatral, porém, não está somente ligada à imagem e às aspirações do palhaço, mas à sua concepção como persona. Anteriormente, os bufões eram uma sátira viva. No íntimo, eram exatamente aquilo que mostravam ao mundo, uma deformação da própria condição humana. Na commedia dell’arte, essa posição passa a ser uma interpretação do ator, em que um homem se envolve inteiramente numa aura de despudor para atingir tal representação, ainda que, fora de cena, ele pudesse tocar sua vida como qualquer outra pessoa.

Em 1768, o sargento da cavalaria britânica Philip Astley fundou a Astley’s Riding School, uma escola de montaria que, durante a tarde, servia de palco para espetáculos equestres protagonizados pelo próprio Astley e sua trupe, nos quais eles desafiavam a gravidade e demonstravam grande equilíbrio ao andarem a cavalo, em pé. O local era um anfiteatro circular, cujo palco de 13 metros de diâmetro configurava um grande diferencial em relação às demais casas da época.


O arlequim, personagem da commedia dell'arte, tinha a função
de divertir a plateia com vivacidade e astúcia. Imagem: Reprodução

Gradualmente, a empreitada foi se tornando um sucesso de público e Astley, um homem de negócios, passou a incrementar ainda mais o seu show. Além dos números equestres, foram incluídos malabaristas, equilibristas, trapezistas e animais além do cavalo. O teor do evento, porém, era regido pela tradicional disciplina militar e precisava de um mecanismo de descontração. É aí que surge a primeira concepção do circo moderno – através da inserção no espetáculo daquilo que é justamente a versão original do palhaço que nós viemos a conhecer.

A princípio, Astley o idealizou como a representação de um camponês que tentava subir no cavalo pela primeira vez, sem obter sucesso, sempre caindo e levantando. Imagina-se que o termo clown tenha aí a sua gênese, sendo uma apropriação da palavra clod, que, em inglês, remete ao homem do campo, o camponês simplório que leva a vida sem excessos. Apesar disso, mesmo a figura do palhaço de circo, como em toda a história que o antecedeu, ramificou-se, expandindo suas possibilidades e significados.

O espetáculo circense de Astley saiu da Inglaterra e ganhou o mundo. Assim, foi só uma questão de tempo para que surgissem novas companhias de circo, responsáveis por popularizá-lo no velho e no novo continente. A própria etimologia da palavra palhaço, derivada do italiano pagliacco – que, por sua vez, vem de paglia, ou, em português, palha – aponta para as peripécias desajeitadas desse personagem. O fato é que os palhaços, por realizarem tantas quedas e tropeços em seus números, tinham de usar uma roupa inteira forrada de palha, a fim de evitar contusões, daí o nome dado a eles.

Durante os séculos seguintes, a função do clown dentro do picadeiro foi desenvolvida ao máximo, garantindo a simpatia e as gargalhadas do público. Chegou a um ponto em que havia um palhaço específico para entreter a audiência, havia números com animais e muitos outros. É claro que esses tipos emergentes tinham características e personalidades próprias, o que viria a gerar uma grande confusão em relação à nomenclatura dada a eles anos depois. Dentre todos, dois nomes se destacaram e até hoje são reverenciados: palhaço branco e palhaço augusto.


A arrogância caracteriza o palhaço Branco, que nesta foto ganha
ares de horror. Foto: Bruce Davidson/Magnun Photos/Latinstock

O branco, inicialmente chamado por Astley de Mr. Merryman, possuía o rosto branco e a roupa de losangos coloridos inspirados no Pierrô e no Arlequim, respectivamente. Dotado de grande arrogância, ainda que não passasse credibilidade intelectual alguma, ele era responsável por discutir com o apresentador do circo sobre toda e qualquer coisa que lhe viesse à mente. Provavelmente, se fecharmos os olhos e imaginarmos um palhaço, a primeira imagem que surgirá é a do palhaço branco. Já o augusto é o clown triste. Normalmente, ele reverencia e segue o branco, que o despreza.

No século 19, a imagem do palhaço constituiu-se naquela que conhecemos hoje: um homem trajado num macacão colorido, de nariz vermelho e que faz todo mundo rir. Além das explicações sociais e comportamentais, vale também compreender os porquês tanto daquele que dedica a vida a proporcionar o riso quanto dos que riem dele.

ALÉM DO PERSONAGEM
“Ouvi uma piada uma vez: um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador, onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: ‘O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo’.O homem se desfaz em lágrimas e diz: ‘Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci.’ Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.”

Essa história foi publicada na obra-prima Watchmen, de Alan Moore, de 1986.

Contemporâneo de Philip Astley e da criação do circo moderno, o ator britânico Joseph Grimaldi é considerado uma lenda entre os palhaços, até hoje. Mesmo sem nunca ter entrado no picadeiro, é lembrado como o principal comediante inglês do século 19. Ironicamente, sofria de uma profunda depressão e chegou, inclusive, a entregar-se ao alcoolismo. Semelhante a ele, o protagonista da ópera Pagliacci, do italiano Ruggero Leoncavallo, é o palhaço Canio, que descobre que é traído por sua esposa em pleno espetáculo e, tomado pela loucura, assassina tanto a mulher quanto o amante.


Conhecido como clown triste, o palhaço Augusto costuma seguir o Branco.
Foto: Vivian Maier/Reprodução

Ambas as situações relatadas, a real e a ficcional, remetem à reflexão sobre o que de fato impulsiona o riso. A relação que existe entre aquilo que o palhaço oferece ao mundo e o que está por trás de sua máscara é uma complexa rede de conexões entre a individualidade do artista e a vida em sociedade. No teatro grego, a representação da tragédia e da comédia em máscaras serve de prenúncio para tal relação.

Em seu belo Livro do palhaço, Cláudio Thebas, que atua como o palhaço Olímpio, criou uma seção chamada “Ser palhaço é…”, que intercala alguns capítulos da publicação. Nela, diversos artistas dão suas interpretações do que representa para eles essa figura. As declarações, bastante divergentes entre si, comprovam quão íntima é a relação de cada um com o nariz vermelho. Uma fala que se repete é a de que um ator, quando interpreta um palhaço, não está vertido num personagem, mas numa interpretação de si próprio.

Ainda assim, o âmago do humor que caracteriza o palhaço não é completamente pessoal. O filósofo francês Henri Bergson, dentro de sua coletânea de textos sobre a comicidade intitulada O riso, define este como uma ação coletiva. Ou seja, para que haja a graça, deve haver, sempre, mais de uma pessoa envolvida. Na prática, a afirmação dele não se refere à quantidade de indivíduos reunidos, mas ao que tange à percepção da vida através do ponto de vista coletivo.

Há graça em determinada situação, quando ela nos leva à ruptura do que Bergson chama de “mecanização da vida”, que nada mais é que uma consequência do comportamento adotado pelo homem enquanto parte de uma sociedade. “Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantém constantemente vigilantes e em contato recíproco certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer”, escreve o autor. No circo, enquanto os trapezistas e malabaristas desafiam a lei natural da gravidade ao conceberem suas proezas, o palhaço simboliza justamente o oposto. Ele não consegue realizar as tarefas mais simplórias. Está sempre sendo exposto, massacrado pelos próprios corpo e desejo. O palhaço é, dessa forma, não um personagem ou um gênero, mas uma relação entre a intimidade de um indivíduo e o mundo em que vive o homem racional. 

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