Do alto dos imponentes paredões, é possível visualizar o tempo em que a região era um imenso lago onde animais viviam em plena liberdade. O lugar tornou-se um importante refúgio para as espécies que buscavam comida em suas margens. “Quando houve a separação dos continentes, as águas do oceano, que depois virou o Atlântico, invadiram a área, aumentando a salinidade do lago e dizimando toda a vida aquática”, conta o professor Álamo Saraiva, paleontólogo que há vários anos estuda as jazidas do Araripe. Calcula-se que milhões de espécies animais e vegetais tenham desaparecido. Seus fósseis, no entanto, foram preservados pelos milênios. No Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, cidadezinha incrustada no alto da Chapada, uma libélula de milhões de anos conserva detalhes de suas delicadas asas.
ÚLTIMAS ÁGUAS
Em termos geográficos, a chapada permite a observação de todas as fases da evolução do continente sul-americano, sendo por isso utilizada como laboratório por diferentes universidades nacionais e internacionais. Na Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Araripe, a natureza sedimentar de seu solo deu origem a centenas de fontes, formando um dos mais importantes aquíferos do país. Entre 50 e 13 mil anos atrás, ocorreram flutuações que resultaram em uma mudança climática, obrigando o homem pré-histórico, caçador e coletor, a migrar. Esse período, que culminou em uma fase seca e fria, fez desaparecer toda a fauna e obrigou os homens a se movimentarem em busca de novas áreas.
Antigas formaçoes rochosas integram repertório mitológico dos índios cariris
A Chapada do Araripe é das poucas porções verdes preservadas pela natureza e se tornou de vital importância para o homem pré-histórico, sendo batizada pelos índios cariris como “O lugar das últimas águas”. Foi trilhando o caminho das águas, perseguindo o leito dos rios secos, nos brejos úmidos habitados pela “mãe d’água”, que o retirante pré-histórico alcançou a região do Cariri em períodos ainda não definidos, deixando sobre rochas documentos em forma de gravuras e pinturas rupestres.
Ossada de dinossauro raro encontrada na bacia de fósseis da Chapa do Araripe
Esses registros, através de seus signos e códigos de comunicação visual, se em boa parte são indecifráveis – como na distante pedra do convento –, em outros casos são facilmente reconhecíveis, como as figuras humanas e as mãos em carimbo impressas nas rochas dos leitos dos rios. No Sítio Santa Fé, raras gravuras de grandes pássaros, pintadas em perspectiva, embevecem os pesquisadores e desafiam a imaginação. “Em toda a área da Chapada do Araripe, esse é um dos raros exemplos em que temos uma gravura que posteriormente foi pintada, unindo num só painel duas técnicas distintas”, diz a arqueóloga Rosiane Lima Verde, que há quase duas décadas estuda os sítios do Araripe.
Nas árvores, as marcas dos comboios no caminho das boiadas
MULTICOLORIDO
Além da natureza e da riqueza arqueológica e paleontológica, a Chapada do Araripe é profusa em cultura popular. Fruto das mais diversas influências, a região é uma vasta combinação de cores e ritmos. Tudo por ali sugere a conexão entre o passado e o presente. Se os antigos habitantes eram exímios artistas – o que pode ser comprovado nos belos painéis com pinturas rupestres –, o mesmo se pode dizer dos atuais moradores, muitos dos quais possuidores de dons artísticos.
Os Karetas de Potengi é um dos últimos reisados a manter tradição das máscaras de madeira
Um desses é Espedito Veloso, mais conhecido como “Espedito Seleiro, o homem das sandálias de couro”. Herdeiro de uma tradição centenária, o artista expressa a qualidade do trabalho artesanal do Araripe. “Meu avô fazia sandálias para Lampião. O próprio Virgulino era quem desenhava as peças e mandava ele fazer”, diz Seleiro, enquanto confecciona o calçado que já virou marca registrada. A partir de novembro de 2014, o mestre terá a trajetória contada num museu em sua homenagem, na pequena Nova Olinda.
O artesão Espedito Seleiro tem sua história contada em memorial
Bem perto dali, na cidade de Potengi, um grupo de reisado resiste e, segundo quem estuda o assunto, é hoje o único representante da tradição de confeccionar máscaras em madeira, outra herança dos índios cariris. O grupo é mantido pelo Mestre Antônio Luiz, um agricultor apaixonado pela arte e que hoje ensina ao seu neto a brincadeira que aprendeu com os mais velhos. Conhecido como reisado de caretas, essa manifestação é um dos símbolos culturais da Chapada do Araripe.
Com tanta riqueza concentrada num só lugar, a Chapada do Araripe revela surpresas. Fotografando para compor o acervo do Museu Mestre Espedito Seleiro, fui conduzido até o alto da Floresta Nacional, onde centenas de árvores conservam, tal qual um estranho museu natural, as marcas gravadas a ferro e fogo pelos comboios que desciam a região em busca de água para o gado, durante o que ficou conhecido como o Ciclo do Couro. Lembrando as gravuras encontradas nas encostas e compondo um quadro quase surrealista, as marcas constituem mais um capítulo desse surpreendente oásis natural e cultural.
AUGUSTO PESSOA, fotógrafo.