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Lutiê: Criador de excelência

A construção de instrumentos, por mais que se aprimore com ferramentas de precisão e pelo domínio de materiais, ainda é mérito do artesão

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Abril de 2015

Pintura representando Antonio Stradivari e seu mítico violino

Pintura representando Antonio Stradivari e seu mítico violino

Imagem Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem especial | ed. 172 | abr 2015]

Por suas propriedades tanto físicas quanto etéreas,
a música atinge nossos sentidos, emoções e espírito. Sua mais primária fonte, porém, quando não é a voz humana, é um objeto que, como qualquer artefato na maioria das civilizações, invariavelmente passa por uma gama infinita de modificações, adaptações e evoluções técnicas ao largo do tempo. Desde a Pré-História, a música faz parte da vida social do homem e, pelo menos desde Pitágoras – que viveu no século 6 a.C., na Grécia Antiga –, sabe-se que um mínimo de proporções matemáticas rege as relações entre as notas musicais.

Essas proporções determinaram certa padronização na confecção de instrumentos, mas apenas na Idade Média a construção deles tornou-se um mister na Europa Ocidental, isto é, uma profissão com segredos próprios, local de trabalho definido e demanda de mercado (menestréis, bardos, clérigos instrumentistas etc.). Os construtores de alaúdes estavam entre os que se propagaram com mais sucesso, e do nome desse instrumento em francês, luth, é que surgiu o nome da profissão: luthier ou, na forma aportuguesada, lutiê – depois aplicado, por extensão, aos construtores de demais instrumentos, mais particularmente aos de cordas (exceto o piano, que nasceu já no contexto da Revolução Industrial).

Os tratados de construção de instrumentos escritos na Renascença e no Barroco permitiram que houvesse uma padronização em sentido estrito, pela qual os lutiês empregavam os mesmos tipos de material, tamanho, traçado e pormenores como moldagem, serragem, envernizamento, secagem, montagem e colagem. Essa consensualização da maneira de se construir um instrumento musical teve particular sucesso, como é notório entre admiradores e profissionais da música clássica no mundo inteiro, na cidade italiana de Cremona, na região da Lombardia, a partir do século 17, onde prosperaram os lutiês mais renomados da história, Nicola Amati (1596–1684) e seus dois alunos mais famosos, Andrea Guarneri (1626-1698) e Antonio Stradivari (1644–1737).

A despeito de minúcias quanto à individualidade do timbre dado pelos vernizes e cordas de cada um desses artesãos, a estabilidade da forma e a alta qualidade do som dos instrumentos cremonenses ganharam conceito em toda a Europa e garantiram ao violino – e ao restante de sua família, que inclui a viola, o violoncelo e o contrabaixo – a disseminação em larga escala e a presença constante em conjuntos e orquestras de câmara, em desfavor da família da violas da gamba, de menor potência e brilho sonoros.

De presença constante, não tardou para que o violino e sua família, hoje chamada genericamente de “famílias das cordas” (ou “cordas friccionadas”), se consolidassem como o consort (conjunto de instrumentos aparentados) ideal para servir de coluna dorsal a um conjunto maior, a orquestra sinfônica, que tomou corpo na primeira metade do século 18 e desenvolveu linguagem própria graças às experiências musicais dos compositores ligados à Orquestra de Mannheim, na Alemanha.

Antes das experiências em Mannheim, dois compositores italianos lideraram a exploração das possibilidades técnicas do violino (solo ou em duos e trios) e da orquestra de cordas, Arcangelo Corelli (1653–1713) e Antonio Vivaldi (1678–1741). O tratamento composicional predominante das cordas à época, como se fossem vozes de um coral, levou à constatação de que elas poderiam crescer numericamente na mesma fração em que os demais instrumentos da orquestra – grosso modo, metade cordas, metade sopros e percussão –, mantendo a coesão sonora de todo o conjunto, como aconteceu mais visivelmente no período romântico, quando o instrumental dobrou de tamanho em relação ao Classicismo.

O CASO DE SAULO
Todo lutiê de cordas friccionadas, hoje, segue as regras deixadas pelos cremonenses. Todavia, poucos tiveram a audácia de dar feições de obras artísticas às suas criações profissionais. Uma exceção foi o pernambucano, radicado em São Paulo, Saulo Dantas-Barreto. Quando cursava a graduação em violino na Universidade Federal da Paraíba, em meados dos anos 1980, ele tomou conhecimento de uma oficina de luteria no Espaço Cultural José Lins do Rego e matriculou-se nela, sob a supervisão do lutiê e arqueteiro Pedro Lima (o lutiê é especializado no instrumento em si; o arqueteiro, no principal acessório das cordas friccionadas, o arco, que requer técnicas próprias de confecção).

Já no início dos anos 1990, Saulo Dantas-Barreto conseguiu apoio do governo paraibano para aperfeiçoar-se em Cremona, onde dominou os últimos segredos do bordo, do abeto e do ébano, as madeiras tradicionalmente utilizadas para se talhar o violino. Dali, começaram a vir as encomendas que o catapultaram à realeza europeia. “Quando aluno em Cremona, recebi bolsa de estudo da Fundação Walter Stauffer e a Família Imperial Brasileira abriu para mim as portas do Palácio Real de Madri”, conta Saulo acerca do pedido que recebeu da rainha Sofia da Espanha. Com a intermediação do falecido príncipe D. Pedro Gastão (D. Pedro IV, na sucessão dinástica nacional), o lutiê foi comissionado para construir o Quarteto da Rainha, um quarteto de cordas completo, que está exposto no Palácio Real de Madri ao lado do Quarteto Real de Stradivarius e pertence ao povo espanhol.


O lutiê Levi Ribeiro trabalha na confecção de instrumentos de cordas. Foto: Divulgação

De volta ao Brasil, Saulo instalou-se em São Paulo, onde trabalhou ao lado de Antonio Carlos Nóbrega, e aprofundou-se na técnica mista de pintura em verniz e marchetaria, que viria a singularizar seus instrumentos. Entre suas realizações mais notáveis, estão os violoncelos temáticos O Aleijadinho, Gregório de Matos, Pássaro de Fogo e Dom Quixote, este, em homenagem a Miguel de Cervantes (1547–1616) e ao desenhista francês Gustave Doré (1832–1883), que ilustrou uma das mais famosas edições do livro ibérico.

RABECAS E VIOLAS
Os instrumentos que não chegaram a um padrão de uniformidade, como o que alcançou a família do violino, nem por isso deixaram de ter suas próprias escolas de luteria. No Brasil, é o que acontece com as rabecas e violas caipiras. Segundo o violeiro e lutiê Levi Ribeiro, estas últimas – cuja variedade é tão rica quanto a das violas portuguesas, suas antecessoras, e tão diversas destas em estrutura, regulagem e formato – abrangem instrumentos de diferentes espécies: “Umas mais acinturadas, outras menos; mais parecidas com violão; com tamanho de escalas que variam de medida; violas dinâmicas, violas de cocho, de cabaça, de fórmica e até parecidas com guitarra elétrica…”

O lutiê paulista acrescenta que, apesar de não existir uma literatura específica para a luteria de rabecas e violas caipiras, os tratados e manuais estrangeiros para violinos e violões fornecem informações úteis e linhas gerais que são adaptadas pelos colegas, as quais se somam às trocas de experiências e ao velho método de tentativa e erro. As oficinas de luteria rabequística e violeirística possuem desde ferramentas básicas de marcenaria (formão, serrote, plainas) até máquinas como circular, desempenadeira, lixadeira e furadeira, sem contar as ferramentas feitas pelo próprio artesão.

Levi passou a dedicar-se apenas às violas feitas de cabaça, fruta que, quando seca, gera uma casca grossa que serve como corpo para o instrumento, deixando para os lutiês o trabalho de se concentrar nas demais partes: o tampo, o braço e a cabeça. Para esse tipo de viola, comenta, o segredo é fixar o braço e colocar uma travessa que impeça um empenamento futuro. Mesmo declarando-se fascinado pela descoberta de cada instrumento que constrói, ele cogita fixar-se exclusivamente na carreira de intérprete: “Hoje, penso em não atender encomendas, pelo meu principal trabalho ser como músico e pelo fato de eu não poder criar uma expectativa (de otimização), já que instrumentos feitos de cabaça são muito despadronizados mesmo”.

FABRICO DA FLAUTA
Um dos instrumentos mais antigos e difundidos da humanidade, a flauta, em sua versão transversa, convive bem com três linhagens de confecção, na atualidade: a moderna (com chaves de metal e partes de metal ou madeira), a barroca (toda ou quase toda de madeira, com orifícios e uma única chave) e a renascentista (toda de madeira e apenas com orifícios), sendo as duas últimas voltadas a instrumentistas especializados em música antiga. A flautista carioca Laura Rónai, professora da Universidade do Rio de Janeiro (Unirio), prefere os instrumentos modernos feitos de madeira. “Mas o que faz a flauta não é o material, é o fabricante. Conheço flautas de prata melhores do que outras de ouro”, ressalva.

Quanto às flautas barrocas e renascentistas, Laura, que faz parte da Orquestra Barroca da Unirio, ensina: “As flautas renascentistas são cilíndricas e tendem a ter uma ou duas divisões apenas. A barroca é em geral cônica, tem três seções e uma chave no pé. As flautas da Renascença eram utilizadas em consorts, o que não acontece com o instrumento posterior. O design da flauta renascentista é mais clean, por assim dizer. Os dedilhados são diferentes; o formato do orifício para o sopro, a furação interna, o corte de bisel e o espaçamento dos orifícios digitais também. E o som, nem falar. A flauta barroca tem som maior, mais focado, mais vivo”.

Contudo, por mais que as técnicas de luteria sigam rigores milimétricos de medidas e um sofisticado controle de maturação ou de maleabilidade de materiais, como o que é exigido pelas cordas friccionadas e pelas flautas modernas (enquanto rabecas, violas e flautas renascentistas pareçam fadadas a serem mais suscetíveis às citadas variáveis), nada supera a sonoridade plena e sutil que a mão de um lutiê logra alcançar, depois de anos de tentativas frustradas, descobertas casuais e apuração do próprio ouvido. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE.

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