Os sons que manifestam a música precisam ser idealizados ou descobertos antes de ordenados em uma composição, que precisa ser interpretada através de instrumentos, para que venha a substancializar. Os instrumentos, por sua vez, caem em novas mãos, mesclam seus sons aos de outros, e guardam em sua estrutura possibilidades e restrições, que ajudam a expressão criativa e a composição de mais peças musicais. Em determinado momento, aprendemos a capturar as canções, através das técnicas de gravação sonora. E, por meio de diferentes suportes de distribuição e teledifusão, é possível hoje que uma melodia seja replicada a ouvidos de todo o mundo ao mesmo tempo.
Enquanto louvamos as figuras dos compositores e intérpretes, frequentemente esquecemos de dar crédito e agradecimento aos inventores dos objetos e técnicas que permitiram a composição, gravação e divulgação da música que amamos.
O som estereofônico foi criado em 1931, pelo engenheiro eletrônico da EMI Alan Blumlein, como uma solução para que o som da voz dos atores em um filme seguisse sua posição na tela do cinema. O mesmo Blumlein desenvolveu os primeiros microfones e o modelo para os discos de vinil em estéreo. Porém, apenas na década de 1960, o formato foi popularizado para o consumo doméstico de música, e, durante três décadas, prevaleceram os formatos de gravação e reprodução monofônicos.
Um dos gênios da gravação foi o americano Phil Spector. Famoso pela técnica Wall of Sound, gravava um número enorme de músicos tocando ao vivo os mesmos instrumentos. Suas sessões de gravação normalmente empregavam microfones cuidadosamente posicionados, que registravam, por exemplo, cinco pianistas, três bateristas, quatro sessões de sopro. O som era processado através de duas câmeras de eco, e resultava em um assalto sonoro que se destacava quando reproduzido nos radinhos e radiolas de ficha da época.
Do outro lado do Atlântico, e com sucesso comercial bem mais modesto, outro produtor estava, à mesma época, conseguindo resultados similares com uma abordagem oposta à de Spector. Joe Meek era um engenheiro de som com experiência de trabalho em estúdios de grandes gravadoras, que passara a compor e gravar sucessos em um pequeno cômodo do seu flat, de maneira independente. Na gravação de músicas como Telstar, dos Tornadoes, foram empregadas pela primeira vez técnicas que são usadas até hoje.
Na época, o mais comum era o uso do menor número possível de microfones para capturar o som dos instrumentos em um ambiente. Meek, porém, não se interessava em gravar sons naturais, e usava quatro ou cinco microfones para registrar uma bateria de perto. Não satisfeito, cobria suas peças com lençóis, estufava o bumbo com almofadas e, às vezes, chegava a pedir aos percussionistas que tocassem nas maletas que transportavam os instrumentos, em vez de tocar nestes.
Meek cobria amplificadores de guitarras com cobertores e travesseiros, para conseguir sons mais limpos, e foi o primeiro a ligar o baixo elétrico diretamente à mesa de som, sem amplificação. Desde cedo, modificava os pianos que usava, desafinando as notas graves para evitar uníssonos. Suas gravações são coloridas com sons de garrafas, conchas e do chão de madeira de seu apartamento, que soavam como enormes orquestras graças às suas técnicas de uso de microfone. O atormentado Meek cometeu suicídio em 1967, momentos após matar a tiros, em uma discussão, uma pessoa que era profundamente atormentada pela sua arte: a vizinha do andar de baixo.
Em novembro de 1962, após o sucesso de Telstar (a primeira música inglesa a chegar ao topo das paradas americanas) e seus sons nada ortodoxos, um dos especialistas técnicos da EMI, Len Page, enviou um memorando a todos os funcionários do estúdio da gravadora Abbey Road, sugerindo mais inventividade dos produtores e engenheiros de som. A nova postura influenciaria experimentos de gravação históricos, com bandas como os Beatles (Strawberry Fields forever, A day in the life, Tomorrow never knows) e Pink Floyd (See Emily play).
REVOLUÇÃO NO ESTÚDIO
Nos anos 1960, uma revolução aconteceu nos estúdios de gravação musical. No início da década, a maior parte das gravações de música era feita em apenas uma, ou, no máximo, duas faixas. A banda ou o cantor eram registrados enquanto interpretavam a música no estúdio. Todas as decisões de balanceamento precisavam ser tomadas antes que o botão de gravação fosse apertado. Se houvesse a necessidade de uma correção, ou a vontade de um incremento, as únicas possibilidades seriam uma nova tentativa, ou a adição de sons que se somariam à gravação inicial.
Entre 1962 e 1972, a tecnologia de gravação multicanal, ou multitrack, progrediu até chegar a 16 canais. Isso permitiu que cada instrumento fosse gravado separadamente, ocupando sua própria pista na fita magnética, e a mixagem final poderia ser trabalhada após a gravação. Se compararmos uma gravação de 1962 a outra, feita 10 anos depois, a diferença na qualidade de som provavelmente será enorme. Mas se compararmos uma dos anos 1970 e outra atual, a diferença não será tão evidente.
Robert "Bob" Moog foi responsável pela popularização dos sintetizadores. Foto: Reprodução
Em 1963, o produtor George Martin começou a usar um gravador de quatro pistas para gravar os Beatles. Com isso, poderiam “dobrar” as vozes, sobrepondo tomadas, e acrescentar instrumentação, para criar um som mais sofisticado. Uma vez que os quatro canais fossem usados, havia a possibilidade de serem transferidos para um canal de outra fita, e os artistas continuavam a adicionar novos sons.
No início de 1966, Brian Wilson, o gênio compositor dos Beach Boys, começou a trabalhar em Pet sounds, um disco que tentava eclipsar tudo o que os Beatles já haviam conseguido fazer em estúdio até aquele ponto. Grande fã do trabalho de Phil Spector, Wilson adotava sua abordagem de grandes bandas em estúdios. O ápice do seu exagero veio com a faixa Good vibrations, uma colagem de registros realizados ao longo de meses em diversos estúdios, que estabeleceu um novo padrão para o que poderia ser conseguido em gravações.
Embora os Beatles já gravassem em estéreo, a mixagem costumava ser muito estranha, com instrumentos e vozes divididos completamente entre o canal esquerdo e o direito. Hoje em dia, é muito desorientador ouvir essas faixas com fones de ouvido. O engenheiro de som Glys Johns, que trabalhava, entre outras bandas, com os Rolling Stones, foi o primeiro a usar três microfones para a gravação da bateria, conseguindo simular para o ouvinte a sensação de estar posicionado à frente do kit.
As mesas de som de 16 canais causaram uma profunda mudança na maneira como a música era gravada. A partir da década de 1970, como cada instrumento poderia ocupar sua própria pista, os produtores passaram a gravá-lo separadamente, criando a possibilidade de um som mais puro, mas também aumentando muito o tempo de gravação e de mixagem.
LEO FENDER
Embora tenha contribuído também com o design de amplificadores, efeitos como o reverb e contrabaixos elétricos, a maior contribuição de Leo Fender ao mundo da música foi o projeto de modelos de guitarras elétricas que são usados e influenciam a música até os dias atuais.
O californiano Clarence Leonidas Fender nasceu em 1909, estudou contabilidade, mas sempre se interessou por eletrônica, e costumava consertar rádios na casa dos pais, mesmo enquanto criança. Quando adulto, e ainda trabalhando como contador, ele começou a construir, vender e alugar sistemas de som para bandas e casas de festas, e aos poucos começou a atender pedidos de músicos que queriam guitarras elétricas.
Após a Segunda Guerra, a popularidade de pequenas bandas, que tocavam R&B e música country, e a necessidade de instrumentos que soassem mais alto e fossem mais duráveis e mais baratos aumentaram nos Estados Unidos. Fender reconheceu o potencial comercial de uma guitarra fácil de transportar, afinar e que não tivesse tanto feedback quanto as semiacústicas da época, e, principalmente, que pudesse ser construída em série. Isso deu origem a modelos de guitarras que continuam populares.
A primeira foi a Fender Squire, lançada em 1950, que consistia em duas peças de madeira aparafusadas, com apenas um captador. Posteriormente, foi adicionado mais um captador, e o nome do modelo mudou para Broadcaster e, finalmente, Telecaster, como é conhecido hoje.
Em 1954, atendendo a várias demandas de seus clientes, Fender, com a ajuda de Bill Carson, George Fullerton e Freddie Tavares (este, o guitarrista que toca o famoso slide no início da música de abertura dos Looney Tunes), lançou o que é provavelmente o modelo de guitarra mais conhecido em todo o mundo, a Fender Stratocaster.
A Stratocaster possui três captadores, o que permite maior versatilidade de timbres. Incorpora uma ponte móvel, com alavanca de vibrato, que possibilita um som original e maior expressividade para os músicos. E o design de seu corpo foi elaborado para encaixar com o torso e o braço do guitarrista, com cortes duplos próximos à base do braço para permitir mais fácil alcance às notas mais agudas da escala. O modelo é considerado por muitos músicos, como Eric Clapton e Keith Richards, como o que deixa mais evidentes a personalidade e o estilo do músico, e seu som é peça fundamental da obra de artistas tão díspares quanto Jimi Hendrix, David Gilmour, Stevie Ray Vaughan e Mark Knopfler.
LES PAUL
O guitarrista de jazz, country e blues americano, Lester William Polfuss, é mais conhecido pelo design da guitarra elétrica da Gibson que leva o seu nome, mas é creditado como autor ou pioneiro de inovações na gravação de áudio.
Quando criança, nos anos 1920, o jovem músico teve como seu instrumento de entrada a gaita. Quando aprendeu a tocar violão, após tentar o piano, criou um suporte de arame para gaitas que permitia que tocasse o instrumento enquanto suas mãos ficavam livres para acompanhar a música ao violão. O suporte de gaita é fabricado até hoje, replicando praticamente o design original. Sentindo a necessidade de fazer com que o som do violão fosse mais alto, fez experimentos para amplificá-lo, colando ao instrumento uma agulha de fonógrafo conectada ao alto-falante de um rádio. Percebeu, então, que a caixa acústica do violão era irrelevante, quando o som das cordas era amplificado eletricamente. Em sua adolescência, construiu sua primeira guitarra de corpo sólido usando a madeira de um trilho de trem.
Durante as décadas de 1930 e 1940, Les Paul continuou a criar e aperfeiçoar modelos de guitarras elétricas com corpo sólido, que ele chamava de logs (tronco de árvore). Notou que a ausência de caixas acústicas diminuía em muito a microfonia e aumentava o sustain, o tempo em que uma nota persistia após tocada. Em 1941, o inventor quase morreu com um choque elétrico, causado por seus experimentos.
A mesa de gravação de som que leva o sobrenome de Rupert Neve possibilita criação mais pura de áudio. Foto: Divulgação
Embora tenha oferecido a Gibson o design da Log para fabricação em larga escala, desde 1941, somente após o lançamento da Fender Esquire, a fábrica aceitou fabricar o modelo de Les Paul. A guitarra hoje é uma das mais reconhecidas e usadas no mundo.
Durante a década de 1940, Paul realizou vários experimentos tentando fazer gravações multicanal. Ele gastou mais de 500 discos de acetato, colocando músicos para tocarem acompanhando gravações de outros discos, enquanto gravava o todo. Mas o resultado não foi satisfatório. Ele também modificou gravadores, para que reproduzissem uma gravação enquanto permitiam que novos sons fossem adicionados. A técnica, chamada sound on sound, não era prática, pois implicava a destruição da gravação original.
Em 1949, o músico recebeu um dos primeiros gravadores de fita em oito pistas do mundo, e gravou uma série de sucessos, nos quais tocava simultaneamente várias partes de guitarra. Foi Les Paul quem percebeu a necessidade de uma mesa de som que equalizasse separadamente cada um dos canais sonoros, antes que estes fossem gravados nas pistas da fita magnética. O aparelho foi construído por Rein Narma, engenheiro de som de origem russa, sob as especificações de Paul.
NEVE E MOOG
O engenheiro Rupert Neve pode ser considerado um artesão de equipamentos de gravação. As mesas de som que ele produziu em sua empresa, Neve Electronics, entre 1962 e 1973, são joias eletrônicas, apreciadas e conservadas. O documentário Sound city, dirigido pelo músico Dave Grohl, tem como “personagem principal” um dos consoles Neve, que foi usado para várias gravações de sucesso.
O trabalho de Rupert Neve não se encerrou com as mesas de som dos anos 1970. Ele fundou outra empresa, a Focusrite, para produzir processadores dinâmicos e equalizadores. Embora tenha se desligado da empresa em 1989, hoje ela fabrica as melhores interfaces de áudio do mercado, os equipamentos que permitem a conexão de microfones e instrumentos musicais aos computadores.
A síntese de som tem uma história longa e tumultuada, na qual se misturam invenções de entusiastas, experimentos artísticos e pesquisa acadêmica. Porém, um dos maiores responsáveis pela popularização do sintetizador foi Robert “Bob” Moog. Ele não foi o criador do primeiro sintetizador, mas seus produtos tiveram a importância de estabelecer padrões comerciais para a fabricação de sintetizadores (como o modelo de síntese de som subtrativa, ADSR), e de popularizá-los a partir da década de 1970, com os modelos portáteis e de valor relativamente acessível – Minimoog, Little Phatty, Minotaur e pedais de efeitos como o Moogerfooger. Esses produtos revolucionários finalmente colocaram nas mãos de artistas equipamentos que, anteriormente, eram disponíveis apenas para acadêmicos e engenheiros.
Moog também trabalhou como consultor e vice-presidente da Kurzweil Music Systems, a empresa fundada por Ray Kurzweil (o especialista em inteligência artificial que trabalha como consultor da Google na construção do cérebro global), que desenvolveu, com a ajuda de Stevie Wonder, o melhor simulador de piano existente hoje.
ÁUDIO DIGITAL
Limitações ao número de pistas que podem ser usadas em uma gravação, sem perda de qualidade, só foram realmente derrubadas com a chegada do áudio digital. As primeiras tentativas de criar estações de áudio digitais (ou DAW, Digital Audio Workstation), nos anos 1980 e 1980, foram limitadas pelo alto valor dos dispositivos de armazenamento de dados, como disquetes e HDs, e pela baixa velocidade dos processadores da época. Os primeiros sistemas eram uma integração de software e hardware, como o Sound Designer, lançado em 1984, que, em 1991, tornou-se Pro Tools, desenvolvido por Evan Brooks e Peter Gotcher, da empresa Digidesign, Avid Audio. Atualmente, crescem em popularidade os softwares de gravação e edição que podem ser usados em computadores pessoais, como o Logic, da Apple, Live, da alemã Ableton, ou Audacity, que é multiplataforma e gratuito. Existem também versões de DAWs para tablets e smartphones, como o Garage Band.
A gravação em software tem como maior vantagem a versatilidade das interfaces gráficas. Nelas, é possível visualizar as pistas de áudio em diversos formatos, cortar e colar trechos com facilidade, e aplicar filtros em softwares que emulam aparelhos que existiam nos estúdios, como efeitos, compressores e mixers. A lista de pessoas que contribuíram para a criação da interface gráfica é infindável. Vem desde Douglas Engelbart e Bill English, criadores do mouse, passando por Tim Mott, criador dos ícones, e terminando em empresas como Macromedia e Steinberg.
Inovações continuam a acontecer nos softwares de gravação, como é o exemplo do Ableton Live, lançado comercialmente em 2001, que apresenta uma interface de performance de DJs, na qual é possível armazenar e disparar, em tempo real, várias sequências de samples, que se ajustam automaticamente ao tempo da música. O software tem influência profunda nos processos de composição dos artistas da última década. Alguns deles, como a banda independente The Glitch Mob, sequer sabem tocar instrumentos físicos, e compõem todas as músicas diretamente no Live.
A linguagem de programação Pure Data, criada pelo pesquisador Miller Puckette, é outro exemplo de interface digital para criação de novos sons. Ela permite que programadores e músicos criem, através da manipulação de blocos de dados, novos instrumentos musicais, ou controladores para instrumentos virtuais. O PD é usado por estudantes de computação musical e artistas, como o professor da Universidade do Recôncavo da Bahia Jarbas Jácome. Idealista, Puckette publica seu software sob uma licença aberta, e ele é gratuito para quem quiser usar ou modificar.
YELLOW, designer gráfico, músico, professor e mestre em Ciências da Linguagem.
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