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Gente que é louca por (discutir) sexo

Clubes de leitura, fãs clubes e fanfics são alguns dos sintomas do interesse de públicos heterogêneos pelo gênero literário

TEXTO Priscilla Campos

01 de Abril de 2015

Adaptado do livro de E. L. James, '50 tons de cinza' mobiliza fãs no cinema

Adaptado do livro de E. L. James, '50 tons de cinza' mobiliza fãs no cinema

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 172 | abr 2015]

"Livros, putaria, chá e gatos."
Assim é descrito o Clube do Livro Erótico, projeto criado pela dupla paulista Isadora Sinay, crítica cinematográfica, e Lívia Furtado, jornalista. O vlog (tipo de blog que utiliza o vídeo como plataforma) literário começou em outubro de 2014, a partir de uma lista de obras eróticas divulgada num site norte-americano. “A Lívia deu a ideia e eu topei, meio por impulso. Mas também porque sexo, desejo e literatura pareciam um bom ponto de partida para discussões relevantes. Além disso, percebemos que, misturado a tantos vlogs e blogs literários, era um gênero meio esquecido. A lista do Flavorwire serviu para aguçar a nossa curiosidade e fazer a gente pensar além dos clichês esperados”, explica Sinay.

Um vídeo novo por semana mobiliza o canal do projeto no YouTube. Na lista de obras analisadas: O amante, de Marguerite Duras; Chéri, de Colette, e História de O, de Pauline Réage, entre outras. Na adolescência, Isadora acumulou na sua lista de leitura clássicos eróticos como Lolita. Durante o mestrado em Ciências da Religião descobriu a importância de Sade como filósofo e pensador. Mas foi após a leitura de A vida sexual, de Catherine M., e dos diários de Anäis Nin que surgiu a vontade de discutir literatura erótica com mais afinco. “Esses dois livros trouxeram, pela primeira vez, uma perspectiva feminina da sexualidade, algo que eu não tinha encontrado em nenhum outro lugar. Ainda hoje penso que o que mais me interessa na literatura erótica e nas discussões do Clube, é trazer para o debate o olhar feminino sobre o desejo, que me parece sempre (ainda) tão raro”, relata.

Assim como aconteceu com a crítica paulista, Anäis Nin foi o encontro literário cativante que estava faltando entre Cristiane Olímpio, estudante de Design, e o erotismo. “Aos 14 anos, li Escrito nas estrelas, de Sidney Sheldon. Lembro que o livro, a partir de sua protagonista, fala um pouco da descoberta da sexualidade, o que coincidia com questões que estavam passando pela minha cabeça na época. Isso me despertou o desejo de encontrar uma literatura direcionada ao erótico. Buscando obras que falassem sobre sexualidade de maneira mais sofisticada, tive a sorte de conhecer aquela que, para mim, é a maior e melhor referência no gênero, Anäis Nin. Delta de Vênus e A fugitiva são os meus preferidos”.

Já o jornalista Breno Pessoa, assíduo leitor de narrativas libidinosas, lembra a espontaneidade presente na obra da francesa. “Embora eu tenha começado por Sade, não me senti tão fisgado. Em alguns momentos, achava tudo muito visceral ou soando panfletário demais na questão da libertinagem; acho que muitas vezes o sexo soa pouco natural em seus escritos. Gosto de Nin pois, em seu texto, tudo me parece crível e natural”, compara.


O vlog Clube do livro erótico,criado por Lívia Furtado e Isadora Sinay, discute sexo, desejo e literatura. Foto: Divulgação.

50 TONS DE CINZA
O programa do Clube do Livro Erótico mais comentado até o dia da nossa entrevista foi o de Cinquenta tons de cinza, de acordo com Lívia. “Nós nem íamos falar dele, mas vimos tantas questões surgindo, porque o filme seria lançado, que resolvemos aproveitar a oportunidade e fizemos um especial. Os comentários me ajudaram a indagar o livro de maneira mais crítica e aconteceram debates ricos sobre abuso, amor, obsessão, BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) e, claro, literatura.”

Derivada de uma fanfiction da série Crepúsculo, a trilogia de Cinquenta tons de cinza vendeu mais de 5,5 milhões de exemplares no Brasil, segundo dados da editora Intrínseca, responsável pela publicação dos livros por aqui. “Não encaramos a série como um produto erótico – E. L. James conta, essencialmente, uma história de amor. Acho que talvez essa tenha sido a contribuição da trilogia para o mercado erótico: romances palatáveis, sensuais, que alcançaram milhões de leitores e, com isso, trouxeram a atenção para outros produtos na mesma linha, ou, de fato eróticos”, avalia a editora Danielle Machado.

A conjectura parece certeira, no que diz respeito ao aquecimento do mercado editorial erótico brasileiro. Segundo Jorge Sallum, editor da Hedra – um dos catálogos que mais investem em livros libidinosos do Brasil –, o selo Sexo, lançado em 2014, foi também “uma reação à diluição cheia de tons de cinza que essa literatura enfrentou recentemente”. Entre os títulos da série, estão O outro lado da moeda, de Oscar Wilde e um clássico moderno, ensaístico, sobre o tema, Perversão, do psiquiatra americano Robert Stoller.

Para o jornalista Breno Pessoa, Cinquenta tons de cinza trouxe um acréscimo positivo no comportamento social diante dos hábitos de leituras alheios. “Agora, algumas pessoas parecem encarar com maior naturalidade alguém com um livro erótico por perto”, observa.

O conservadorismo travestido de obscenidade selvagem converte-se num dos elementos mais irritantes em Cinquenta tons de cinza. Como defende Danielle Machado, os livros possuem um enredo romântico. Porém, também voltado para a ostentação do consumo. A professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Eliane Robert Moraes, estranha que o livro seja, às vezes, comparado às melhores produções da ficção sexual. “A meu ver, não há nada mais equivocado que tal associação: entre o desejo de absoluto que preside a erótica de Sade ou de Sacher-Masoch e o desejo de inclusão que orienta o imaginário da tola trilogia. Não há um só ponto em comum. Bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa, e seus congêneres, criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas antes preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia, sejam os signos mais óbvios do consumismo, sejam as bagatelas do ‘politicamente correto’”, detalha.


A autora francesa Anaïs Nin cativa o público com o célebre Delta de Vênus.
Foto: Divulgação

Sobre o comportamento da protagonista do romance, Anastasia (padronizado e normativo), o historiador e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Daniel Wanderson Ferreira, constrói uma análise comparativa entre o conto Barba Azul, de Charles Perrault, e o quarto de jogos de Grey (o dominador de Anastasia). “No primeiro caso, a interdição ao quarto e a curiosidade da mulher conduzem ao suplício feminino, afinal, a lição moral de Perrault é que a mulher deve se manter em seu papel definido, submissa ao marido e resguardada por ele do universo masculino. Há uma ideia do homem como livre, como chefe e como dirigente. A mulher fica em um papel submisso para ser protegida da violência masculina. É uma visão tradicional, produzida num esquema de dominação que é complexo e ambivalente, porque, em Charles Perrault, está claro que o Barba Azul quer sua mulher feliz, libera-a para festejar com amigos, desde que não entre no quarto interdito. Já em Cinquenta tons, a perspectiva aparentemente é outra, afinal Anastasia é convidada a entrar no quarto, o que nos faz pensar se estamos em uma nova dimensão do corpo feminino. Haveria mesmo nos Cinquenta tons uma ideia libertadora e emancipadora da mulher? – essa é a questão”, pontua.

De acordo com Ferreira, a personagem de E. L. James entra no quarto por convite e por vontade, mas sem assumir as rédeas de si mesma e do jogo erótico. “Não vejo, no filme, uma proposta para se ‘refazer’ a sociedade e as hierarquias de gênero, nem mesmo a ordem romântica do amor, tal como ela passa a ser vista desde o século 18.” Para Eliane, o que sobra é pouco: uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. “Impossibilitados de recorrer ao absoluto de seus imaginários, os sádicos e masoquistas de plantão devem se dar as mãos para formar um par e, de quebra, serem felizes para sempre. Eis a promessa do casal Christian e Anastasia: perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles enfim brindam o ‘sadomasoquismo’ com seus porta-vozes ideais. Não por acaso, isso ocorre justo num momento em que a prática da transgressão vem sendo cada vez mais normalizada pelo mercado”, reflete.

Na direção oposta a qualquer algema ou chicote, está o movimento pós-pornô e seus derivados, como o pornoterrismo. Numa espécie de manifesto, escrito pela psicóloga e pesquisadora Fabiane M. Borges, estão expostos os conceitos feministas e de guerrilha erótica que catalisam a vertente. “O movimento tem uma intenção real de inovação do imaginário pornográfico em geral, no qual se utilizam as ferramentas da sexualidade promovidas até agora, mas renovadas a partir da perspectiva de fêmeas fortes, poderosas, agressivas, inventivas, propositivas, que trazem consigo a linguagem da violência também. A ideia é incluir novos recursos sexuais performativos dentro da sexualidade cotidiana”, afirma Borges, que este ano pretende lançar, junto com Carola Gonzáles e Ana Girardello, uma tradução do livro Pornoterrorismo, realizado pela espanhola Diana Torres.

Sentinelas de um pressuposto narrativo sempre escorregadio e catastrófico à sua maneira, os leitores de escritos licenciosos estão sujeitos a “toda surpresa, deleite ou terror”, parafraseando declaração de T.S.Eliot sobre Ulisses. Afinal, Joyce ficaria mesmo feliz de ter sua obra associada a enigmas, apuros e intensas tentativas de discutir o delírio do corpo na literatura. 

PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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