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Boca do inferno, o precursor

Fragmentos de uma literatura obscena nacional indicam a presença de autores que usam o erótico para a crítica social

TEXTO Priscilla Campos

01 de Abril de 2015

Em suas obras de escárnio, Hilda Hilst aponta para o estudo que empreendeu da tradição erótica

Em suas obras de escárnio, Hilda Hilst aponta para o estudo que empreendeu da tradição erótica

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 172 | abr 2015]

A produção de escritos eróticos e pornográficos no Brasil
traz como referência geográfica inicial as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro. Ambas configuravam importantes centros urbanos durante o período colonial, imperial e primeiros momentos da República. Na terra de Iemanjá, nasceu Gregório de Matos, poeta barroco responsável, no século 17, por uma significante mostra de poesia satírica e erótica em língua portuguesa. Seus versos, muitas vezes denominados de “profanos”, tinham como temática a dualidade, espírito versus matéria, questões sexuais versus ascetismo. Nessa mesma linha de pensamento, as musas dos poemas possuíam duas personalidades: anjo e demônio; pureza e corrupção. Por meio da galhofa obscena, o Boca do Inferno redefinia conceitos amorosos ainda tão conservadores: “O amor é finalmente/ um embaraço de pernas,/ uma união de barrigas,/ um breve tremor de artérias./ Uma confusão de bocas,/ uma batalha de veias,/ um reboliço de ancas,/ quem diz outra coisa, é besta.”

De seu lado, o resplendor social carioca fundamenta-se nas múltiplas influências francesas – arquitetura, moda, arte, comportamento; tudo tem um quê de belle epóque parisiense durante a Primeira República. Em tal cenário, a disseminação de impressos cresce e surgem jornais voltados para sátira e construções narrativas libidinosas. O Rio Nu foi um deles. “Tendo surgido em 1898 como despretensioso jornal de humor ‘cáustico’, e apresentando o programa de ‘passear com seus sapatos trocistas por sobre as conveniências sociais’, o Rio Nu em pouco tempo afirmou-se com um estilo peculiar de humor malicioso”, analisa a historiadora Cristiana Schettini Pereira, na pesquisa Um gênero alegre – imprensa e pornografia no Rio de Janeiro (1898 – 1916). Outras publicações como o Sans dessou e a coleção Contos rápidos, do próprio Rio Nu, fizeram parte da escrita lasciva da época.

No Brasil contemporâneo, destacam-se João Ubaldo Ribeiro, com A casa dos budas ditosos, os poemas eróticos de Drummond, no livro póstumo O amor natural (“Quero sempre invadir essa vereda estreita/ onde o gozo maior me propicia a amada”), o paulista Reinaldo Moraes, devido a seus recentes livros Pornopopeia e O cheirinho do amor: crônicas safadas, além da sólida e discutida obra de Rubem Fonseca. Mas é nas poesias, contos, romances de Dalton Trevisan e Glauco Mattoso que o erotismo perdura.

Lançada em 2013, pela editora Record, a antologia Novos contos eróticos inclui 30 textos do recluso escritor curitibano. No trecho de Amor, amor, abre as asas – “Fique de quatro. Licença poética ou não: abra a perninha. Faça gostoso. Olhe pra mim, bem aberto. (…) Devagarinho. Agora mexa. Tudo a que tenho direito. Quer mais? Minha Modigliani nua de bolso. Do que você gosta, mãe santíssima dos Gracos?” – os leitores estão diante de exemplo do “impulso linguístico propulsor” abordado por Maurice Blanchot. Em O livro por vir, o ensaísta fala sobre o “salto” que é a literatura, do ponto de vista da linguagem. “Sabemos que só escrevemos quando o salto foi dado, mas para dá-lo é preciso primeiro escrever, escrever sem fim, escrever a partir do infinito.”

Valendo-se de uma espécie de “performance do olhar” (o susto do leitor quando apreende, de forma inesperada, determinado discurso), Trevisan salta da sordidez, do grotesco, para a linguagem poética. O lirismo é instalado na narrativa. O Vampiro de Curitiba pratica a chamada “transformação assustadora” na esfera linguística, defendida por Blanchot.

Já uma sensação plena de autonomia está presente nos escritos do paulista Glauco Mattoso. Nascido em 1951 e detentor de um imponente projeto poético, ele se diferencia da “escrita comum” não só porque desenvolve o erotismo ligado a estranhas obsessões (um dos fetiches de Mattoso é direcionado aos pés), mas também por concentrar-se em um universo tão codificado como o dos sonetos.

Em entrevista à Continente, Glauco avalia a relação escritor versus linguagem em sua obra erótica: “Para mim, não se trata de mero jogo de palavras, como frequentemente utilizo em minha poesia (tipo ‘língua suja’, para me referir ao chulismo e àquilo que lambo fisicamente em termos de falta de higiene, como pés suados ou solas de botas empoeiradas), mas, sim, de verdadeiro fetiche que transita entre o verbal e o oral. O ambiente típico da poesia tende a ser erudito, por isso saboreio com voluptuosidade cada vocábulo culto, quando misturo aos palavrões mais vulgares que caracterizam o discurso erótico. Acho que a ‘narração do jogo’ é tão afrodisíaca quanto o jogo em si, dado que, ao descrever o ato sexual, o autor se excita tanto quanto o leitor e ambos copulam mentalmente sem estarem juntos no mesmo espaço, concretizando assim o ideal de toda fantasia masturbatória”, afirma.


Projeto poético de Glauco Mattoso traz erotismo ligado a obsessões.
Foto: Leila Fugii/Divulgação

GOZO & TRALHAS
Talvez, o intervalo de tempo que compreende duas passagens do Sol pelos equinócios de primavera/outono e pelos solstícios de verão/inverno corresponda aos limites da obra pornográfica realizada por Hilda Hilst. Sua trilogia obscena, formada por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d’escárnio – textos grotescos e Cartas de um sedutor, além de outros textos eróticos como Bufólicas, encaixam-se na proposição feita por Lucienne Frappier-Mazur acerca da palavra obscena: “ao contrário das outras palavras, a palavra obscena não só representa, mas é a própria coisa”.

Para o doutor em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Johnny Martins, a escritora paulista subverteu tal premissa, pois pesquisou, com profundidade, a literatura de temática sexual para, então, fazer com que o erotismo e a pornografia dialogassem com seu projeto estético. “De fato, a pornografia busca o fetichismo envolvido na representação do sexo através da palavra, mas, na verdade, Hilda Hilst não pretendia escrever pornografia como a compreendemos atualmente. A pornografia de Hilda Hilst é equivalente à de um Marquês de Sade, cuja obra tinha mais passagens filosóficas do que descrições de atos sexuais. Aqui, a chave de tudo poderia ser colocada no termo ‘sedução’. Hilda usou o sexo para chamar a atenção para sua crítica à mediocridade dos leitores e às relações ‘obscenas’ com que o mercado editorial oprime os escritores, assim como Sade usou o sexo para incutir nos leitores questionamentos filosóficos”, pontua.

Alcir Pécora, crítico literário e professor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que, para entender a questão do obsceno em Hilda, é essencial associá-la ao humorismo de Luigi Pirandello. “O dramaturgo italiano afirma uma quebra de representação do cômico que se sustenta no paradoxo em que os contrários coexistem e produzem um riso próximo da aporia, da perplexidade, da incapacidade de eliminação do equívoco.”

Uma amostra interessante da opinião explicitada por Pécora é Corina: a moça e o jumento, história que configura algo próximo ao segundo capítulo de Lori Lamby. Após colocar uma criança narrando, com displicência e excitação, sobre pedofilia, abuso – “Eu deitei com minha boneca e o homem que não é tão moço pediu para eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. (…) Daí o homem disse pra eu ficar bem quietinha, que ele ia dar um beijinho na minha coisinha” – Hilda arquiteta uma história marcada pela comicidade desesperada. Tem início o relato das aventuras sexuais do jovem Edenir. A relação lasciva (e machista) com a garota Corina é marcada por penetrações em animais, embaraços familiares e religiosos, além de passagens nas quais a descoberta do sexo é muito mais entrega que conflito. O riso, contido por certo acordo ético e moral velado durante a primeira parte da publicação, acaba saltando para fora do leitor.

No panorama da literatura erótica, a mulher, muitas vezes, possui um lugar ambivalente: ela é submissa e dependente de uma contemplação masculina, mas também é estrela em alguns contextos, em que os homens tornam-se quase irrelevantes. Aqui, Hilda destrói mais um padrão, segundo Johnny. Para o pernambucano, no erotismo hilstiano, a figura feminina pretende anular ideias estanques de gênero. “Mesmo quando a mulher é colocada no centro da indústria de livros eróticos, geralmente, ela não escapa de ser representada sob um olhar machista, sobretudo no âmbito do Brasil. O posicionamento da mulher na literatura de uma sociedade tão machista sempre vai ter influência, em maior ou menor grau, da ideologia patriarcal dominante”, observa.

Contudo, ele afirma concordar com a crítica feminista Elaine Showalter, quando ela ratifica que a literatura produzida por mulher é um discurso de duas vozes: uma dominante (machista) e outra silenciada (feminista). “Em outras palavras, as obras de autoria feminina, mesmo que reafirmem arquétipos, sempre vão revelar, nas entrelinhas, a opressão social de que as mulheres são vítimas. No erotismo de Hilda, a figura feminina ocupa um lugar de subversão de estereótipos sobre a mulher, sobretudo enquanto escritora. Entretanto, a paulista não imprimiu um feminismo panfletário sobre suas personagens. Muitas delas possuem a mesma liberdade sexual de que o homem goza em nossa sociedade, e isso bastou para chocar o pudor de muitos leitores e leitoras”, conclui.

No ano trópico, convencionado pelo calendário ocidental, o período de estio dura apenas três meses. Na obra obscena hilstiana, a atmosfera solar permanece (sem data para mudanças naturais significativas), acompanhada por possibilidades de queimaduras definitivas e mergulhos no abismo. 

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