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“Vertigem, excesso é o que distingue o texto licencioso”

Doutora em Filosofia, Eliane Robert Moraes estuda o erotismo nos vários campos da arte e analisa, nesta entrevista, a obra do Marquês de Sade

TEXTO Priscilla Campos

01 de Abril de 2015

Eliane Robert Moraes

Eliane Robert Moraes

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 172 | abr 2015]

Nesta entrevista, a doutora em Filosofia e professora de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), Eliane Robert Moraes, analisa o poder de transformação filosófica presente na literatura erótica e na obra do Marquês de Sade. Nos escritos licenciosos, nada permanece inocente e neutro: o leitor está submetido a uma conversão que envolve excesso e deslocamentos sociais, psicológicos. Autora de diversos ensaios sobre o imaginário erótico nas artes e na literatura, além de livros como Sade – a felicidade libertina e O corpo impossível – a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille, Eliane esteve em centros universitários dos Estados Unidos, França e Portugal para discutir a temática.

CONTINENTE Como e quando a cultura erótica surgiu na história moderna?
ELIANE ROBERT MORAES O ponto de partida dessa tradição foi dado pela nova tecnologia de impressão do século 16, que colocou em circulação reproduções baratas, criando um próspero mercado para o obsceno. Mas a popularização do material licencioso também deve muito ao aparecimento de novas formas de representação do erotismo que, pautadas pela intenção realista, implicavam uma transgressão deliberada da moral. Ou seja, os elementos decisivos para a formação dessa cultura foram dados pela literatura. Ou, se quisermos, pelos escritos licenciosos de Aretino, como os Sonetos luxuriosos (1525) ou os Ragionamenti (1534-1536), textos que conferiram a certidão de nascimento à moderna ficção erótica ocidental. Ao adotar a forma do diálogo entre mulheres – que se inicia interrogando as melhores profissões femininas para afirmar a superioridade da prostituta sobre a freira e a esposa –, o livro pretendia expor “a coisa em si”.

CONTINENTE O escritor norte-americano Theodore Schroeder escreveu que “não existe livro ou quadro pornográfico, existe é um olhar diante daquilo”. Em seu artigo O efeito obsceno, você traz para a análise um ensaio de Henry Miller no qual ele defende:“Não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”. A linha entre o erótico e o não-erótico parece tênue e as discussões, abrangentes. Como podemos definir esse gênero literário? Quais as diferenças entre pornografia e erotismo?
ELIANE ROBERT MORAES Para o senso comum, o pornográfico é o que “mostra tudo”, enquanto o erótico é “o velado”. Contudo, para o estudioso do erotismo literário, essa distinção é falsa, senão moralista. A rigor, livros como os do marquês de Sade, de Georges Bataille, de Glauco Mattoso ou de Reinaldo Moraes são muito mais obscenos do que a pornografia comercial de uma Bruna Surfistinha ou de uma E. L. James. A diferença entre eles não está no grau de obscenidade, mas na composição formal: o valor de um texto nunca se mede por sua moralidade, mas por sua qualidade estética. Acredito que a particularidade da fabulação sexual está no inesgotável poder de multiplicar as imagens do desejo, tal qual um espelho que transforma, deforma e sobretudo amplia tudo o que nele se reflete. Vertigem, excesso, desmedida – não importa que nome se dê a tal capacidade –, esse é por excelência o traço que distingue o texto licencioso. Talvez por isso, trata-se de uma literatura que jamais se aprisiona num só gênero literário. A rigor, um “gênero erótico” teria que se definir pela reprodução de certos critérios formais, o que supõe, necessariamente, a obediência a determinadas normas de composição. Contudo, salvo algumas exceções, as obras obscenas participam do movimento geral da literatura, sem implicarem um conjunto próprio de convenções.

A tese de Henry Miller vem reforçar a impossibilidade de se fixar o estatuto literário da erótica, na medida em que, para ele, nada existe que seja obsceno “em si”. A se crer no escritor, a obscenidade seria fundamentalmente um “efeito”. Daí a dificuldade de delimitá-la neste ou naquele livro, nesta ou naquela convenção literária, o que seria confirmado não só pela diversidade de obras consideradas pornográficas em tal ou qual contexto, mas ainda pelas divergências históricas acerca do que seria efetivamente imoral.

CONTINENTE Você poderia falar sobre a filosofia libertina? Como a produção de Sade encaixa-se na ideia apresentada por Lucienne Frappier-Mazur: “(…) a palavra obscena não só representa, mas é a própria coisa”?
ELIANE ROBERT MORAES Quando o marquês de Sade, em 1795, escreve La Philosophie dans le boudoir – afirmando a alcova libertina como lugar para onde convergem a filosofia e o erotismo –, ele está, antes de mais nada, realizando uma notável síntese de toda uma tradição de pensamento. Tradição essa que, embora encontre na literatura licenciosa setecentista a sua expressão mais bem-acabada, remonta ao final do século 16, com os pensadores que opõem aos ensinamentos da fé as constatações da experiência cotidiana e da percepção sensorial, e se mantém viva durante todo o século seguinte. Porém, se aos romancistas libertinos do século 18 cabe o mérito de reunir a libertinagem erudita e o deboche de conduta, ao marquês cabe uma glória ainda maior: a de deduzir, dessa síntese, tal ordem de consequências até então jamais concebida, e sobretudo de propor, a partir daí, seu próprio sistema filosófico. Ao transportar a filosofia para a alcova, Sade não só coloca em prática as teorias do primado das sensações no homem, tão em voga entre os simpatizantes do materialismo na época, como também demonstra que a experiência da crueldade é a única consequência lógica a ser tirada dessas teorias. E, assim, funda um sistema em que pensamento e corpo unem-se para realizar a experiência soberana do mal, tendo como força motriz a relação entre prazer e dor. A isso seus libertinos dão o nome de “filosofia lúbrica”. Desnecessário dizer que uma tal filosofia vai se expressar por meio de uma linguagem igualmente lúbrica. Representação privilegiada da atividade erótica, a palavra pornográfica acaba subvertendo sua função abstrata de signo para ganhar um corpo próprio que, para Sade, opera em paralelo ao corpo material.

CONTINENTE Por que existe uma sensação de perigo quando se associam sexo e pensamento? Que tipo de subversão inconveniente os escritos eróticos despertam?
ELIANE ROBERT MORAES Gosto de lembrar a escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag, que caracteriza a “imaginação pornográfica” como uma forma particular de consciência que transcende as esferas sociais e psicológicas. A ficção erótica, diz ela, aciona estados extremos do sentimento e da consciência humana, visando desorientar o sujeito, deslocá-lo mental e fisicamente. Por isso os textos obscenos seriam portadores de certo princípio de conversão do leitor, semelhante ao que encontramos nas literaturas de cunho eminentemente religioso. O erotismo literário coloca um problema estético particular, na medida em que privilegia as formas do excesso e, assim, viabiliza a passagem de uma consciência “social” para outra, perturbadora. Eu diria ainda mais: trata-se de uma forma de conhecimento que coloca certa questão filosófica maior, posto que abre ao pensamento a possibilidade contínua de alargar a escala humana para além da vida em sociedade. O repertório de subtemas que o erotismo aciona – bestialização, violência, perda de si no outro etc. –, seja de forma trágica ou cômica, aponta para essa constante problematização da noção de ser humano e de humanidade. 

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