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Gênero: O traço de um novo cenário

Presença de mulheres no humor gráfico aumenta, mas autoras criticam a visão de que haja um “estilo feminino” de criar

TEXTO Ulysses Gadêlha

01 de Abril de 2016

Imagem Cynthia B./Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 184 | abril 2016

"Uma vez que os ‘quadrinhos masculinos’ nunca foram definidos
ou limitados, qualificar as mulheres criativas como autoras de ‘quadrinho feminino’ é desacreditá-las. Se esse termo atribui certas características estereotipadas ao nosso trabalho e à nossa maneira de pensar, então nós, autoras de quadrinhos, não nos reconhecemos nele. Tal como nossos colegas não aderem à sua ‘masculinidade’ para a criação, nós não nos limitamos à nossa ‘feminilidade’”, diz a carta do Coletivo das Criadoras de Quadrinhos contra o Sexismo, direcionada ao Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême (FIBD), na França, cujo quadro de 30 homenageados deste ano não contemplou nenhuma mulher. Fazendo uma crítica completa a toda forma de determinismo e discriminação, o manifesto indaga: por que o feminino deveria estar fora do universal?

Alegar que a mulher tem se comportado como exceção no humor gráfico é, ao mesmo tempo, verdade e reducionismo. A nossa primeira cartunista, Nair de Tefé (1886–1981), adotou uma postura reformadora, quando o pensamento feminista ainda não se instalara no país. Criada na aristocracia e no patriarcado, Nair teve sua formação artística na França da belle époque e trouxe certa subversão para o Rio de Janeiro. Filha de um barão e casada com um presidente militar, o marechal Hermes da Fonseca (1910–1914), a jovem Nair era o modelo de uma dama da sociedade carioca. Porém, ela liberou sua crítica através de caricaturas publicadas na imprensa local, usou calça comprida a despeito da burguesia e promoveu concertos de maxixe – um ritmo popular, malvisto pelos mais abastados. Para a posteridade, além de precursora, ela seria reconhecida como feminista, participando ativamente do 8 de março.

A professora de Filosofia da UFRJ Carla Rodrigues, em ensaio para a revista Cult sobre o devir feminista em Simone de Beauvoir, faz menção apropriada à pensadora francesa: “Beauvoir começa observando que a ninguém nunca teria ocorrido escrever um livro sobre a condição do homem, porque esta sempre esteve abarcada pela condição humana. Cumpre, assim, uma tarefa histórica, a de denunciar o fracasso do projeto moderno de universalidade, ao perceber que só havia uma definição negativa para a mulher: aquela que não é homem”. Na mesma linha reflexiva, a mestre em Filosofia Política Djamila Ribeiro afirma que “o mundo para a mulher não é apresentado como deveria ser a todo ser existente, com todas as possibilidades, o que faz com que se frustre o projeto humano de autoafirmação e criação”.

A pesquisadora Marilda Queluz, da UTFPR, acredita que, desde Nair até hoje, há uma produção rica deixada de lado. “A maior ou menor visibilidade das mulheres neste campo, como em outros, está ligada às lutas e conquistas historicamente travadas. Ou seja, não é um problema só dos quadrinhos ou do humor gráfico, precisa ser pensado em um contexto social mais amplo de disputas que é atravessado também por questões de classe e de raça/etnia”, pondera. É preciso lembrar que, na década de 1940, nos EUA, as mulheres assumiram a vacância dos cartunistas homens que foram para a guerra. Depois essa ocupação desfez-se, mas gerou um mercado que germinou diversas artistas nas décadas de 1970 e 80, a exemplo de Trina Robbins, uma das primeiras a falar de aborto e homossexualidade em cartuns.

No bojo da resistência à ditadura, aparece uma figura isolada, Ciça Alves Pinto, esposa do cartunista Zélio Alves Pinto. Ela faz uso do humor gráfico para expressar suas ideias, mas não mobiliza ainda outras autoras. Na década de 1980, surge em Pernambuco a cartunista Ana Blue, uma das primeiras representantes femininas no humor gráfico, junto a Liz França – que trabalhou na Folha de Pernambuco – e Carla Spinillo (anos 2000). Nascida em Caruaru, Ana Blue começou a desenhar na adolescência e teve como referência a icônica revista americana de humor Mad. “Iniciei no suplemento infantil do Diario de Pernambuco, no qual passei quatro anos. Logo depois, comecei a enviar tiras para a editora Grafipar, de Curitiba; trabalhei na editora Sol, do Recife. Nesse caso, era uma revista só minha, de humor, com sátiras pornográficas. Passei anos atuando como designer gráfica, mas agora trabalho com pintura e ilustração”, relata.

SÓ JURADAS
O cartunista Samuca Andrade, organizador do Salão Internacional do Humor Gráfico (SIHG), conta sobre a primeira edição do SIHG, em 2012, que abordou a mulher como autora: “Pensamos em compor um júri todo feminino, já pra chamar atenção à temática e também pela visão da mulher em julgar o trabalho da maioria masculina, visto que o percentual era de 80% a 90% de homens no SIHG”. As juradas foram as cartunistas Pryscila Vieira, Fabiane Langona (Chiquinha), a colombiana Nani Mosquera, a portuguesa Cristina Sampaio e a professora especializada em mangá Sonia Luyten.

Segundo pesquisa da cartunista Aline Lemos, mestranda em Angoulême, mais de 300 mulheres trabalham, hoje, no mercado brasileiro de quadrinhos em várias atividades, como roteiristas, desenhistas e coloristas. Atualmente, as três cartunistas mais populares do Brasil são a curitibana Pryscila Vieira, a gaúcha Chiquinha e a carioca Cynthia Bonacossa. As três já passaram pelo jornal de maior circulação do país, a Folha de S.Paulo, inclusive na época em que o periódico destinava um espaço exclusivo às autoras, denominado “Quadrinhas”. Tanto Pryscila quanto Chiquinha já tiveram exposições no Salão de Piracicaba, referência artística para o mundo dos quadrinhos, criado pelos fundadores do Pasquim. Cynthia B. trabalhou três anos com Allan Sieber na Toscographics, colaborou com a revista Piauí e publicações independentes.

Em muitos momentos, as artistas usaram seu cotidiano para questionar padrões, mas isso não significa que seja um tema “tipicamente feminino” ou “coisa de mulher”, conforme esclarece Marilda Queluz. “Como os anos 1960 nos lembraram, o político passa pelo corpo, pelo cotidiano. Mais interessante é pensar no tipo de diálogo que está sendo proposto entre a temática, a linguagem e a sociedade, e no modo como isso acontece na materialidade do desenho”, explica. “Só o fato de uma mulher resolver fazer quadrinhos, num cenário – num mundo! – ainda dominado por homens, seja lá qual for o tema que ela decida trabalhar, já é uma postura feminista”, atesta a mestranda em Comunicação pela UFPB Dandara Palankof.

Cynthia B. cria sob a perspectiva autobiográfica, o humor desagradável ou sujo, mais ligado a comportamento, humor de situação. “A gente cria Deus à nossa imagem, então também criamos nossos personagens à nossa imagem. De vez em quando, sou menos chamada também porque eu faço quadrinhos autobiográficos, como uma personagem feminina. Numa revista que seja sobre porrada, violência, umas coisas meio ‘masculinas’, eles não pensam em me chamar”, afirma.

POLÊMICA NA REDE
A cartunista Chiquinha foi ouvida pela Continente. Contudo, após uma postagem no Facebook feita por Cynthia, a autora gaúcha pediu para ter sua fala retirada desta reportagem. Bonacossa havia postado um cartum intitulado “Foda-se o feminismo”, em que expressava suas queixas sobre as mulheres cartunistas só serem procuradas para falar sobre gênero. “Sou mais entrevistada que meus colegas homens, ganho atenção, pena que é sempre pra responder sobre SER MULHER. Eu sei que é do contra dizer que não tem preconceito contra mulher nos quadrinhos, mas tô cansadíssima de me tratarem como vítima”, diz a cartunista. “Não leia meus quadrinhos porque sou mulher, leia porque eu tenho talento e você se identifica com as merdas que eu desenho”, expressa. A manifestação da humorista dividiu opiniões na rede social.

Nesse sentido, Cynthia B. acredita que a neutralidade de gênero reforça o caráter universal do humor, contestando o determinismo que obriga a mulher a falar sobre universo feminino. “Essas diferenças de gênero são superficiais, quando você pensa que todos nós amamos, sofremos com mudanças na vida, todos nós vamos morrer. É possível inserir o feminismo no humor, sim. Resta saber se é bom, se é bem-feito. Um olhar feminista e um panfleto feminista são duas coisas diferentes. Ou a história vira a ferramenta de uma mensagem ou esse olhar ajuda a criar a história”, afirma a cartunista.

Pryscila, autora de Amely, “a primeira boneca inflável feminista do mundo”, também vê o excesso do ‘politicamente correto’ como mordaça à arte. “Desenho quadrinhos há mais de 20 anos. A Amely tem 10 anos. Não fiz Amely para ser feminista. Ela é autobiográfica, não preciso ficar levantando bandeira de movimento algum. O feminismo foi reconhecido e exaltado pelo leitor. Há 10 anos, as coisas eram diferentes, fico feliz que tenha evoluído”, considera Pryscila.

A prova de sucesso dessa universalidade é a página Humanos da UFPE, que conquistou 22 mil seguidores no Facebook com cartuns e caricaturas dos estudantes da universidade. A maioria do público ignora que é a estudante de Design Gráfico Julia de Belli, 20, a autora dos desenhos. Ela evita a autodefinição de cartunista e se define como “uma ilustradora que, de vez em nunca, tem uma sacada legal e transforma isso em tira”. Nos moldes do “The Anatomy of…”, cartuns de estereótipos já difundidos há anos na internet, Julia conseguiu problematizar o elitismo das universidades públicas através da sátira e se colocou entre as pioneiras do cartum pernambucano.

Para Cynthia B., existe um engano nessa história de que as mulheres são desfavorecidas no mundo dos quadrinhos. “Acho isso uma balela, porque tenho poder de fazer a minha própria revista, ninguém vai deixar de comprar, me impedir de fazer o que eu quiser porque sou mulher”, defende. “Ser mulher no humor ainda chama a atenção, porque poucas se dedicam ao ofício. Mas muito mais do que há 20 ou 10 anos, mesmo que sejamos ainda poucas. Daqui a uns 20 anos equilibra”, prevê Pryscila Vieira.

“Nós gostaríamos de ver criadores, editores, instituições, livreiros, bibliotecários e jornalistas promoverem a literatura emancipada de modelos ideológicos que assentam personalidades e ações dos personagens em estereótipos sexuados”, encampa o Coletivo das Criadoras de Quadrinhos contra o Sexismo.

“As quadrinistas estão ganhando seu espaço falando de temas dos mais variados, inclusive sobre o universo feminino, em toda a sua amplitude; trabalhos como o da LoveLove6 e Sirlanney, e a projeção cada vez maior delas, mostram isso”, pontua Dandara Palankof. A iniciativa virtual Lady Comics também é outro exemplo de ação de empoderamento. Simone de Beauvoir diagnosticou que a hierarquização imposta pelo sexismo, de fato, ofereceu possibilidades menores às mulheres. Todavia, como observa Djamila Ribeiro, “ao tentarem se definir como sujeitos, as mulheres podem ultrapassar sua situação”. 

ULYSSES GADÊLHA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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