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"Somos um tipo de justiceiros do povo"

TEXTO Débora Nascimento

01 de Abril de 2016

Angel Boligán

Angel Boligán

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 184 | abril 20016]

Um dos cartunistas mais premiados da atualidade, detentor de 153 prêmios e menções internacionais, Angel Boligán Corbo está na programação do II Salão Internacional de Humor Gráfico, que acontece entre 3 de abril e 1º de maio, na Torre Malakoff, Bairro do Recife. Nascido em Cuba, em 1965, o artista saiu da ilha em 1992, após formar-se em Artes Plásticas (1987), para morar no México. Seus cartuns podem ser vistos em algumas publicações mexicanas, como o jornal El Universal, o humorístico El Chamuco e a Revista del Consumidor, além da revista norte-americana Foreign Affairs. No país, fundou o El Club de La Caricatura Latina, agência que abriu portas para novos desenhistas do continente. Boligán é ainda membro da agência francesa Courrier International, do Sindicato Internacional de Caricaturistas (EUA), do grupo Cartooning For Peace (Paris) e da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba.

Continente Seu trabalho, brilhante e premiado, é bastante crítico à sociedade contemporânea, retratada como consumista, competitiva, egocêntrica, solitária e extremamente ligada a smartphones e redes sociais. O cartum ainda importa em meio a essa sociedade do meme? Ela pode ser salva pelo humor?
Boligán Os memes são um recurso gráfico, produto das redes sociais que usam a colagem digital, o humor e o imediatismo como uma arma. Não acho que competem com o cartum, que também foi adaptado às redes sociais, mas se complementam e seu público pode ser o mesmo. O cartum é a música clássica do humor, os memes são o pop. Nós sabemos que o humor não é uma Arca de Noé, mas é nosso grão de areia contra o dilúvio.

Continente Você, que trabalha há 30 anos nessa área, tem observado quais mudanças durante este período? Foram boas ou más? O mercado está melhor ou pior?
Boligán Os jornais, revistas e publicações impressas, o espaço natural para o humor, ameaçam mover-se completamente para o digital. As ferramentas digitais de realização dos desenhos foram ampliadas com aplicações digitais que tornam obsoletos os tradicionais tinta, lápis, aquarela e outros materiais. Muitos cartunistas pararam de produzir obras originais, é muito mais fácil de enviar as nossas colaborações via e-mail e expandiu-se a possibilidade de colaborar em qualquer mídia impressa ou digital de qualquer lugar do mundo sem a necessidade da presença física, independentemente de distância ou fronteiras. Também ganhamos um round contra a censura por termos nossas próprias páginas na web ou espaços em redes sociais sem ter um editor para nos questionar ou censurar as nossas opiniões. Algo que ainda precisa ser resolvido é como sustentar-nos economicamente com a publicação de nossos desenhos na rede, que podem viralizar e serem vistos por milhares ou milhões de pessoas, mas somos pagos somente com a satisfação pelo alcance da obra. Acredito no valor e importância do humor gráfico, do humor opinativo, e que encontraremos uma maneira de continuarmos a nos sustentar financeiramente com nossos desenhos e com a liberdade que sempre buscamos.

Continente Por que você deixou Cuba e começou a trabalhar no México? Como é a situação atual do mercado do humor nos dois países?
Boligán Cuba é o berço de grandes desenhistas de nível internacional. No entanto, na ilha é muito difícil de se sustentar através da publicação dos desenhos, pelo pequeno número de meios de comunicação e espaços para o humor gráfico, além dos baixos pagamentos. Porém, os artistas cubanos continuam a se unir, participando de exposições, concursos nacionais e internacionais nos quais destacam e mantêm o seu nível de escala mundial. O México também tem uma grande tradição, respeito pelo humor gráfico e mesma quantidade de artistas de nível internacional. Aqui, é muito mais ampla a gama de publicações impressas e digitais em que você pode expor o seu trabalho. Para muitos, é difícil viver apenas do valor do pagamento de seus desenhos publicados, mas outros tantos conseguem pagamentos dignos por eles. Cada vez mais, cartunistas mexicanos ultrapassam os temas e fatos locais para se envolver em publicações e competições internacionais com muito sucesso.

Continente Como você avalia o mercado do humor gráfico na América Latina? Quais são os melhores países do continente para se trabalhar com humor?
Boligán A América Latina se distingue por grandes desenhistas de estilos variados, artistas que publicam os seus desenhos na imprensa, mas também expõem suas obras em galerias sem considerar a caricatura uma arte menor. Não poderia asseverar qual ou quais os melhores países do nosso continente para trabalhar com o humor, porque não tenho experiência de trabalho em todos, mas sei que no Brasil existe uma quantidade extraordinária de cartunistas de alta qualidade. Pelo que deduzo, há respeito e espaço para essa arte. A Argentina, onde meus trabalhos são publicados, é outro país com artistas gráficos extraordinários e espaços que reconhecem a importância dessa arte, assim como o México, Chile e Equador.

Continente A caricatura do Charlie Hebdo referindo-se ao menino afogado sírio provocou polêmica entre os próprios cartunistas. Qual sua opinião sobre isso?
Boligán Eu sou da opinião de que não deve haver limites para a pensamento, de que não deve haver tabus religiosos, ideológicos ou censura de nenhum tipo, o limite deve estar na consciência de cada artista. Há uma linha imaginária e, dentro dela, nossas opiniões, por mais fortes que sejam, são críveis. Se passamos essa linha e chegamos à brutalidade da agressão injustificada, corremos o risco de perder credibilidade. Aplaudo a ousadia dos colegas por tentarem levar essa linha imaginária cada vez mais além e tento, no meu caso, sempre empurrá-la um pouco mais longe com sanidade e apelando para a inteligência.

Continente Uma charge deve ser universal, entendida em qualquer língua ou cultura, ou o contexto é fundamental para a compreensão, o riso ou mesmo a aceitação de uma piada?
Boligán Ambos os casos são válidos. De modo geral, as charges costumam ser locais. O contexto político e social de cada região é foco de humor de cada país, os jornais sempre tentam valorizar as situações e problemas dos seus leitores e isso é muito válido. Mas, nos últimos anos, temos assistido à globalização, que trouxe os mesmos problemas políticos, sociais e econômicos a todo o planeta, o consumismo como uma bandeira. Novas tecnologias, como telefones celulares e redes sociais fazem com que desenhos locais possam ser compreendidos em qualquer língua ou cultura. Outros permanecem seguindo temas muito particulares e compreendidos apenas pelos conterrâneos, mas são sempre interessantes para ajudar a entender o que está acontecendo nessas regiões.

Continente Alguns de seus trabalhos já geraram mal-entendido ao ponto de estabelecer polêmicas? Como o artista deve se comportar nessas situações? Pedir desculpas a quem se ofende?
Boligán Sim, muitos dos meus trabalhos têm criado alguma controvérsia, essa é a intenção do humor, provocar. Nunca fui obrigado a ir além de uma controvérsia, nem precisei pedir desculpas e espero nunca precisar fazê-lo. Meus desenhos são muito gráficos, não uso textos e eles podem ter várias interpretações e mensagens, de modo que incentivam o debate. Tento nunca explicar uma ideia e o desenho, o que seria como cortar as asas da imaginação do espectador.

Continente Há ou deve haver normas para quem faz o humor? Existem temas que nunca deveriam ser abordados?
Boligán Como disse na outra pergunta, acredito na liberdade sem limites ou tabus, não podemos deixar de discutir nenhum tema. A tolerância e o respeito seriam o cenário ideal para essa liberdade.

Continente Em que medida a cobrança do politicamente correto pode afetar a liberdade de expressão?
Boligán Acredito que os cartunistas de opinião devem estar sempre na oposição, do lado oposto ao do poder. É muito saudável para uma sociedade democrática poder contar com a crítica e com o humor, e respeitá-los. Nós, humoristas, somos um tipo de justiceiros do povo, o que menos deveríamos ter é medo de expressar algo politicamente incorreto, muito menos sermos vítimas de autocensura.

Continente Por fim, o humor está numa fase de redefinição?
Boligán O humor gráfico está se reacomodando a novos tempos, a essência continua a mesma, só mudam os meios de comunicação e suportes.

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